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Qual a situação que este propósito pressupõe? Aparentemente, o livro se dirigia a um contexto no qual a reivindicação de Davi ou seus descendentes ao trono era matéria de discussão se não de controvérsia direta. Estava em questão saber se a dinastia davídica representava a continuidade ou a descontinuidade com o passado ancestral de Israel. Era evidentemente uma questão que envolvia na discussão a nação inteira, visto que o livro mostra uma percepção tanto da tribo de Judá como de Israel como um todo. A presença e proeminência de não isra­ elitas na terra, talvez associados mesmo à casa reinante, preocupava a população. A pergunta que se fazia era: ser membro em Israel é limita­ do somente a israelitas étnicos?

Quando pode isso ter sido? No começo, vários momentos na histó­ ria podem imediatamente ser excluídos. Como se notou antes, por exem­ plo, o contraste entre o relance de Davi fornecido em Rute e o retrato com ornatos apresentado pelo escritor de Crônicas enfraquece o caso a favor do período pós-exílico.1 Um cenário no reinado de Roboão (tar­ diamente no séc. 109 a.C.) também parece estar excluído. Concede-se, à primeira vista, que este reinado tem muito a recomendá-lo. Visto que as tribos do norte se separaram de Judá durante seu reinado, pode-se imaginar que o livro de Rute foi escrito como um apelo para que se permanecesse leal à dinastia davídica. Esse cenário seria ainda mais provável se a lealdade a Roboão em Judá estivesse também instável.2 Contra essa teoria, no entanto, há o fato que dois oráculos proféticos - um para Jeroboão por Aias, de Silo (IRs 11.29-39), o outro a Roboão por Semaías (2Cr 11.2-4) - anunciaram a cisão como feitura do pró­ prio Yahweh e proibiram resistência. Parece improvável que um escri­ tor, um contemporâneo dos dois profetas, tentasse contradizer sua men-

1. Um contraste a mais confirma este ponto. Enquanto Rute dá grande importância à linhagem de Davi ser da casa de Judá, o escritor de Crônicas deixou por merios esse fato, para dar realce a Davi ser reconhecido por “todo o Israel” (lC r 11.1; cf. 12.39 [port. 38]; mas veja 28.4).

2. Assim J. M. Miller e J. H. Hayes, A History o f Ancient Israel and Judah (Filadélfia: Westminster, 1986), p. 231; J. Bright, A H istory o f Israel, 3* ed. (Filadélfia: Westminster,

sagem em nome de Yahweh. Portanto, essa era que de outra maneira seria adequada provavelmente não é o cenário de Rute.

Outra possibilidade atraente é o reinado de Ezequias (tardiamente no séc. 8S a.C.).3 Primeiro, fontes bíblicas o comparam com Davi em agradar a Yahweh (2Rs 18.3; 2Cr 29.2). Segundo, sua conhecida refor­ ma religiosa de locais de culto em Jerusalém e Judá provavelmente visavam, entre outras coisas, a solidificar apoio naquelas áreas a favor da monarquia de Davi e seus programas.4 Em outras palavras, a situa­ ção exigia que o sucessor de Davi justificasse por que razão suas or­ dens deveriam ser obedecidas. Terceiro, Ezequias também cultivou a fidelidade de tribos do norte depois da queda do reino do norte em 722 a.C. Enviou cartas a várias tribos do norte convidando-os a celebrarem a Páscoa em Jerusalém (2Cr 30.1-12,18; cf. 31.1). Aparentemente, na ausência de um governante no norte, Ezequias procurou restaurar o antigo reino ideal de Davi, um alvo talvez encorajado por Isaías (Is 8.23-9.6 [port. 9.1-7]).5 Assim, com seu apelo aos antepassados tanto das tribos do norte como do sul, o livro de Rute poderia ter sido escrito a fim de promover os programas de Ezequias.

O tema sobre estrangeiros parece inadequado a esse período, no entanto. Embora vários oráculos em Isaías pudessem dar a entender uma presença estrangeira proeminente em Judá nesta época (ver Is 28.11-13; 33.18,19), eles não sugerem o tipo de situação que o livro de Rute pressupõe.6 E ainda, fosse importante a questão da etnicidade no tempo dele, seria de esperar que Isaías o abordasse, e provavelmente com simpatia à luz de textos como Isaías 2.1-5. Em todo caso, está ausente a evidência que confirme ser a questão significativa na época de Ezequias. Por mais atraente que possa ser um cenário no reinado de Ezequias, parece não ser bem o cenário do qual o livro de Rute emergiu.

