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5.3 ONDE ESTAMOS: EMPREENDEDORISMO E O ARTESANATO

5.3.1 Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e o Patrimônio Imaterial

Minha bisavó fazia, minha vó, minha mãe, minhas tias são tudo paneleira e eu e minhas irmãs também temos esse ofício.33

Como já foi dito, em 1985, foi criado o Ministério da Cultura (MinC) ao qual foi incorporada a Fundação Pró-Memória e a Funarte, com o Instituto Nacional do Folclore. Para construir suas metas prioritárias de atuação e definir sua estrutura interna, foi realizado o 1º

33 Depoimento de Berenícia Correa, artesã de Vitória no Espírito Santo, retirado do documentário Mulheres artesãs brasileiras – Projeto ONU, 2013.

Seminário de Cultura para ouvir representantes do setor cultural num exercício de diálogo democrático. Dentre os vários temas discutidos, incluiu a filosofia política do ministério, estabelecendo e demarcando tanto o que era necessário realizar quanto o que não caberia às políticas de cultura do país. Uma das solicitações que consta no documento está:

11. O MinC deve proceder à substituição de conceitos, definições e categorias amplamente superados nas ciências sociais, como é exemplo o de folclore, eufemismo para processos culturais populares significativos. Outro exemplo é o próprio conceito de cultura, descolonizado em teoria, mas vigente na prática. (BRASIL, 1985a, p. 09)

O questionamento sobre o conceito de folclore levantado por Lina Bo Bardi e, em seguida, por Aloísio Magalhães ainda era pauta e demanda dos agentes culturais e marcou presença na construção das diretrizes do MinC. Em outro momento, o documento ressaltou a importância das “minorias étnicas”34 para construção cultural brasileira.

O 2º Seminário, realizado no mesmo ano, teve por objetivo construir a Política Nacional, a partir da consolidação das proposições do encontro anterior, e definiu o que compreende por cultura como aquilo que envolve comportamentos e fazeres enquanto um processo “em que não se deve privilegiar o produto – habitação, templo, artefato, dança, canto, palavra – em detrimento das condições históricas, socioeconômicas, étnicas e de meio ambiente em que esse produto se encontra inserido” (BRASIL, 1985b). Apesar da criação do Ministério da Cultura e dos debates em torno dele, é na Assembleia Constituinte que acontece a disputa para políticas culturais que consegue incluir uma seção sobre cultura e, em especial, o patrimônio cultural brasileiro na Constituição.

Em 1990, o governo Collor promoveu um desmantelamento em diversos setores da administração pública, incluindo a cultura. Extinguiu o MinC, a Fundação Pró-Memória, o SPHAN e a Funarte. Essas decisões foram acompanhadas de ações de resistência, em especial pelo Instituto Nacional do Folclore (INF), que tinha Amália Lucy Geisel, filha do ex-presidente Ernesto Geisel, na gestão da instituição. Amália serviu como um escudo contra a desestruturação institucional, juntamente com a aliança com Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Associação de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) (MENDES, 2016). O INF continuou existindo, mas com grandes perdas e atuação enfraquecida.

A resistência dos agentes culturais ao desmonte das instituições públicas surtiu efeito após a saída de Collor da presidência, em 1992. O MinC retornou em 1992 e a Funarte e o

IPHAN, em 1994. O estatuto da Funarte, aprovado em 1997, incluiu como parte da sua estrutura o Centro Nacional de Cultura Popular, posteriormente denominado Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), criados para fomentar projetos e atividades voltados para o folclore e cultura popular. A nova Funarte abarcou, assim, o antigo INF e retomou as atividades de pesquisa, a Sala do Artista Popular, o Museu do Folclore Edison Carneiro e a Biblioteca Amadeu Amaral.

Após o período de poucas atividades, a equipe da coordenação do CNFCP considerava os resultados insuficientes e queria atuar nos problemas relacionados à produção da arte popular. Inspirado nas propostas do Encontro Produção de Artesanato Popular e Identidade Cultural, realizado em 1983, e nos resultados do Projeto Piloto de Apoio ao Artesão realizado, em 1984, em Juazeiro do Norte, no Ceará, e em Paraty, no Rio de Janeiro, foi criado o Projeto de Assistência ao Artesanato Comunitário (PACA), em 1998 (MENDES, 2016). A viabilização do projeto só foi possível pela parceria com o Programa Artesanato Solidário, que e surgiu no governo FHC e se propunha a trabalhar com artesanato tradicional pelo viés antropológico. A experiência de pesquisa de campo e institucional do CNFCP foram essenciais para a constituição do Artesanato Solidário (GORDINHO, 2016).

