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3. A passagem pelo convento

3.1 Catequese e apoio a pobres

A par das preocupações em conseguir uma cada vez maior integração e identificação com os propósitos espirituais e religiosos que o animavam, Américo começou a entender que os benefícios recolhidos no convento deveriam também ser postos ao serviço dos outros, em nome dos princípios evangélicos que gradualmente ia bebendo no meio franciscano.

Assim, foi junto dos mais próximos que procurou levar a cabo essa vontade. Pretendeu que cada um encontrasse na sua palavra a ajuda para ultrapassar as suas dificuldades ou sofrimentos.

63 A primeira iniciativa foi dirigida ao amigo Simão a quem, por carta de 4 de abril de 1924, convidou a visitar o convento, passando aí dois dias. Queria que ele observasse direta e pessoalmente a felicidade por todos partilhada, assente na humildade, na simplicidade, mas também no nível cultural de muitos dos frades que consigo viviam naquele espaço. E na sequência da preocupação do amigo em procurar ensinamentos para viver mais feliz, aconselhou-o:

[…] Dizia-me numa das últimas que tinha comprado um livro que ensina a ser feliz! Rasgue-o. Eu tenho aqui um muito melhor, sem folhas, mas que contém todas as verdades a este respeito. É por ele que há de aprender. Por enquanto não, mas em breve espero ter tempo de começar umas pequenas conferências epistolares consigo. Hei de trazê-lo à luz da razão e à verdade das coisas. […] Eu falo com experiência pessoal, e não estou doido. Você há de ser dos meus. Todos os dias o vejo e sinto nas minhas 'conversas' íntimas com o Invisível. […]. Nós havemos de continuar a ser amigos na vida do além. 113

Foi nesta linha de propósitos catequéticos que, mais tarde, provavelmente em julho do mesmo ano, se dirigiu a um irmão doente, possivelmente Jaime, a quem aconselhou a tratar-se fisicamente, consultando um médico conhecido, mas também a aproximar-se de Deus, de quem estava afastado.114

Disse-lhe então:

[…] Quando nas tuas condições de vida e crença se perde a saúde e com ela todas as esperanças nas cousas da terra, deve opor-se-lhe pertinazmente a confiança na Eternidade, […]. Procura, sim, o convívio dos Teus, descansa aonde te for melhor à saúde, ouve Aloísio e outros médicos porque a tua

saúde é-nos cara, mas não esqueças, meu caro, que mais alguma cousa te é necessária, sem a qual a tua vida será um tormento e o teu repouso um sacrifício.

[…] Não queiras sondar cousas que não entendes. Larga por uns momentos a materialidade das cousas da terra, dilata a tua alma até ao infinito, procura Deus e verás o bem que colhes e que gozas neste novo horizonte. […].

[…] Eu desejo muito da minha alma e com verdadeiro amor fraterno que tu sejas o que foram os nossos antepassados e o que todos devemos ser; bom para

113 AGUIAR, Américo – “Maré cheia”. O Gaiato, 17 out. 1959, nº 407 114

64 ti e bom para os outros. Que às tuas boas qualidades de trabalho e honestidade juntes, também, a de bom cristão; [...].115

Aproveitando para lhe dar conta da vida exigente e de sacrifício a que se sujeitava, quis mostrar-lhe a importância da dimensão espiritual na vida de cada um e que, no seu caso, lhe proporcionava uma grande satisfação.

Desde novo, e muito antes de entrar na vida religiosa, Américo tomara em muitos momentos a iniciativa de auxiliar materialmente muitos pobres, particularmente da região donde era natural, a par de uma ou outra obra beneficente a que reconheceu mérito. Após a ida para o convento, essa preocupação acentuou-se, sendo que o exercício da caridade cristã se revestia agora de um suporte doutrinal e evangélico que até então não podia ter.

Possuía uma grande sensibilidade e uma consciência clara de que o sofrimento humano, sendo uma realidade de todos os tempos, impossível de eliminar, podia no entanto ser mitigado, desde que cada pessoa se disponibilizasse a ajudar o seu próximo.