3. Ver Cannon, “Ruth”, pp. 314-15.

4. Cf. 2 Reis 18.22; Miller e Hayes, History, p. 357. O fato de a aliança siro-efraimita ter quase derrubado a dinastia durante o reinado de seu pai, Acaz, pode ter tomado esse passo necessário.

5. Ver Miller e Hayes, History, p. 357 (com ligeiro ceticismo); Bright, History, p. 283, que defende a historicidade de 2 Crônicas 30. Que o filho do rei levava o nome de uma tribo do norte, Manassés, pode também refletir uma sutil bajulação em busca da boa vontade deles.

6. Miller e Hayes {History, p. 372) datam este texto à época de Manassés, sucessor de Ezequias.

O reinado de Josias (séc. 7a a.C.) também se recomenda.7 Primeiro, fontes bíblicas aplaudem sua devoção quase davídica a Yahweh (2Rs 22.2; 23.25; 2Cr 34.2; cf. sua celebração da Páscoa, sem paralelos, 2Rs 23.22; 2Cr 35.18,19). Segundo, agiu para livrar Judá e Jerusalém de lugares altos de idolatria (2Rs 23.4-14; 2Cr 34.3-5). Como, com Ezequias, tal ato poderá refletir uma tentativa de fortalecer um apoio político vacilante no sul. Terceiro, há indícios de que ele exercia forte influência sobre partes do velho reino do norte tão afastados como a Galiléia. Como parte de seu programa de reforma religiosa, demoliu os maiores santuários de culto em todo o reino do norte (2Rs 23.15,19,20; 2Cr 34.6,7). E mais, várias tribos do norte aparentemente contribuíram com fundos para reparar o templo em Jerusalém (2Cr 34.9-11).8 Mas este período sofre a mesma desvantagem daquela do reino de Ezequias, a saber, a falta de qualquer preocupação por etnicidade. Influências estrangeiras neste período parecem limitadas àqueles que tentaram Judá à idolatria. O problema era mais impedir os israelitas de se voltarem a outros deuses do que de integrarem em Israel estrangeiros que criam em Yahweh. Ainda mais, diferentemente da reforma de Ezequias, não existe indicação de que as medidas de Josias no sul visavam fortalecer seu apoio lá. Mesmo se seu fechamento de lugares sagrados encontrou re­ sistência popular, o apelo de Rute a antecessores crentes em Yahweh dificilmente influenciaria os israelitas sincretistas a aceitarem a autori­ dade régia. Finalmente, a incerteza sobre a extensão do domínio dele ao norte também fragiliza este período como um cenário possível. Certa­ mente, as fontes bíblicas não recriam a mesma impressão da influência de Josias que dão de Ezequias.

A exclusão dos cenários acima deixa duas possibilidades que atra­ em. O reinado de Davi tem muito a seu favor. Primeiro, o comando que Davi tinha da lealdade popular em seu reino era frágil.9 Atrás do verniz

7. Como tentativa, Sasson, p. 251.

8. A extensão do domínio de Josias para o norte, no entanto, é incerta. Bright (H istory, p. 317) lhe dá o controle de Samaria, talvez até o Mediterrâneo. Mais cético das declarações bíblicas, Miller e Hayes (H istory, p. 40) crêem que seu domínio do norte se extendia só até Betei.

