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Categoria da intersubjetividade: antropologia e ética

Intersubjetividade em Lima Vaz Como o reconhecimento e o consenso fundamentam a ação ética?

3.2 Categoria da intersubjetividade: antropologia e ética

Como as outras categorias, a intersubjetividade também se mostra como um dos passos essenciais no processo de afirmação plena do ser. A esse fator é preciso chamar a atenção, pois nela evidencia-se a importância da alteridade no discurso antropológico de Lima Vaz. Nesse sentido, percebe-se que a relação intersubjetiva plena, e, portanto, ética, é fator necessário, para que o indivíduo chegue à sua realização como pessoa. Para demonstrar como se dá a intersubjetividade na constituição do sujeito, é importante atentar à forma do raciocínio vaziano.

É na relação intersubjetiva que o outro é efetivamente reconhecido. Duas infinitudes intencionais relacionam-se, e a mera objetividade é rompida. O conceito de infinitude intencional carrega todo peso ontológico da unidade individual do sujeito, descrita pelas categorias de estrutura (corporalidade, psiquismo e espírito). O encontro configura, portanto, o nível da pré- compreensão da categoria de intersubjetividade. O outro emerge em sua irredutível originalidade perante a simples relação de objetividade. “Ou seja, da relação objetiva para a intersubjetiva o homem passa do ser-no-mundo para o ser-com-o-outro”. (ANDRADE, 2016, p. 83).

Passando para a compreensão explicativa, verifica-se novamente uma impossibilidade de objetificação científica. Trata-se do momento em que ocorre a reciprocidade espiritual como reciprocidade e liberdade. As tentativas da ciência esbarram em seus limites metodológicos.

Levantou-se assim imperativamente o problema de uma ciência do agir humano, ou de uma teoria de operar (Handlungstheorie) que passou a ser, aparentemente, o problema dominante do pensamento contemporâneo. No entanto, como já observamos, o florescer recente das teorias da linguagem como ação (Sprachliches Handeln) e da competência comunicativa assinala, com inequívoca clareza, os limites da compreensão explicativa aplicada à relação de intersubjetividade, e a necessidade da transgressão desses limites e da entrada no domínio da compreensão filosófica. (VAZ, 1992, p. 64, grifos do autor).

Na compreensão filosófica, o outro indivíduo agora é reconhecido dialeticamente como identidade na diferença. É possível um diálogo legítimo dentro de um horizonte de reconhecimento e consenso. A relação de intersubjetividade é caracterizada pela suprassunção dialética da relação de objetividade como identidade na diferença: O eu, na sua reflexividade, nega sua identidade com o outro, que por sua vez configura-se igualmente ele mesmo.

[...] a dialética da alteridade ou a essencial e constitutiva relação do sujeito, enquanto situado e finito, ao seu outro (esse ad, ou relação de alteridade que é equioriginária, em ordem à compreensão do sujeito, com seu esse in estrutural) implica necessariamente a passagem do outro-objeto (tematizado na relação de objetividade) ao outro-sujeito, ou seja, implica o paradoxo da reciprocidade, segundo o qual o sujeito é ele mesmo (ipse) no seu relacionar- se com outro sujeito o qual, por sua vez, é igualmente ele mesmo (ipse) no seu ser-conhecido e no conhecer seu outro: em suma, no reconhecimento. (VAZ, 1992, p. 55, grifos do autor).

Isso evidencia a necessidade formal do reconhecimento do outro. Só é possível afirmar o outro quando há seu acolhimento no espaço intencional do meu ser, que por sua vez deve ser afirmado também pelo outro em uma relação de reciprocidade. Enquanto sujeito unificado, ao se deparar com outro sujeito, analogicamente, torna-se preciso seu reconhecimento como outro sujeito unificado. Todo sujeito formal (unificado em suas relações de estrutura) é idêntico, pois a forma da estrutura do sujeito é universal. Daí, por analogia, evidencia-se a necessidade de reconhecimento legítimo de qualquer outro como sujeito idêntico a mim, e não como mero objeto. Dessa maneira, a possibilidade de coisificação de outros indivíduos se extingue. A intersubjetividade promove a migração da individualidade do sujeito para o existir em comum. Ao reconhecer o outro, o homem percebe-se como ser de relações em uma comunidade. Percebe- se que a ação ética, só pode ser pensada como expressão de um sujeito em relação à outro. Por isso, no âmbito da categoria de intersubjetividade está inexoravelmente contido o agir ético. Estando a relação intersubjetiva formalmente demonstrada, ela se eleva ao estatuto de universalidade. O homem possui abertura ao absoluto, ou acesso às formas puras da abstração; portanto, é um ser universal. A intersubjetividade representa as relações entre sujeitos universais dentro de uma comunidade ética.

