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2.4 Encenações

2.4.4 Cena 3 – De docta ignorantia

À memória de Nicolau de Cusa

Se não soubermos como é nosso mundo, e que sabemos dele apenas o que tivermos feito, e que fazemos só a morte que não foi em vão, e que não foi em vão quanto nascer de novo

59 é o muito que sofremos para descobrir

que a descoberta é recordar sem tempo o tempo exacto qual medido em vidas – Se não soubermos que a vida é um salto brusco no inanimado às vidas que se encontram na quantidade em que a si mesmas se erguem, até que ter falado é o ser que nunca fomos, o ser que não seremos, mas o puro

início de lembrar o igual de tudo –

Se não soubermos que os iguais transformam em único e mortal o que é sinal de um só que se conhece e conhecendo esquece como ter visto é terem outros visto o que, entretanto, em nós se transmutou – Se não soubermos, como saberemos? E como criaremos? Qual eternidade terá sentido, irá como uma seta

ao fim que não acaba, em que se cumpre o próprio fundamento, a porta, o tecto, o constelado céu de acasos conquistados? Se não soubermos, como não saber?

7/5/1958

Publicado no último volume antes de partir para o exílio, Fidelidade, de 1958, “De docta ignorantia” recupera, explicitamente, o texto homônimo de Nicolau de Cusa, a cuja memória o poema é dedicado. Noto, de início, a diferença estabelecida entre um poema dedicado a alguém e o poema dedicado à memória de alguém. Se no primeiro caso há um endereçamento, ou seja, um envio do poema a alguém – vivo ou morto – ,no segundo há a presentificação do ausente, mantendo, paradoxalmente, a distância visível entre passado e presente, através do uso da palavra “memória”. No movimento pendular, não é um passado estático, mas um passado presente, que corre até nós e que seguirá seu movimento rumo a um futuro.

Entender quem foi Nicolau de Cusa e conhecer “De docta ignorantia” não se torna um mero exercício de acumulação enciclopédica, posto que, conhecendo a obra seniana, poética,

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crítica e teórica, será possível ver na figura do poeta uma espécie de “segundo Cusa”, ou, dito mais precisamente, afinidades que parecem superar estes pouco mais de quinhentos anos que os separam. Nikica Talan vê, no volume Fidelidade, uma presença constante do pensamento de Nicolau de Cusa, afirmando que “com a coletânea Fidelidade a filosofia de Cusa torna-se a base da relação seniana com a Transcendência” (1998, p. 145). Deste modo, Sena insere – ou propõe inserir –, na sua obra, algumas das bases humanísticas, cinco séculos depois.

Segundo Henrique C. de Lima Vaz (2014, p. 81), a dignidade do homem e o homem universal são duas ideias matrizes da concepção renascentista de homem, ambas presentes no pensamento do cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464). Vaz situa o cardeal dentro do nominalismo, “doutrina segundo a qual não existem idéias gerais (...), mas somente signos gerais” (Lalande, p. 735), e o põe como representante da tendência panenteísta, que,

em contraposição ao esquema da transcendência do divino próprio da metafísica clássica, dá ênfase à imanência do divino no mundo sem pôr em questão a personalidade divina, mas realçando nesta o predicado da infinidade simbolizada na infinidade do mundo e, sobretudo, da individualidade humana confrontada dinamicamente com a infinitude cósmico-divina (ibidem, p. 82).

Vaz acrescenta que “a infinitude, que nunca pode ser alcançada, de Deus e do universo provoca no homem um movimento tendencialmente infinito de conhecimento de Deus e do universo” (ibidem, p. 82 e ss.). A ideia presente neste último trecho é a que será mote para o poema de Jorge de Sena, escrito em estrofe única, em que o verbo “saber” aparece oito vezes nos vinte e cinco versos, cinco vezes precedido pela partícula “se”, indicadora de uma dúvida, de uma hipótese. Uma única vez, na última ocorrência, o verbo aparece no infinitivo, nas demais sete vezes, está conjugado na primeira pessoa do plural. De fato, não é apenas a última ocorrência do verbo, mas é este verbo – saber – no infinitivo, que, seguido de um ponto de interrogação, fecha todo o poema. É preciso destacar os versos em que o verbo saber aparece, para retornar da pergunta final do poema – “Se não soubermos, como não saber?” –, refazendo o percurso hermenêutico que permitirá a emergência de uma compreensão. Antes, no entanto, recupero uma questão em torno do verbo saber.