9. Para detalhes, ver Bright, H istory, pp. 195-211; Miller e Hayes, H istory, pp. 160-88; esp. 175-78.

brilhante de seu reino esplêndido estavam as lealdades fragmentadas de duas coalizões tribais rivais, uma do norte e a outra do sul. Aparente­ mente, o compromisso deles era inicialmente com a pessoa de Davi e não com qualquer instituição dinástica permanente. Essa hipótese ex­ plica por que Davi foi coroado rei de Judá primeiro (2Sm 2) e mais tarde rei de Israel (2Sm 5). O quase bem-sucedido golpe de Absalão sugere quão trêmula estava a base do poder de Davi em sua própria terra de Judá (2Sm 15-19).10 Aqueles que ainda eram leais a Saul, espe­ cialmente os da tribo de Benjamim, que era a dele, parece que viam Davi como um empedernido usurpador que cruelmente conspirou para se colocar no poder (cf. a maldição do parente de Saul, Simei. 2Sm 16.5- 8). Mesmo com Absalão e a revolta mortos, não houve nenhuma corrida para reinstalar Davi como rei, nem mesmo por parte de Judá (2Sm 19.9b- 16 [port. 8b-15]). Em resumo, a aceitação de Davi como rei tanto no norte como no sul foi certamente problemática, se não marginal.11 Hou­ ve definitivamente a necessidade de legitimar sua realeza.12

Segundo, alguma evidência indica que os estrangeiros formavam um elemento crucial da base do poder de Davi, particularmente no militar. Evidentemente, um contingente considerável de mercenários filisteus comandados por Itai de Gate constituía o cerne do exército de Davi (2Sm 15.18; 18.2,5).13 Pode-se suspeitar (mas não provar) que

10. Note, por exemplo, que os co-conspiradores de Absalão incluíram alguns dos próprios defensores de Davi (notavelmente Aitofel e Amasa) e que sua coroação foi planejada para Hebrom, a cidade principal de Judá (2Sm 15.12). Que ele informou outras tribos a respeito (2Sm 15.10) sugere sua confiança no apoio delas.

1 1 . 0 grito de guerra de outro líder rebelde, Seba, provavelmente deu voz ao sentimento de Benjamim e das tribos do norte. “Não fazemos parte de Davi, nem temos herança no filho de Jessé! Cada um para suas tendas, ó Israel!” (2Sm 20.1). Quando as tribos do norte rejeitaram Roboão mais tarde, eles gritaram uma variação das mesmas palavras (1 Rs 12.16). Dá para se perguntar se estas palavras refletiam variações de algum slogan político popular da época.

12. Algumas das medidas conhecidas de Davi podem refletir sua tentativa de legitimar sua realeza. Na opinião de Bright (H istory, pp. 200-201), trazendo a Arca da Aliança para Jerusalém, Davi buscou ligar seu reinado com a antiga confederação tribal. Sobre as rela­ ções de Davi com as tribos, veja S. Herrmann, “King David’s State”, em In the Shelter o f Elyon, Fest. G. W. Ahlstróm, JSOTS 31; org. W. Barrick e J. Spence (Sheffield: JSOT,

1984), pp. 261-75.

13. Cf. também Urias o heteu (2Sm 11-12; 23.39) e Zeleque o amonita (23.37). Para uma comparação entre a afirmação de lealdade de Itai a Davi (2Sm 15.19-22) e a de Rute a

esse relacionamento com os filisteus de alguma forma se originou com o serviço anterior que Davi prestara para Aquis, rei de Gate (1 Sm 27; 29; cf. 21.11-16 [port.10-15]). Em todo caso, com suas famílias, os solda­ dos filisteus representavam uma visível presença estrangeira em Israel. Também conspícuos eram os jebuseus, os habitantes originais de Jeru­ salém, que Davi presumivelmente incorporou em Israel depois de con­ quistar aquela cidade (2Sm 5.6-10).14 Davi também empregou carpin­ teiros fenícios e pedreiros de Tiro para construírem seu palácio (2Sm 5.11). Se ele contratou outros peritos estrangeiros para organizar seu novo reino desajeitado é impossível dizer. Enquanto que não há evidên­ cia explícita de israelitas nativos terem se ressentido da presença estran­ geira associada com o rei, é possível que tal presença suscitasse pergun­ tas entre os Javeítas leais. Isso seria verdade particularmente se, como parece possível no caso de Itai (cf. 2Sm 15.21), estrangeiros já haviam adotado o culto de Yahweh e viviam pelo ideal israelita do hesed. Os crentes tradicionais de Yahweh ficariam a se perguntar como cabiam es­ ses estrangeiros em Israel. Se foi assim, o livro de Rute forneceria a res­ posta: os estrangeiros que adotam Yahweh e superam os israelitas em hesed merecem aceitação como israelitas completos.