A estrutura intersubjetiva do agir ético constitui-se, portanto, inicialmente, no âmbito da universalidade da razão prática, em que o encontro com o outro tem lugar segundo as formas universais do reconhecimento e do consenso. Reconhecer a aparição do outro no horizonte universal do Bem e consentir em encontrá-lo em sua natureza de outro Eu, eis o primeiro passo para a explicitação conceptual da estrutura intersubjetiva do agir ético. (VAZ, 2000, p. 70-71).

A antropologia e ética vazianas têm como base as estruturas formais e, portanto, universais da antropologia do sujeito, bem como o reconhecimento por analogia (o que constitui a abertura ao absoluto através da categoria do espírito) dos conceitos, como bem, liberdade e justiça. A relação de intersubjetividade é apreendida por meio da apreensão dos conceitos universais do reconhecimento e consenso, noções estas que se constituem como base à compreensão do existir humano em sociedade. Ressalta-se que reconhecimento e consenso estão não só intimamente relacionados, mas, também, dependem da abertura ao transcendental que se demonstra como característica intrínseca do ser humano, pois, segundo Lima Vaz, a abertura ao Bem universal atua como causa final da ação ética.

Implícita em todo o agir ético, a auto-afirmação do sujeito na sua relação ao Bem fundamenta-se, por um lado, na abertura intencional da Razão prática ao Bem universal definido em homologia com o Ser e, por outro, na objetividade do mesmo Bem como causa final do agir. A singularidade do agir ético, mediatizada pela situação mundano-histórica do sujeito, é determinada, por conseguinte, na sua inteligibilidade intrínseca, pela situação metafísica que o refere estruturalmente ao horizonte do Bem universal. (VAZ, 2000, p. 197, grifos do autor).

Para sumarizar os passos discorridos até aqui: no momento do reconhecimento de si como sujeito unificado, tendo em vista as relações de estrutura e sua suprassunção na dimensão espiritual, o indivíduo, situado no mundo, defronta-se com outras infinitudes intencionais como ele. O reconhecimento deve ser recíproco e ocorre quando há uma relação com o outro percebido no horizonte do Bem, o qual, por sua vez, precisa, também, reconhecer o mesmo no horizonte do Bem e enquanto infinitude intencional. Por analogia, percebe-se o outro como sendo o mesmo. Consenso é ato intencional que deve ocorrer de imediato, simultaneamente ao reconhecimento, para que se efetive a comunidade entre o Eu e o Outro. Consenso é pressuposição do

reconhecimento do outro no horizonte do Bem. Configura-se, desse modo, como um ato intrinsecamente livre, pois, tanto o vislumbrar o horizonte do Bem, como também direcionar a vontade ao Bem (essenciais para o reconhecimento) constituem-se como processo contido dentro da esfera da liberdade do indivíduo. (VAZ, 2000, p. 71).

O reconhecimento e o consenso constituem-se, pois, como a base de origem da comunidade ética. E esta, por sua vez, tem a missão de tornar possível a convivência ética entre os homens, sendo, porém, possível em caráter de possibilidade duradoura, sob a forma reflexiva e judicativa da norma, como resposta ao desafio da permanência ou duração no tempo da própria comunidade ética e da instituição, na medida em que ela é uma grandeza social essencialmente normativa e constitutivamente uma grandeza ética. (NODARI, 2018, p. 37).

O reconhecimento é obra da razão prática enquanto cognoscente. O consenso é obra da mesma razão em sua atividade volitiva. Reconhecimento e consenso permitem assim, uma relação intersubjetiva não meramente formal, mas promovem diálogo ético em uma relação de comunidade (Eu-Tu). Assim há a passagem do indivíduo ético abstrato (estrutura subjetiva) para o indivíduo ético concreto (relações), que se efetiva em uma comunidade ética. (VAZ, 2000, p. 77).