É conhecida e já estabelecida no repertório do saber tácito a sentença “só sei que nada sei”, atribuída a Sócrates. Se é tarefa do filólogo observar em que texto esta frase surgiu e como ela atravessou os séculos e permaneceu na cultura, não é, porém, necessário saber disso para

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interpretar um poema escrito provavelmente em Portugal, em sete de maio de 1958. Quando o falante reproduz “só sei que nada sei”, como mote e princípio de conhecimento, ele já anulou a distância entre a “origem” da sentença e seu tempo. Para o falante – e o poeta, que se diferencia, no poema, do falante, se inclui na mesma comunidade – esta frase diz respeito ao seu próprio tempo presente, está inteiramente associada ao seu Lebenswelt (mundo da vida) e, por conseguinte, a seu Lebenszeit (tempo de vida). Desse modo, o falante parece suprimir toda a distância entre o seu tempo de vida e o tempo de vida dos demais, como se um tempo maior pudesse abarcar todos esses diferentes tempos. Dito de outro modo: o finito, que é o tempo de vida de cada um, é transcendido, e atravessa outros tempos, se inserindo, em última instância, no tempo do mundo, desde que esse mundo seja entendido não como Cosmos, mas como um suposto espaço em que transitam, potencialmente, todos os seres humanos. Como uma frase dita em determinado lugar – no tempo e no espaço – pode transcender este tempo e se inserir em outras realidades não pode ser melhor observado no presente trabalho. No entanto, deverá ser parte importante do projeto maior, já mencionado na introdução, intitulado Poética da distância.

É tarefa tanto do poeta quanto do filósofo pôr esta frase em suspensão e perguntar por sua validade, pois sua aceitação passiva é a anulação do pensamento. Em Beschreibung des Menschen (Descrição do ser humano), Hans Blumenberg provoca a não aceitabilidade desta sentença, acrescentando: “o certo é que sabemos muito, mas não sabemos o quão muito”62 (2014, p. 479). De Cusa a Jorge de Sena, não se soube mais, mas soube-se diferente. A dificuldade consiste, porém, no fato de que o conhecimento não é um acúmulo depositado em algum recipiente, e é preciso se perguntar como alguém de uma época pôde saber aquilo que nos é dado como certo, como foi possível acessar o que nos é inacessível, etc. O que e como se sabe pode ser posto em dúvida, no entanto, não saber é a impossibilidade apresentada tanto por Nicolau de Cusa, em De docta ignorantia, quanto por Jorge de Sena, com o verso final do poema: “Se não soubermos, como não saber?”.

O cardeal alemão, ao afirmar que “since the desire in us is not in vain, assuredly we desire to know that we do not know” (1990, p. 6), se aproxima do início da Metafísica, de Aristóteles: “todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento” (2012, p. 41). Interrompida aqui, a declaração do filósofo grego não permite saber aquilo que Blumenberg, no citado Beschreibung des Menschen, irá considerar como um dos fatores primordiais da

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constituição do ser humano: o olho e sua postura ereta, capaz de olhar o horizonte. Primeiramente, ver com os próprios olhos e, logo, com instrumentos e, também, com os olhos dos outros, através de pinturas, esculturas, etc. Essa múltipla constituição do que é o mundo, em que a ideia de um todo se forma para além do entorno de um sujeito, estabelece uma passagem que Nelson Shuchmacher Endebo considerou como “da invisibilidade para a visibilidade” (2015), isto é, da especulação à localização. Ainda na Metafísica, Aristóteles diz:

Isso é indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos, pois independentemente do uso destes nós os estimamos por si mesmos, e mais do que todos os outros, o sentido da visão. Não somente objetivando a ação, mas mesmo quando não se via nenhuma ação, preferimos a visão – o geral – a todos os demais sentidos, isto porque, de todos os sentidos, é a visão o que melhor contribui para o nosso conhecimento das coisas e o que revela uma multiplicidade de distinções (ibidem, p. 41).

