• Nenhum resultado encontrado

Celeiro do mundo: a agricultura como sustentáculo da nacionalidade

No documento O JOGO DAS TRADIÇÕES (páginas 78-83)

A TRADIÇÃO INTERROMPIDA

4. Celeiro do mundo: a agricultura como sustentáculo da nacionalidade

Em artigo apresentado ao segundo volume da revista Nitheroy, expressando preocupação com os destinos da economia nacional C.A. Taunay submete aos editores da revista um trabalho de investigação sobre um novo sistema de produção agrícola. O ensaísta apresenta uma série de considerações sobre um novo “systema de fabricar o assucar”, desenvolvido na França por Antonio Saint-Valery. O trabalho do autor, a princípio destinado à descrição de uma nova técnica “científica”, como dois outros artigos103 publicados na Nitheroy, recorre ao estudo das condições econômicas brasileiras com dois propósitos distintos.

Em um primeiro plano, Taunay expõe o modelo econômico adotado no Brasil, a partir de crítica contundente às práticas administrativas metropolitanas. Com isso o autor identifica os elementos responsáveis pela precariedade da economia brasileira, conferindo ao período colonial, como os demais artigos aqui analisados, a responsabilidade pela decadência social.

Em segundo lugar, partindo de um estudo sobre a riqueza das nações, Taunay sugere um novo paradigma na condução da vida econômica, no qual a produção agrícola represente a principal fonte de riqueza dos povos.

A agricultura he a fonte da prosperidade de todos os povos, mesmo daquelles, que lhe addicionão outros manaciaes de riqueza quaes o commercio e a industria fabril.104

A observação do ensaísta, admitida “por todas as escolas de economia politica”, tem por objetivo revelar o descaso, por parte da administração pública brasileira, com esse ramo da atividade econômica. Na concepção de Taunay a partir de

103 Os artigos citados são: Coutinho, C.M de Azeredo. “Physica industrial. Das caldeiras empregadas na

fabricação do assucar.”; e, Itaparica, A de S Lima de. “Chimica. Da destilação.”. In: Nitheroy, revista brasiliense, sciencias, lettras e artes. Tomo I, Nº II, Paris (1836).

104 Taunay, C.A. “Consideraçoens sobre a descoberta feita por Antonio Saint-Valery Sehuel de hum novo

sytema de fabricar o assucar”, In: Nitheroy, revista brasiliense, sciencias, lettras e artes, Tomo I, Nº II, Paris (1836)

suas observações “conclui-se logicamente que o primeiro cuidado de qualquer governo sensato deve se dirigir ao engrandecimento” da agricultura.

Indicando uma certa dependência dos outros ramos de atividade econômica, Taunay ressalta o papel da agricultura na economia nacional, com o propósito de apontar caminhos para o desenvolvimento do país. A proposta do artigo se insere na filosofia da publicação exatamente por propor os caminhos pelos quais deve se organizar a nação recém-formada.

Para justificar suas idéias o autor recorre à imagem paradisíaca de Brasil, filiando-se a construção simbólica de caráter laudatório no mesmo modelo da carta escrita por Caminha em 1500.

No Brasil, nesta immensa região a mais bem repartida pela natureza e a mais apta do mundo para prodigalizar tesouros agricolas de toda sorte em abundancia paradisiaca, jamais favor algum, ou sinal de interesse da parte do poder politico coadjuvou ou animou seus cultivadores.105

Percebe-se pela observação do autor que o desenvolvimento da riqueza nacional, embora “naturalmente” alcançável pela “abundancia paradisiaca” do espaço geográfico brasileiro, foi estorvado pela ausência de interesse político por parte da administração pública. Essa falta de motivação encontra suas raízes, segundo Taunay, na política metropolitana executada durante o período colonial.

(...) em quanto o Brasil fora colonia, a corte de Lisboa prostou, e mutilou com incançalvel rigor o seu desenvolvimento agricola, teimando em conserval-o á par das limitadas proporções aos seus acanhados dominios europeos, e politica ainda mais acanhada.106

Taunay se alinha à argumentação dos editores da Revista Nitheroy e propõe sutilmente uma linha cronológica que explique o pouco desenvolvimento brasileiro. Os males e prejuízos causados ao Brasil situam-se no período que antecede a ruptura dos laços coloniais. Segundo o autor, a “acanhada” administração portuguesa não foi capaz de promover o desenvolvimento e, estorvou no novo mundo qualquer

105 Taunay, C.A, op. cit, p. 139. 106 Idem, ibidem, p. 139.

possibilidade de vislumbrá-lo. Nem mesmo a transferência da corte portuguesa em 1807, nas palavras do escritor, foi capaz de alterar o quadro da política metropolitana.

