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Categorias Ontológicas Híbridas

No documento Análise categorial da arte em Amie Thomasson (páginas 125-131)

4. O ESTATUTO ONTOLÓGICO DAS OBRAS DE ARTE

4.2 Categorias Ontológicas Híbridas

Thomasson afirma que a filosofia tem dificuldade em encontrar uma boa solução ontológica para a obra de arte porque tenta forçosamente encaixá-la nas categorias da metafísica tradicional, de acordo com as dualidades dogmáticas a que esta se mantém vinculada. Mas o apego a esses dualismos levou as teorias ontológicas da arte em geral à incoerência com as práticas e crenças do senso-comum em relação à mesma:

Embora diferentes filósofos tenham tentado alocar as obras de arte praticamente em todas as categorias desenvolvidas pelos sistemas metafísicos tradicionais – categorias como Objetos Imaginários, Objetos Puramente

or as being transcribable or restorable. For the only way to find out the truth about the ontology of the work of art is by way of conceptual analysis that teases out from our practices and things we say the tacit underlying ontological conception of those who ground the reference of the term. (…) Radical solutions cannot be seen as discoveries about what the ontological standing of any art-kind really is, but only as proposals about how we should change our practices—not because they are wrong in the sense of being based on tacit views that are inconsistent with the

real facts, but only, perhaps, because the proposed change would be clearer, less prone to

vagueness, and so forth‖. THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in aesthetics. (published in The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005). p. 7.

Físicos, Tipos Abstratos em vários sentidos –, nenhuma destas ajusta-se completamente com as práticas e crenças do senso-comum a respeito das obras de arte. Isso explica tanto a diversidade de soluções quanto o fracasso em encontrar uma solução completamente satisfatória a despeito das diversas tentativas 143.

Desse modo, Thomasson abdica de servir-se de uma categoria ontológica já pronta dentro da metafísica tradicional, reconhecendo a necessidade de repensar suas bifurcações e desenvolver novos sistemas de categorias ontológicas. A metafísica sempre dividiu os entes entre objetos físicos independentes da mente humana, por um lado, e objetos imaginários e mentais por outro lado. Essa divisão categorial não prevê um espaço para subsunção das obras de arte, conforme elas são comumente compreendidas, pois elas são pensadas e tratadas como entidades individuais e concretas, vinculadas a elementos materiais e físicos, mas igualmente dependentes das formas da intencionalidade humana. As obras artísticas vêm à existência através de atividades humanas intencionais, pois mesmo que um pigmento possa cair fortuitamente sobre a tela, enquanto não houver um ato de criação ou apropriação do artista, isso não pode ser considerado uma obra de arte. Por outro lado, as obras são exteriores à mente, pois são entidades de significado público e, uma vez criadas, continuam existindo continuamente, mesmo quando não estão sendo observadas ou imaginadas. Assim, Thomasson sugere uma nova direção para uma concepção ontológica aceitável da arte, que consiste no abandono da dicotomia metafísica entre objetos físicos e entidades mentais, e na criação de categorias ontológicas híbridas, que possam englobar características de ambos os lados da dicotomia.

Outra divisão metafísica que existe desde Platão é entre objetos espaço-temporais, perecíveis, em estado de devir e objetos eternos, ideais, sem localização espaço-temporal. Entretanto, nenhuma dessas duas categorias ontológicas abrange a música e a literatura, que não têm

143 ―Although different philosophers have tried placing works of art in just about all of

the categories laid out by standard metaphysical systems—categories like those of imaginary objects, purely physical objects, or abstract kinds of various sorts—none of those fits completely with common sense beliefs and practices regarding works of art. This explains both the diversity of solutions (as theorists turned from one category to another in search of an adequate solution) and the failure to find a completely satisfactory solution despite these diverse efforts‖. THOMASSON, A. L. The ontology of Art. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed. Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 9.

localização espaço-temporal e continuam existindo independentemente da destruição de qualquer cópia particular ou do cancelamento de qualquer performance. Mas que, por outro lado, não podem ser consideradas eternas, pois são entidades culturais, que têm um momento histórico de criação e que podem ser destruídas caso tenham todas as suas cópias destruídas. Além disso, diferentemente dos tipos abstratos, as obras musicais e literárias não existem independentemente, pois são criadas por artistas e dependem, portanto, das formas da intencionalidade humana.