Contra essa visão, no entanto, acha-se o argumento de Rute 4.7, que o cenário do livro provavelmente é posterior à introdução de docu­ mentos legais escritos. Enquanto que Davi pode ter iniciado a mudan­ ça, seu reinado de 40 anos parece tempo curto demais para o costume anterior ser esquecido. Por outro lado, se, como eu sugiro, 4.7 simples­ mente serve como um dispositivo literário, nada contribuiria de subs­ tancial à discussão do cenário do livro.

Assim ficamos com o reinado de Salomão para considerar. A favor, recorda-se que seu reino viu um florescimento especial de literatura israelita, da qual Rute podia ter sido a mais fina flor.15 Presume-se que Noemi (Rt 1.16-17), ver 1.11. Para a mistura étnica no cenário do exército de Davi, ver B. Mazar, “The Military Elite o f King David”, VT 13 (1966) 310-20.

14. Miller e Hayes (History, pp. 173-74) concordam com a conhecida teoria de que Davi integrou o sacerdócio jebuseu indígena no culto israelita. Bright (H istory, p. 200) opõe dúvidas, mas cita bibliografia relevante (n. 35). Para uma possível ligação com os amonitas, ver 2 Samuel 10.2; 17.27.

15. Ver Bright, H istory, pp. 219-20. Para aqueles que colocam Rute neste período, ver seção IV, “Autoria e Data”.

a presença de estrangeiros se salientando sob Davi prosseguiu sob Salo­ mão. De fato, essa influência pode ter até aumentado, imaginando-se que Salomão dependia mais da habilitação estrangeira para expandir e conduzir seu reino do que Davi (cf. lRs 5.32 [port. 18]; 7.13-47); Na verdade, há evidência de influência egípcia crescente sobre a literatura israelita e a organização política durante o reinado de Salomão.16 Além disso, não deixa de ser razoável presumir que as mesmas tensões que Davi conservava sob controle, mas que destruíram o domínio de Ro- boão, estiveram presentes sob Salomão. Que 1 Reis não registra ne­ nhuma renovação da aliança de Davi com os grupos de poder tribais por parte do sucessor Salomão poderia dar a entender que este tinha mão tão firme no poder que se tornava desnecessária tal medida (cf. 2Sm 2; 5; lRs 12). Por outro lado, pode ser significativo que Salomão aparentemente chegou ao poder através de um golpe do palácio.17 Re­ sumindo, o governo de Salomão tanto fornecia um contexto adequado para Rute ser escrito como poderia ter precisado da justificativa que o livro apresentava.

Em conclusão, o cenário do livro é incerto. A evidência limitada requer dependência de reconstrução, particularmente com respeito à tese de uma presença estrangeira problemática. As possibilidades exa­ minadas têm provas de apoio e desvantagens. Se o quadro do governo de Davi também reflete aquele de Salomão, a data de composição du­ rante o reino deste parece o cenário mais provável. Se a visão de Rute 4.7 sugerida acima se mantém, no entanto, a origem durante o tempo de vida de Davi permanece uma possibilidade.18

16. M. Görg, Gott-König-Reden in Israel und Ägypten, BWANT 105 (Stuttgart: Koh­ lhammer, 1975), T. N. D. Mettinger, Solomonic State Officials. ConBOT 5 (Lund Gleerup, 1971); E. W. Heaton, Solom on’s N ew Men (Londres: Thames and Hudson, 1974). Note também o status especial dado à filha do Faraó como noiva de Salomão (lR s 3.1; 7.8; 9.15- 17).

17. Para os detalhes, ver Bright, History, pp. 207-11; Miller e Hayes, History, pp. 200- 201. Aparentemente, nenhuma objeção de áreas afastadas veio à luz quando Salomão dis­ pensou com seu rival real agressivo, Adonias, e os partidários eminentes deste dentro da corte (ver lR s 1-2). Admitidamente, porém, isso é, pelo silêncio de fontes bíblicas, uma defesa de fontes menos preocupadas com reportagem de detalhes históricos do que com ensino de verdades teológicas.

18. Naturalmente, esta visão presume que as partes relevantes de 2 Samuel e 1 Reis refle­ tem com precisão as circunstâncias do século 10° a.C. Para um levantamento crítico dessas

No documento RUTE- Robert L. Hubbard Jr (páginas 66-72)

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