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3. ALIANÇAS MISTERIOSAS NOS NINHOS DA CIDADE

3.5. O cemitério, o mar e o marinheiro

A morte da personagem Alexandre Viana cumpre metaforicamente a mesma representação da morte da personagem-raposa. Ambas são mortas na madrugada. Alexandre Viana, antes da morte, vislumbra a infância; acredita estar no circo e sente-se enjaulado como o leão. Descobriu que a “vida era uma jaula” (NC., p. 40) e como era um animal racional “podia sacrificar-se a si mesmo” (NC., p. 40), pois se sentia acuado como os animais do circo da sua infância. O casamento modesto. O filho presente. A amante ardente. Mas nada lhe tirava a imagem da jaula, fétida e apertada para leões e tigres. O trabalho medíocre. Estava preso à cidade, como um leão enjaulado; “tivera a nítida consciência de que estava finalmente enjaulado” (NC.,, p. 41)”. A cidade era como uma jaula que o mantinha encarcerado, prisioneiro. Havia uma saída? Onde? Finalmente encontrou uma porta: a escada.

Da mesma forma que a cidade acuava Alexandre Viana, fazendo-o sentir-se um bicho, um leão enjaulado, a personagem-raposa foi notada por policiais na madrugada. “Homens se aproximavam dela, grotescos como espantalhos, as beiçarias abertas num sinal de impiedosa alegria, portando instrumentos mortais que haveriam de golpeá-la” (NC., p. 20). A morte para a raposa e para Alexandre Viana tem, no nosso entendimento, um significado: ambos são ou se tornaram estranhos à cidade. Essa percepção do narrador-raposa já se mostra nas primeiras páginas do romance, em que marcas da diferença aparecem para propor a negatividade grávida.

Na verdade, Ninho de cobras é uma narrativa em que os fatos são construídos não como resultado da ação de uma raposa, mas como fatos organizados em torno da morte da raposa, com a qual as personagens entram, metonimicamente, em contato.

A personagem-raposa, no encontro com a morte, vive momentos de confronto entre a existência e a própria morte em um mundo construído de pilares capitalistas. O animal intruso da narrativa se traduz no descentramento (FERNANDES, 1999b),

porque é parte diferente da cidade. Embora construída sob o fascínio das luzes da cidade, ela é “a metáfora do mal-estar da sociedade” (SILVA: 2002, p. 84).

O texto de Lêdo Ivo surge, então, como uma fotografia, montado em imagens cinematográficas do espaço urbano, pois nele as imagens urbanas estão apresentadas com cores e sons, cuja multiplicidade espacial, em alguns momentos do texto, adquire linguagem independente.

Nesse ponto, podemos flagrar as imagens da raposa como elementos de tensão das metrópoles, como, nesse caso, a cidade de Maceió. Diante da raposa, temos a imagem da cidade entrecortada e com ela a cidade ganha um caminho, uma trilha em que rua, praças, bairros maceioenses compõem a cartografia simbólica da cidade em suas várias faces e formas.

A personagem-raposa é uma intrusa. É um estranho. É um diferente. Se tomarmos todos os significados que a personagem nos sugere, podemos admitir que ela seja a presença inesperada; a denúncia anunciada; o encontro possível/impossível. Tudo conota para o homem e o mundo, para a fragmentação do ser e do objeto, como diz Hall (2003).

Mas a astúcia da raposa não vence a voracidade humana, como não vence seu descentramento e seu lugar. O centro para a raposa não é a cidade, a do fascínio e da luz. “[...] ela estacou, e seus olhos refratários aos sonhos e a desolação se fixaram, por um instante, nas luzes vermelhas do campo de pouso” (NC., p. 11). Não há saída para raposa senão para a morte, como também não há para Alexandre Viana, para o professor Serafim Gonçalves, para a prostituta enferma, para o intruso ou para o escrevinhador de cartas anônimas.

Entre a visão globalizadora que tomou impulso a partir da ascensão capitalista e a elasticidade dos centros urbanos, há, para Junqueira (2004), o analista impiedoso da sociedade alagoana – agora cumprindo não mais uma relação local, mas universal, cujo tema abordado evidencia os centros de decisões econômicas e políticas que corroboram com o legado da tradição controladora e monocentrada muito corrente no Nordeste - é um desfigurador implacável do espaço urbano representado.

