• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO IV – NAS CARTAS EDITADAS: EF 4, 1-16

2. Centralidade cristológica

A existência corpórea coincide, como já foi dito, com a presença real, concretamente localizada e sincronizada, isto é, incarnada da pessoa no seu mundo e no seu tempo. Também como se analisou previamente, a respeito da visão holística da pessoa, transmitida pela expressão corpórea, chega a ser possível substituir tal designação por um pronome pessoal ou até pelo próprio termo pessoa (cf. Fl 1, 20). Isto significa que há uma identidade própria entre a pessoa e a sua dimensão corpórea: corpo e pessoa identificam-se mutuamente, ou seja, a pessoa é corpo.

Além desta relação identitária intrínseca ser princípio para defender a unidade e integralidade da pessoa em si mesma, também é assumida na continuidade da existência entre a vida presente e a vida eterna, em que o corpo – sendo transformado por graça de Deus, assumindo uma natureza diferente – é o denominador comum. Por isso, as passagens bíblicas, que se referem à unidade da pessoa de Jesus Cristo pela expressão corpo de Cristo (cf. Rm 7, 4; Cl 1, 22; 2, 9; Fl 3, 21), permitem sublinhar a permanência da mesma identidade, quer enquanto crucificado, quer enquanto ressuscitado, já que estas duas dimensões da existência crística se iluminam reciprocamente, integrando o único mistério pascal, e correspondem, em última instância, à própria identidade de Cristo.

Tal como Paulo apresenta nos primeiros capítulos do primeiro bloco de correspondência com a comunidade de Corinto (1 Cor), é preciso tomar consciência de que Jesus Cristo, o crucificado e o ressuscitado, na plenitude do mistério pascal, é o suporte de

328 Cf. Ibidem, 69-70 e L. C

110 |

toda a vida da comunidade e de toda a subsequente reflexão eclesiológica e ministerial329. Por isso, Ele é apresentado em Ef 4, 15 como a cabeça do corpo, o que não significa apenas um membro no contexto do corpo, mas também a sua liderança, a sua origem e meta, pela qual e para a qual se orientam todos os membros, pela verdade no amor (cf. Ef 4, 15-16). «O corpo do qual ele (Paulo) fala é tão concreto e tão singular como o corpo da Incarnação. A ideia subjacente não é a de uma colectividade supra-pessoal, mas de um organismo especificamente pessoal»330. Aliás, como se analisou a respeito da compreensão estereométrica da Antropologia hebraica – que exerce influência no pensamento paulino, ainda que de forma não exclusiva – é possível que a afirmação de que Cristo é a cabeça deste corpo seja entendida como Aquele que existe sobre todo o corpo (cf. Ef 4, 6), mas também a identificação da pessoa de Cristo, na sua alteridade própria, com todo o corpo (cf. Ef 4, 4), salientando o seu aspecto específico. Neste sentido, o significado de cabeça constitui uma «denominação que não deve ser compreendida trivialmente, como se Cristo fosse um órgão do corpo eclesial, certamente superior, mas dependente dos outros, tal como a cabeça num corpo»331. No fundo, é Cristo quem dá identidade ao seu corpo, à Igreja332.

Por isso, a especificidade do conceito de corpo, marcado pelo genitivo cristológico – sobretudo se entendido como determinativo qualificativo –, permite retirar a ilação de que «a Igreja é o corpo de Cristo, ela depende dele e recebe dele a sua identidade; o elo que a liga a ele distingue-a de todos os outros corpos sociais e religiosos»333 (cf. 1 Cor 12, 27). A identidade da comunidade cristã e de cada membro resulta, por conseguinte, da sua relação com Cristo, vivendo n’Ele e para Ele, que é o seu princípio e fundamento, mas também a sua meta.

«Esta relação […] é feita de interioridade, de intimidade profunda neste sentido, em que Cristo e a Igreja representam duas realidades indissociáveis. E, no entanto, o Cristo

329

Cf. J.A.T.ROBINSON, op. cit., 85. 330

Ibidem, 86. 331 J.-N. A

LETTI, op. cit., 190. 332 Cf. J. D. G. D

UNN, The Theology of Paul the Apostle, 548. 333 J.-N. A

| 111

“total” não significa que Cristo e a Igreja constituem a mesma realidade, nem mesmo que a Igreja constitui um prolongamento de Cristo. Antes, é Cristo que continua a viver e a agir na Igreja»334.

Cristo assume, assim, um papel nuclear na existência do corpo, conferindo-lhe a sua própria identidade: a Igreja, enquanto corpo de Cristo, é a permanência da incorporação de Cristo no tempo e no espaço, na história e no mundo. «Os cristãos são, literalmente, o organismo ressuscitado da pessoa de Cristo, em toda a sua realidade concreta. […] A Igreja é, à letra, agora, o corpo ressuscitado de Cristo»335. Por isso, a Igreja continua, através da sua expressão corpórea, a transmitir a experiência kenótica de Cristo (cf. Ef 4, 7-11).

A presença e a relação intrínseca de Cristo com a Igreja, que é o seu corpo, vão para além das fulcrais questões da unidade-diversidade e da mesma identidade. Na verdade, Cristo dá-se corporeamente como alimento, entrega o seu corpo na cruz e é assumido como o vivente ressuscitado, para aqueles que são constituídos no seu corpo336. Trata-se, essencialmente, da concessão oblativa de uma vida nova, liberta do corpo do pecado e da

morte, a todos os membros do corpo eclesial (cf. Rm 6, 6.12; 7, 4)337. Esta graça de Cristo, para com os que n’Ele acreditam e d’Ele se nutrem, é sinal visível, revelado, incarnado, de forma especial na celebração Eucaristia, da marca distintiva e da presença actual e actuante de Cristo no seu corpo, pela actualização do memorial, em correspondência ao seu mandato (cf. 1 Cor 11, 24). «A linguagem de Paulo aqui providenciou a base para toda a subsequente reflexão teológica, na correlação entre sacramento e Igreja, entre o único corpo, que é o pão, e o único corpo, que é a Igreja»338. Por isso, a Eucaristia, enquanto corpo de Cristo, é fonte de unidade orgânica e de comunhão para a vida das comunidades cristãs (cf. 1 Cor 12, 13), tornando-as relacionais entre si e com Cristo, e erradicando qualquer motivo de cisão ou de

334 J. R

IGAL, op. cit., 85. Cf. R. FABRIS, art. cit., 86 e H. SCHLIER, Essais sur le Nouveau Testament, 370-371.

335

J.A.T.ROBINSON, op. cit., 85-86 (Os itálicos correspondem ao texto original do autor). 336 Cf. Ibidem, 86.

337 Cf. Ibidem, 89. Cf. R. F

ABRIS, art. cit., 90. 338 J. D. G. D

112 |

relação baseada na superioridade ou inferioridade, que nelas possam porventura existir339 (cf. 1 Cor 12, 25).

Do referido é possível inferir, com as seguintes palavras de James Dunn, que

«a assembleia cristã é um corpo, como o corpo político secular, mas é diferente precisamente porque o seu carácter distintivo e identificador é que ela é o corpo de Cristo. […] A identidade da assembleia cristã como “corpo”, contudo, é dada não pela localização geográfica ou fidelidade política, mas pela sua fidelidade comum a Cristo (visivelmente expressa em especial pelo Baptismo e pela participação sacramental no seu corpo)»340.

Documentos relacionados