(...) e quando esta corte degenerada achou azilo neste mesmo Brasil, alvo outrora do seu ciume, e das suas exacções, não se podia esperar, que mudasse de systema e, de repente illuminada, fizesse no novo mundo, de que possuia tão grandioso quinhão sem se dignar estudal-o, aquillo que não fizera para seu territorio do antigo hemispherio, objecto das suas preferencias, e saudades.107

As críticas do autor reservam à administração colonial a responsabilidade pelo estado precário da agricultura brasileira e, consequentemente, da economia como um todo. Para Taunay era fundamental romper com a herança metropolitana e, enfim, inaugurar um novo modelo de administração pública.

Nas considerações do autor nem o movimento emancipacionista de 1822 apresentou um novo paradigma de desenvolvimento para o país. Isso ocorre, na sua visão, em virtude da permanência de vínculos com a Coroa portuguesa e, consequentemente, da manutenção de práticas políticas e econômicas coloniais. Em tom de ironia, referindo-se a D João VI o autor afirma que a esse monarca “não se lhe dera em Lisboa de como o trigo ou a oliveira dão fructo; haveria no Rio de Janeiro do prestar cuidados ao assucar, ou ao café?”

E ainda acrescenta mais adiante, referindo-se a figura de Pedro I.

O filho, ainda mais tosca e estupidamente criado, era tão estranho á tudo quanto pertence á boa administração, e obrigação do chefe do estado de animar a producção por seu poderoso exemplo, que nas suas magnificas chacaras e fazendas todo vegetal util, ou precioso extinguiu-se, cedendo o campo ao capim das imperiaes cavalhariças.108

Percebe-se pela ironia e acidez das considerações que no entendimento desse autor os vínculos existentes entre o Brasil e Portugal deveriam ser completamente rompidos, sob a ameaça de impossibilitar o desenvolvimento nacional. Na visão de Taunay a política colonial trouxe inúmeros obstáculos para o florescimento da economia brasileira ao dificultar o desenvolvimento da agricultura.

107 Idem, ibidem, p 139.

108 Idem, ibidem, p 139.

O autor propõe uma linha argumentativa na qual a concepção de nacionalidade está ligada a existência e progresso da agricultura.

O Brasil vive unicamente da Agricultura; ella subministra o alimento á todos as classes da população, e com suas sobras paga as rendas do estado, garante dividas doudamente contractadas, salda a importação dos generos fabricados, dos instrumentos de defeza, dos objectos de luxo; se o Brasil existe como nação e representa hum papel entre os estados elle o deve á Agricultura, assim mesmo esta base unica de existencia, de nacionalidade, e de progresso social está solapada por mil elementos hostis.109

Essa referência aos “mil elementos hostis” refere-se à herança herdada da administração portuguesa. Taunay ao mesmo tempo em que enumera uma série de fatores oriundos do período colonial, elenca inúmeras medidas que no seu entender são imprescindíveis para o progresso nacional. Nas palavras do autor, a adoção dessas medidas representaria de fato a “omnipotencia parlamentar”, a partir de um modelo de nação, proposto pelos “Representantes dos interesses nacionais”, que suprisse as inúmeras carências do país que se formara recentemente.

(...) falta de meios de comunicação, falta de leis que penhorem o respeito das heranças e da possessão dos terrenos, dízimos, impostos sobre a exportação, cessação do trafico de escravatura, sorte precária da classe operaria, impossibilidade de obter colonos em ponto grande, tudo vincula e opprime a Agricultura como na era colonial.110

Dessa forma, após constatar a situação precária da antiga colônia nas primeiras décadas dos Oitocentos, e apontar possíveis caminhos para a solução das pendências detectadas, Taunay inscreve-se no conjunto de trabalhos apresentados a Nitheroy que professam a necessidade de uma nova ordem nos assuntos de interesse nacional.

Essa ordem seria alcançada a partir do florescimento de uma nova tradição que não mais estivesse vinculada ao período colonial. Uma tradição que repudiasse as heranças do velho continente adotando valores e idéias relacionados à “natureza” brasileira.

109 Idem, ibidem, p. 140.

110 Idem, ibidem, p. 141.

Era fundamental, portanto, após a depreciação da tradição portuguesa, encontrar novos caminhos que possibilitassem o engendramento dessa nova tradição. Para tal os autores recorreriam a uma reconfiguração da História nacional, partindo da criação de novos símbolos e mitos que expressassem a imagem de um novo Brasil.

Um Brasil no qual as “verdadeiras” tradições, até então solapadas pela ganância metropolitana, aflorassem de suas florestas, seus rios, suas riquezas naturais. Cabia agora, redescobrir um passado anterior ao passado colonial.

CAPÍTULO IV

No documento O JOGO DAS TRADIÇÕES (páginas 78-83)