• Nenhum resultado encontrado

Cassirer: ampliação da ética kantiana?

4. FILOSOFIA, ÉTICA E EDUCAÇÃO: A PERSPECTIVA DE CASSIRER

4.2. Cassirer: ampliação da ética kantiana?

É possível afirmar que Cassirer “ampliou” a ética kantiana? Ou ainda, em primeiro lugar, é possível falar de uma ética cassireriana? Conforme foi visto no terceiro capítulo, a concepção ética de Cassirer deixa certas lacunas. Apesar disso, Cassirer aborda o problema moral na perspectiva de sua filosofia das formas simbólicas, ou seja, o problema passa a ser analisado numa perspectiva mais ampla. Enquanto Kant privilegia uma ética produzida pelo sujeito racional, como a única válida para ser universalizada, Cassirer aborda que há outras concepções morais também válidas enquanto construções simbólicas. Dessa forma, a perspectiva ética kantiana é confrontada com a perspectiva de Cassirer: como uma ética racional universal pode ser possível diante da diversidade epistêmica e axiológica?

Retomando-se as principais teses de Cassirer: 1) a moral não é uma invenção da filosofia, ou seja, concepções morais existem antes da filosofia. 2) Mito e religião produziram as primeiras concepções morais. 3) Porém, ambas não são passíveis de ser universalizadas, ou seja, a moral do mito e a moral da religião são dogmáticas e fechadas em si mesmas. 4) É no âmbito da filosofia que se encontra uma concepção moral universalizável. Ou seja, a filosofia não se fundamenta em uma moral empiricamente dada, mas ela busca pensar uma moral ideal passível de universalização. 5) Identificação da fase puramente simbólica do pensamento moral com a idéia de lei natural.30

Diante do exposto, pode-se deduzir o seguinte: a idéia de lei natural – válida para

todos seres humanos – pressupõe a idéia de uma natureza humana. É possível falar de natureza humana para Cassirer? Se sim, de qual forma?

Em seu Ensaio sobre o homem, Cassirer dedica a sua primeira parte a responder: “O que é o homem?” E uma resposta sintética para essa pergunta é “o homem é um animal symbolicum”. Daí que sua concepção de natureza humana não se encontra num estrato substancial, mas numa perspectiva funcional. Ou seja, o ser humano, enquanto animal simbólico, constrói interpretações para a realidade em diferentes perspectivas. Na sua Filosofia das Formas Simbólicas I, ele esclarece que:

As diferentes criações da cultura espiritual – a linguagem, o conhecimento científico, o mito, a arte, a religião – em toda sua diversidade interna, tornam-se partes de um único grande complexo de problemas, tornam-se impulsos múltiplos que se referem todos à mesma meta: transformar o mundo passivo das meras impressões [...] em um mundo da pura expressão espiritual. (1998a, p.21)

Cassirer pensa a ética na perspectiva do animal simbólico que constrói a realidade. Em Ensaio sobre o homem ele enfatiza que a ética não é um mero dado da realidade, da mesma forma que a ciência e a matemática também não são.

Os dados científicos sempre implicam um elemento teórico, ou seja, simbólico. Muitos, se não a maioria, desses fatos científicos que mudaram todo o curso da história da ciência foram fatos hipotéticos antes de se tornarem fatos observáveis. (1994, p. 99)

Cassirer chama a atenção para as hipóteses nas teorias cientificas, que muitas vezes, não se baseiam na realidade observável, mas numa possibilidade irreal, que pode se tornar factível. Esse foi o caso da teoria do movimento de Galileu, que para ser concebida ele teve que pensar hipoteticamente num corpo movendo-se sem interferência de qualquer força exterior. Tal corpo não foi observado na realidade sensível. Segundo Cassirer, a mesma tendência se repete nas grandes teorias científicas, que surgem a princípio como paradoxos, antes de serem provadas como verdadeiras.

No caso da matemática, sua história revela muitas dificuldades enfrentadas em relação à introdução de números “novos”, que a princípio pareciam paradoxos, como os números irracionais, os números negativos etc. Esses números foram aceitos quando apresentados de forma satisfatória. Contudo, adverte Cassirer,

Essas obscuridades não poderiam ser removidas até que o caráter geral dos conceitos matemáticos fosse claramente reconhecido – até que fosse reconhecido que a matemática não é uma teoria de coisas, e sim uma teoria de símbolos. (1994, p. 101.)

Para Cassirer, não é apenas na matemática que se pode explorar essa característica geral de uma teoria simbólica. Ele afirma que é no âmbito das idéias e dos ideais éticos que podemos perceber a verdadeira natureza desse pensamento. Cassirer retoma a observação kantiana, feita em sua Crítica do Juízo, em que afirma como indispensável ao entendimento humano, o discernimento entre coisas reais e coisas possíveis. Pois os grandes pensadores ao refletirem sobre ética não ficaram no âmbito do real, mas sim no do possível, ou seja, tiveram uma grande visão imaginativa sobre o que poderia ser feito. É o caso da Republica de Platão que recebeu várias acusações de se tratar de uma sociedade totalmente irreal.

É característico de todos os grandes filósofos o não pensarem em termos de mera realidade. Suas idéias não podem avançar um único passo sem ampliar e até transcender os limites do mundo real. (1994, p. 102)

Cassirer chama a atenção também para a Utopia de Thomas More, que trata de um “nenhures”, de um lugar não existente, de um mundo nunca visto a não ser na imaginação do seu autor. Mas essa é justamente a natureza do pensamento ético: o não se contentar com o mero “dado”.

O mundo ético nunca é dado; está sempre em processo de ser feito. “Viver no mundo ideal”, disse Goethe, “é tratar o impossível como se fosse possível.” Os grandes reformadores políticos e sociais laboraram de fato sob a constante necessidade de tratar o impossível como se fosse possível. (1994, p.103)

O autor de Ensaio sobre o homem também cita o “homem natural” de Rousseau, salientando que na verdade não se trata de um homem real, mas sim de um conceito simbólico criado por Rousseau para auxiliar no entendimento da sua teoria sobre a natureza humana. De modo semelhante ao método hipotético a que Galileu recorreu ao pesquisar os fenômenos naturais, Rousseau, segundo Cassirer, o emprega no âmbito das ciências morais. Trata-se de uma construção simbólica pensada para poder projetar uma nova concepção de humanidade.

Cassirer com essa série de comparações, quer deixar claro que o pensamento ético é uma construção simbólica consciente, porém, num primeiro momento, irreal. Enquanto a

moral se assenta nos costumes, na realidade dada, a ética irá refletir sobre esses fundamentos da moral, vai pensar num outro mundo possível.

A grande missão da Utopia é abrir passagem para o possível, no sentido de oposto a uma aquiescência passiva do estado presente real de coisas. É o pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade de reformular constantemente o seu universo humano. (1994, p. 104)

Nessa citação, Cassirer chama a atenção ao contexto vivido de “uma aquiescência passiva do estado presente real de coisas”, trata-se da conjuntura da II Guerra Mundial e da aceitação de muitos ex-compatriotas dos mitos políticos do nazismo.

Cassirer aposta no potencial do ser humano em projetar um outro mundo possível, mesmo que a princípio esse mundo possa parecer algo distante da realidade.