Aristóteles parece considerar a visão apenas a partir daquele que vê, ignorando que ver é ter consciência de ser visto – e, em muitos casos, ser, de fato, visto. Como recorda Blumenberg, “quem quer ser o primeiro a ver o faz sob o risco de primeiro ser visto”63 (2014, p. 777. Sem aprofundar o tema, que não é o escopo deste trabalho, o que interessa evocar, aqui, é a passagem do acento do ver ao ser visto, que interferirá drasticamente no modo de saber. Assim como concebido por Endebo, ao contrapor o modelo do astrônomo Johannes Kepler do cálculo da trajetória elíptica do planeta Marte com uma ilustração atual das múltiplas órbitas dos satélites artificiais que compõem o GPS, nota-se que “o olhar de Kepler é centrífugo”, enquanto “o modelo contemporâneo (...) é centrípeto” (2015).Embora esta seja uma tese difícil de ser sustentada, e que exigiria ainda um longo trabalho de verificação, o que tento acompanhar, aqui, é uma passagem de um “tempo centrífugo”, em Nicolau de Cusa, para um “tempo centrípeto”, em Jorge de Sena64.

Como observado acima, pelos dizeres de Lima Vaz, Cusa opera uma ruptura em relação à tradição clássica. No entanto, no que diz respeito ao “mundo centrífugo”, ainda é possível notar uma contiguidade entre aquilo que afirma Aristóteles e o que se anuncia em De docta

63 “wer hier zuerst sehen will, tut es unter dem Risiko, dabei zuerst gesehen zu werden”.

64 Uma leitura mais acurada talvez indique não uma passagem de um modo a outro, mas a incorporação – e, em

dada medida, modificação – do mundo centrípeto, em que o ser humano olha para si desde fora, pelo centrífugo, projetado para fora. Este problema da distância faz parte de um dos projetos para pesquisas posteriores ao doutorado.

63 ignorantia. É preciso conhecer o mundo, ir até ele, ocupá-lo. Se por um lado o homem toma distância para se defender, por outro é preciso vencer (gewinnen) esta distância para dominar as coisas, o ambiente. Segundo Robert Buch, no verbete “Neugierde”, em Blumenberg Lesen – ein Glossar (Ler Blumenberg – um glossário), “a sede de saber por si só seria uma característica essencial humana, o conhecimento da sua maior realização. Ela não teria outro propósito além de soltar a liberdade do homem de qualquer amarra”65 (2014, p. 233). É provável que o enorme interesse tanto de Blumenberg quanto de Sena pela obra do cardeal alemão se deva justamente ao fato de que são as primeiras desconfianças de Cusa conduzirão, junto com uma série de outros acontecimentos, ao nosso “mundo centrípeto”, em que o ser humano, após sair dos limites da Terra, ultrapassará o gesto da contemplação das estrelas e enviará máquinas ao espaço, que nos observam de fora, fazendo-nos um objeto de si próprio66. Se já em Os Lusíadas, na última estância do Canto I, Camões escreve

No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida?67 (2002, p. 39) Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno.

qual será a medida humana num mundo em que ele pode olhar desde fora? Ao mesmo tempo que expande o alcance do seu corpo, com máquinas que veem mais longe, tocam mais longe,

65 “der Wissenstrieb selbst wäre demnach also Wesensmerkmal des Menschlichen, Erkenntnis dessen höchste

Erfüllung. Sie habe keinen anderen Zweck, als den Menschen seine Freiheit von jeglichem Zwang fühlen zu lassen”.

66 A distinção contemplatio/operatio, vista mais adiante, é um desses fenômenos. Também se pode apontar a

autópsia, em que o ser humano começa a desvelar seu próprio funcionamento e, claro, os satélites, já nos anos XX. Uma relação de outros acontecimentos que implicam neste giro deve ser levada a um trabalho à parte.

67 Em “Uma interrogação n’Os Lusíadas” (inédito), Mauricio Mattos aborda o problema das edições mais

importantes do século XX do livro de Camões, em que a interrogação das primeiras edições de 1572 é deslocada do sexto para o oitavo verso acima citada. Embora eu utilize uma dessas edições com a interrogação deslocada, faço a correção e cito a estância, a última do Canto I, com a interrogação ao fim do verso seis, conforme corresponde, segundo o artigo de Mattos.

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etc, o ser humano diminui seu próprio corpo, numa relação de compensação que faz do ser humano algo maior e menor, ao mesmo tempo.