Formalizando o que Thomasson fala a respeito das obras de arte em Ontology of Art, pode-se buscar sua localização categorial no esquema ontológico apresentado pela filósofa em Fiction and Metaphysics. Thomasson admite a possibilidade de um pluralismo ontológico da arte, pois tipos de arte diferentes podem ser alocados em categorias diferentes. Como foi visto, a respeito da ficção e das obras literárias, a autora afirma que as dependências imediatas dos caracteres ficcionais remetem-se aos atos criativos de um autor (dependência histórica rígida) e à existência da obra literária (dependência constante genérica) na qual aparecem. A dependência histórica do ente ficcional aos atos mentais de um autor o assinala como um artefato, pois é algo criado em certo momento por algum humano. Trata-se de uma dependência rígida porque os caracteres só poderiam ter sido criados por seus autores enquanto indivíduos particulares. É histórica porque os personagens subsistem mesmo depois da morte de seus autores, através do seu registro em livros ou arquivos. A dependência do ente ficcional à existência de alguma obra literária é constante, porque só existe na medida em que existe alguma obra na qual aparece, e é genérica, pois pode ser qualquer cópia e não uma em particular. Além disso, a dependência é transitiva, logo, aquilo de que obras literárias dependem, também dependerão os entes ficcionais. As obras literárias dependem igualmente de modo histórico e rígido dos atos criativos de um autor, bem como da existência de alguma cópia das mesmas e da existência de algum público capaz de compreendê-las (ambas constantes e genéricas), pois não se pode afirmar que uma obra literária escrita em uma língua morta, por exemplo, sem que exista alguma pessoa capaz de compreendê-la, ainda existe enquanto obra literária. Assim, obras literárias dependem historicamente e rigidamente dos atos mentais de seu autor e constantemente e genericamente tanto da existência de exemplares de obras literárias quanto da existência dos estados mentais

de alguma comunidade lingüística capaz de compreendê-las. Essas cadeias de dependência valem para as obras de arte que não possuem um suporte específico, como a literatura, o teatro, o cinema, a fotografia, a gravura e a música. Essas obras, mesmo sendo dependentes de atos criativos e exemplares concretos de livros, discos, matrizes, negativos, impressões, performances, etc., e, portanto, serem artefatos, não possuem existência espaço-temporal localizável e, portanto, são abstratas. Por isso Thomasson sugere o nome de ―artefatos abstratos‖ para a categoria ontológica que as abriga, que se localiza em seu esquema do seguinte modo:

Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 124.

Obras de arte que possuem um suporte específico, por sua vez, como a pintura, algumas esculturas, o desenho, certas instalações, entre outras, têm, formalmente, as seguintes relações de dependência ontológica para existir: no quadro dos estados mentais não há nenhuma mudança estrutural, pois também dependem rigidamente e historicamente dos estados mentais de um autor e dependem genericamente e constantemente dos estados mentais de alguma pessoa ou comunidade que as compreenda; no quadro das entidades reais, por outro lado, dependem rigidamente de seu suporte material e não genericamente, como a música e a literatura. Sua dependência é rígida porque uma pintura, por exemplo, tem um suporte específico, tem que ser feita com aquelas tintas, aquela tela e com aquelas pinceladas, que não podem ser reproduzidas sem perder sua autenticidade. Não é possível distinguir, entre performances, livros ou fotografias, qual é a cópia ou execução mais original, pois todas o são. No caso de pinturas e esculturas, contudo, discrimina-se um exemplar como sendo o original

e, se alguma cópia é feita, esta é tomada como uma falsificação. Por isso, a categoria ontológica que aloca esses tipos de obras de arte é diferente:

Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 124

Alguns autores defendem que mesmo a pintura e a escultura são tipos abstratos, que poderiam, em princípio, ser reproduzidas sem perda da identidade da obra. Strawson, por exemplo, afirma que elas são tipos, embora não o pareçam por causa da deficiência dos modos de reprodução 144. De acordo com o autor, se fosse tecnicamente possível reproduzir pinturas e esculturas iguais às originais, em todas as pinceladas e expressões, não faria mais sentido distinguir as originais. Estas teriam apenas o valor histórico de um manuscrito ou de uma partitura. Todavia, Thomasson as analisa como individuos singulares, cuja identidade depende de sua existência enquanto indivíduo físico particular. Esta análise baseia-se no comportamento das pessoas em relação a este tipo de obra de arte: se uma escultura é destruída, afirma- se que a obra deixou de existir; se um pintor pinta um quadro idêntico à Noite Estrelada, este é considerado uma falsificação, uma cópia sem valor de original. Embora o argumento de Strawson pareça convincente, o fato é que não é possível reproduzir pinturas com total fidelidade ao original. Nenhum pintor é capaz de reproduzir uma pintura em todos os seus tons e pinceladas, mesmo que ele seja o próprio criador da original. Tampouco foi inventada alguma máquina ou tecnologia que possa fazê- lo. É com base nessa realidade e não em uma suposição de possibilidade

144 STRAWSON, P. F., Individuals. London: Methuen, 1959. p. 236.

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que o senso comum lida com certas obras de arte como indivíduos singulares, ocupando apenas um lugar no espaço, e irreprodutíveis.

Thomasson chama de Artefatos Abstratos a categoria ontológica especificada pelas cadeias de dependência do quadro que aloca a música, a literatura, a fotografia, o cinema, etc. O último quadro, no entanto, mostra uma combinação de dependências um pouco diferente, que especifica uma categoria ontológica distinta. É importante ressaltar que a autora não apresenta essa categoria em nenhuma obra publicada. Como foi afirmado, o que está sendo feito nesse capítulo é uma formalização ou aplicação das considerações de Thomasson a respeito das obras de arte em geral – que ela desenvolve em Ontology of Art e Ontology of Art and Knowledge in Aesthetics – à metodologia ontológica para criação de categorias e alocação de entidades de acordo com suas relações de dependência, que a autora apresenta em Fiction and Metaphysics. Trata-se, portanto, de uma interpretação lógico- conceitual feita a partir de seus textos, e não de uma exposição dos mesmos 145. Em analogia com a categoria dos Artefatos Abstratos, pode- se criar um nome para a categoria da arte rigidamente dependente de entidades reais. Poderia chamar-se Artefatos Concretos, pois dependem de indivíduos concretos e não são tipos abstratos genericamente dependentes de alguma instanciação 146. No entanto, esse nome leva a pensar em artefatos comuns, como mesas, garrafas e ferramentas. Outro nome interessante seria Artefatos Autorais, pois os artefatos comuns não dependem genericamente de um autor, enquanto a arte depende rigidamente. Ou Artefatos Criados, se o conceito de ―criado‖ for entendido como algo originado a partir de um ato criativo, de um ato de inovação, e não como algo apenas feito, construído ou reproduzido. No entanto, os Artefatos Abstratos também são autorais e criados. A alocação da arte em duas categorias – Artefatos Abstratos e Artefatos Criados – induziria à noção equivocada de que há uma contraposição entre Abstrato e Criado. Por esse motivo, modificar ligeiramente a terminologia de Thomasson, sugerindo as categorias de ―artefatos abstratos criados‖ e ―artefatos concretos criados‖ apresenta-se como uma boa alternativa. Contudo, embora sejam algo interessante para fins didáticos e intuitivos, os nomes das categorias são de pouca relevância

145 Apesar de não ter uma referência bibliográfica como subsídio, essa interpretação

foi autorizada por Thomasson em correspondência pessoal.

146 A denominação Artefatos Concretos foi sugerida pela autora quando foi

na ontologia de Thomasson, pois o que realmente determina uma categoria é sua posição no duplo quadro que mostra as condições de existência e de identidade de cada ente a partir de suas dependências ontológicas.

No documento Análise categorial da arte em Amie Thomasson (páginas 125-131)

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