Para esse escritor “geográfico”, que tudo vê e tudo pressente, há uma negatividade grávida (BOSI, 2002) que se articula a uma tradição da crítica dos excessos do espaço urbano, porque esse espaço urbano se tornou, ao longo dos tempos, o espaço em que se almeja ascensão e se acumulam bens de consumo.

Tomada pelo crescimento e desenvolvimento tecnológico, a cidade dos países não centrais se tornou um encontro tenso de culturas que lutam contra uma homogeneização imposta por economias do Primeiro Mundo. Bom exemplo disso é quando a própria escrita apropria-se da sintaxe bíblica, como podemos ver no capítulo A noite e os navios, mas de sua face sombria.

E quando ele passava nas procissões, numa opa negra como os seus pecados já perdoados por todos os séculos seculorum, simbolizava, mais do que os santos nos andores, a misericórdia divina (NC., p. 155 – os grifos são meus).

Cumprindo o legado de colocar na cidade representada um foco fragmentador com aspecto de negatividade, o escritor alagoano faz constantemente um mapeamento do cenário urbano de Maceió em tons negativos. A geografia urbana degradada apresenta-se, pois, para dizer ao homem que o espaço urbano é multifacetado de representações culturais e sociais em tensão, desfigurando a cartografia harmônica da cidade e de seus personagens.

Na narrativa lediana, pode-se depreender uma leitura do homem que “não se deixa ler”, como nos diz Poe (1984, p. 131). Essa percepção faz com o texto de Lêdo Ivo se apresente como a “história mal contada” da vida. É assim que o professor Serafim Gonçalves quer ganhar vulto político; Alexandra Viana volta ao circo da sua infância e o escrevinhador de cartas anônimas convive com seu abandono.

O escritor da terra dos Caetés abre-se para as paisagens degradadas do mundo, vendo o movimento dos navios apodrecidos que o esperam desde a infância ou observando a palavra desfigurada que denuncia os contornos das ruas tortas de Maceió, como um escritor atento à dor humana.

Ando na multidão e o meu nome é Ninguém. Na cidade que cheira a peixe podre

E gasolina e demagogia

Pisado pela tarde vou roçando as escamas Das paredes que cosem a minha dor.

(FINISTERRA, 2004, p. 584 – os grifos são nossos).

Podemos observar que na construção do poema acima, o eu-lírico se nomeia Ninguém. Essa (a)denominação nos remete ao substantivo multidão, cujo sentido se

alia na construção antitética que marca o poema. Nos versos “Na cidade que cheira a peixe podre/E gasolina e demagogia”, encontramos o substantivo cidade acompanhado de uma oração subordinada adjetiva: “que cheira a peixe podre”; essa oração reforça nossa idéia de tom negativo, porque a relação morfológica “peixe podre” indica a decomposição do espaço urbano (cidade). Tais imagens são recorrentes na obra do autor.

O elemento urbano reforça não só o sentido de contemporaneidade que percorre o poema, mas também o lamento do eu lírico presente na oração “[...] vou roçando as escamas/Das paredes que cosem a minha dor”. Esse lamento incorpora toda a voz do eu lírico que caracteriza o espaço urbano, cuja dimensão temporal invade o presente, como podemos observar no verso “E gasolina e demagogia”. A cidade “cheira” também a gasolina e a demagogia, porque os espaços urbanos produzem para o eu lírico uma relação entre o progresso tecnológico, representado pelo substantivo “gasolina”, e a tradição cultural que determina as relações socioculturais existentes na composição da cidade de Maceió, como podemos perceber na palavra “demagogia”.

A ficção de Lêdo Ivo – e também sua produção poética - busca, enfim, equilibrar a infância memorializada nas imagens da cidade de Maceió e no movimento frenético da cidade moderna repleta de portas, saídas, mas trancadas a cadeado quando seus grupos culturais se vêem aterrorizados, acometidos pelo mal que encobre a contemporaneidade: a concentração de Poder.