O PACA se tornou o projeto-piloto do Artesanato Solidário e foi implantando na cerâmica da região do Candeal, no município de Cônego Marinho, no estado de Minas Gerais, com financiamento da Sudene que atuava na região. A metodologia não previa propostas prontas, mas soluções construídas junto ao artesão, sem que houvesse interferência na forma do objeto. O projeto apoiou o artesão no acesso às matérias-primas, na organização dos artesãos em associações e cooperativas, no repasse das técnicas tradicionais e na inserção no mercado de forma justa e sem perder a identidade cultural. Uma das estratégias de comercialização foi a realização da exposição “Mulheres do Candeal” na Sala do Artista Popular e na venda dos objetos em exposição. Com os bons resultados do projeto piloto, o Artesanato Solidário desenvolveu 26 projetos utilizando a metodologia do CNFCP que buscava respeitar os saberes, formando agentes locais, mas estimulando o desenvolvimento social (MENDES, 2016).

Figura 34 – Potes de cerâmica da região do Candeal

Fonte: Acervo digital do CNFCP, 2015.

Outro projeto que mudou os rumos institucionais do CNFCP foi o “Celebração e Saberes da Cultura Popular”, realizado entre os anos de 2001 e 2006, que surgiu após o Decreto n. 3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como parte do patrimônio brasileiro a ser registrado por meio do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial. Pelo decreto, o patrimônio imaterial pode ser registrado pelos seguintes livros:35

I – Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II – Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

III – Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (BRASIL, 2020a).

O Decreto surgiu por demanda dos agentes culturais para o reconhecimento dos saberes e expressões do povo, especialmente relacionados à cultura popular. O Seminário

Internacional Patrimônio Imaterial, realizado em 1997, produziu a Carta Fortaleza recomendando a realização do inventário desses bens em âmbito nacional, pelo IPHAN, e a elaboração de uma proposta de instrumento legal para o registro. O CNFCP era a instituição mais preparada para testar os instrumentos e a metodologia previstos no Decreto considerando sua experiência em pesquisa, documentação e difusão da cultura popular. Assim, o projeto “Celebração e Saberes da Cultura Popular” aplicou a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais em diversas manifestações da cultura popular, principalmente as que tiveram atuação em parceira com o Artesanato Solidário, como a cerâmica do Candeal, de Rio Real, na Bahia; o artesanato de cuias no Baixo Amazonas; o modo de fazer viola de 10 cordas do Alto e Médio São Francisco, em Minas Gerais; e o modo de fazer viola de cocho de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, se considerarmos apenas os saberes relacionados à produção artesanal.

O primeiro Registro de um bem cultural brasileiro realizado pelo IPHAN foi o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras no Livro do Registro dos Saberes, concretizado em 2002. Goiabeiras é um bairro da cidade de Vitória no Espírito Santo, onde são produzidas panelas cerâmicas com modelagem manual de tradição indígena, com queima a céu aberto e aplicação do tanino36 como tintura. O registro do ofício veio seguido do Plano de Salvaguarda elaborado e implementado pelo IPHAN que envolve “o acompanhamento dos processos e das atividades tradicionais, bem como de ocorrências de intervenções nas condições de produção, comercialização e promoção das panelas de barro” (IPHAN, 2006, p. 47). O diagnóstico realizado sobre o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras indicou problemas que envolvem aspectos gerenciais da produção e da associação, acesso às políticas públicas de saúde e previdência e acesso e manejo sustentável da matéria-prima. Outra preocupação demonstrada no plano foi como converter o Registro em agregação de valor aos produtos, para um preço de mercado mais justo e para garantir a proteção contra imitações. Parte dos problemas identificados não cabiam ao IPHAN, que não teria mecanismos institucionais para propor soluções, por isso foi essencial realizar parcerias com outras instituições dentre elas o Sebrae, mas, especialmente, o Artesanato Solidário e o CNFCP. Cabe ressaltar que o Registro foi importante para que os artesãos tivessem todas as licenças necessárias para extração da argila e proteção da fonte de matéria-prima, garantindo a continuidade do ofício.