Se este deveria ser o princípio geral a adotar pelos cristãos, entendeu igualmente, e com o passar do tempo de uma forma cada vez mais radical, que lhe cabia estar permanentemente ao lado de toda a pessoa que sofresse, independentemente da origem e natureza desse sofrimento. Aqui, a sua preferência desde cedo se manifestou prioritariamente na direção dos mais pobres e infelizes, dos deserdados e desgraçados da sociedade, dos mais miseráveis e doentes.

No convento, o primeiro gesto ocorreu em setembro de 1923, quando estivera aí dois dias, antes de se decidir definitivamente pela vida monástica. Então, junto do superior conventual, assumiu o pagamento das despesas anuais inerentes ao noviciado de um aluno. Mais tarde, ainda recém postulante, no decurso de obras no convento, Américo prometeu ao padre provincial “apetrechar a enfermaria com seis camas e todos os seus pertences.” 116

A despesa com este gesto andou à volta das 150 libras esterlinas, ficando combinado que seria o próprio Américo a comprar tudo à sua vontade. 117

115 “Facetas de uma Vida”. O Gaiato, 02 fev. 1963, nº 493 p. 3. 116 “Facetas de uma Vida”. O Gaiato, 19 mar. 1960, nº 418, p. 1 e 4.

“Facetas de uma Vida”. O Gaiato, 08 dez. 1956, nº 333, p. 1 e 3.

117

65 Para isso, em 14 de março de 1924, informou Simão, então um quadro de uma casa bancária, pertencente ao grupo económico da empresa Blandy Brothers, na ilha da Madeira, onde Américo era depositante, de que poderia vir a utilizar aquele montante do conjunto dos valores depositados.

Nessa mesma carta, informou igualmente que o valor existente numa outra conta num banco do Porto seria distribuído por pobres seus conhecidos, residentes nas proximidades da sua casa familiar. 118

A par destes gestos de apoio material, demonstrativos do interesse, solidariedade e caridade cristã para com os que o rodeavam, foi na preocupação, interesse e ajuda que ele deu a frei Matias, que cedo evidenciou a vertente caritativa, de apoio pessoal e direto aos mais débeis.

Frei Matias era um homem idoso, demenciado pela doença e acamado numa cela junto da que Américo ocupava no noviciado. Sempre que aquele dava qualquer sinal, que ao noviço parecia ser de incomodidade ou dor, logo ele se deslocava até junto do frade doente, prestando-lhe ajuda e aliviando-o do sofrimento que então manifestava.

Ora, de acordo com as regras existentes, os noviços não podiam proceder daquela maneira, pelo que, algumas vezes, o mestre dos noviços teve de repreender o sensível Américo. Frei Alexandre, seu contemporâneo no convento de Ramallosa, observou:

Frei Américo era o mais velho dos noviços. Sucedia que algumas vezes, por saída do Padre Mestre, era ele quem ficava com a chave e o comando do noviciado. Pois tanto valia Padre Mestre estar como não estar. Se Frei Matias, lá da sua cela, dava sinal na parede (ele que infantilizado pelos anos e pela doença já não entendia a tentação que ocasionava ao seu amigo), Fr. Américo saía da sua cela de noviciado para saber e dar satisfação às necessidades e desejos do seu doente.

Padre Mestre, Luís do Patrocínio, sabia ou apanhava-o… «Que é isto, Frei Américo? Não sabe que é proibido sair do noviciado sem licença? Veja o que

118 “Facetas de uma Vida”. O Gaiato, 19 mar. 1960, nº 418, p. 1 e 4.

66 faz… – Ai, Padre Mestre! – E confessava a culpa de joelhos, muito compungido».

Eram quatro ou cinco dias de resistência, mas depois… «A Caridade não conhece leis. É lei de si mesma. Rebenta todos os moldes. […]»119

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