36 O tanino é retirado da casca do mangue-vermelho e ao ser aplicado na cerâmica, age como selante e imprime a coloração preta à peça

Figura 35 – Ofício Paneleiras de Goiabeiras: raspando e arredondando o fundo da panela com faca

Fonte: IPHAN, 2006, p. 42.

Figura 36 – Ofício Paneleiras de Goiabeiras: açoitando a panela com a vassourinha embebida de tanino

Fonte: IPHAN, 2006, p. 36.

Atualmente, existem nove registros de bens imateriais que se relacionam diretamente com a atividade artesanal, sendo cinco registrados no livro dos saberes e quatro no livro de expressões: i) ofício das paneleiras de Goiabeiras; ii) modo de fazer da viola de cocho; iii) modo

de fazer da renda irlandesa de Divina Pastora; iv) modo de fazer cuias do Baixo Amazonas; v) saberes e práticas associadas ao modo de fazer boneca Karajá; vi) Ritxòkò: expressão artística e cosmológica do povo Karajá; vii) arte Kusiwa, pintura corporal e artes gráficas Wajãpi; viii) teatro de bonecos do Nordeste;37 ix) literatura de cordel (IPHAN, [s.d.]). Estão em processo de instrução para registro os bens imateriais relacionados as atividades artesanais: bico e renda singeleza; modo de fazer arte santeira do Piauí; Kenê Kui, grafismos do povo indígena Huni Kuin (Kaxinawá); processos e práticas culturais referentes à canoa caiçara. (IPHAN, [s.d.])

Figura 37 – Cuias do Baixo Amazonas

Fonte: Acervo pessoal (2020).

A política brasileira de salvaguarda do patrimônio imaterial foi referência mundial e inspiração para a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial” da UNESCO, realizada em 2003, da qual o Brasil é signatário. A perspectiva de salvaguarda prevista no documento diverge da usual por considerar as transformações naturais das práticas, expressões, conhecimentos e técnicas “em função do seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (UNESCO, 2003, p. 04). O documento ainda enfatiza a importância da participação da comunidade, responsável pela criação e manutenção do patrimônio, como agente ativo na sua gestão.

Em 2003, o CNFCP é incorporado ao IPHAN, pela sua longínqua atuação com a cultura popular e sua forte presença no registro de salvaguarda do patrimônio imaterial. Após

o fim do projeto “Celebração e Saberes da Cultura Popular”, em 2006, sua atuação se volta para projetos de apoio a grupos de artesãos. Em 2008, o CNFCP e a Associação Cultural de Amigos do Museu do Folclore Edison Carneiro, por um convênio firmado com o Ministério da Cultura pelo Programa Mais Cultura, desenvolveram o Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural (Promoart). Seu objetivo era “agregar valor cultural ao artesanato de tradição, com vistas a um mercado justo e qualificado ” (CNFCP, [s.d.], p. 04).

O projeto atuou em 75 municípios de todas as regiões do país e teve como foco ações em três eixos a seguir: i) processo de produção, melhorando as condições de trabalho, fortalecendo a transmissão dos saberes tradicionais, valorizando as referências locais e tradicionais, qualificando a gestão dos grupos e preservando a autonomia do artesão; ii) comercialização, contribuindo para a autonomia do artesão no acesso ao mercado, ampliando canais de comercialização e buscando a sustentabilidade econômica; iii) divulgação e difusão, contribuindo para o reconhecimento do artesanato de tradição, como diferencial de mercado, e preservando a memória sobre os processos artesanais. (CNFCP, [s.d.]). O projeto encerrou suas atividades em 2018, coincidindo com o período de instabilidade política no país, mas foram quase dez anos de atuação voltados para a preservação das técnicas tradicionais, buscando caminhos alternativos para a comercialização.

O CNFCP continua localizado na cidade do Rio de Janeiro com o Museu do Folclore Edison Carneiro, a Sala do Artista Popular e seu espaço de comercialização, a Biblioteca Amadeu Amaral e seu incrível acervo de mais de 60 anos de trabalho. Os debates em torno do folclore e a transição para cultura popular na sua forma de atuação não foram suficientes para que as pessoas acompanhassem as mudanças institucionais, por isso continuam chamado o espaço de Museu do Folclore e o CNFCP não nega o apelido que recebeu.