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Publicado em 1989, o romance, História do cerco de Lisboa, de José Saramago, é citado, muitas vezes, como paradigma para se pensar a elaboração histórica na ficção saramaguiana. De maneira geral, essa obra não é considerada um romance histórico tradicional, mas uma metaficção historiográfica, por se desenrolar, em um primeiro plano, no tempo atual, e, apenas em outro plano, interior a este, apresentar uma abordagem histórica referente à tomada de Lisboa, em 1147. O “não” inserido pelo protagonista Raimundo Silva, em uma obra também intitulada História do cerco de

Lisboa, vem servindo para se refletir sobre as diversas negações à história oficial, contempladas nos romances de José Saramago. Nesse sentido, uma frase da narrativa parece, mesmo, exemplar para se pensar a estruturação desse texto, como de outros do autor: “De história sacra, por agora, temos que nos chegue.” (SARAMAGO, 2004, p.22)

Mais do que a negação dos monumentos históricos, observamos, nessa obra, uma recusa ao tratamento generalizante dos fatos oficiais. O narrador aproveita-se ao máximo da liberdade conferida pelo lugar literário de sua enunciação, para elaborar considerações bastante argutas e inusitadas extraídas, principalmente, das subjacências

dos fatos abordados. Um exemplo disso pode ser verificado pelo modo como o dado histórico, referente ao cerco realizado pelos portugueses, suscita formas interessantes de estruturação, no interior da trama ficcional, que mantêm uma relação de contiguidade com a idéia de cerco. Outro tipo de elaboração, tangencial ao contexto fabular aí contemplado, refere-se à maneira como o antagonismo das partes envolvidas no cerco, portugueses/cristãos e mouros/muçulmanos, é relativizado. De forma bem irônica, apresentam-se contextos, nos quais as divergências entre os aspectos religiosos e culturais entre os dois lados parecem totalmente arbitrários e inconsistentes.

E são justamente reflexões como essas, abarcadas na obra de Saramago, que nos interessam aqui: mais uma vez vemos como a abordagem do mouro na literatura portuguesa gera subsídios para se pensar, de modo bastante significativo, essa cultura, e, extensivamente, as relações humanas aí implicadas.

Como dissemos, o enredo do romance contempla, entre outras coisas, o episódio histórico da tomada de Lisboa pelos portugueses, em 1147, então ocupada pelos mouros. O protagonista Raimundo Silva, revisor de uma editora, ao fazer a correção do livro, História do cerco de Lisboa, começa a conjeturar sobre a fantasiosa hipótese de os cruzados se recusarem a ajudar D. Afonso Henriques em sua empreitada de reconquista da cidade, dominada pelos muçulmanos. Contrariando o seu histórico de revisor sempre correto e rigoroso, Raimundo Silva modifica deliberadamente o texto revisado, através da introdução da palavra “não”, em uma frase referente ao assunto, concretizando, assim, a hipótese imaginada. Na narrativa histórica por ele modificada e entregue à editora para publicação, passa a constar, então, que os cruzados negaram sua ajuda aos portugueses.

concernentes ao desenrolar da narrativa, – como o conflito com a editora e sua apresentação à Maria Sara – parece constituir-se como o ponto crucial, de onde emerge a condição apontada acima, referente a uma nova possibilidade de estruturação discursiva que, a nosso ver, mimetizaria a concepção, mesmo, de um cerco. Como veremos adiante, diversas relações pessoais, que se configuram ao longo da narrativa, passam a ser descritas como interações entre os dois lados de um cerco. Tentaremos analisar essa questão com maior acuidade ao longo desse capítulo. Antes disso, porém, atentamos para o fato de que há uma interferência incisiva entre o ato subversor de Raimundo Silva, em relação à História do cerco de Lisboa, por ele modificada, e sua própria realidade cotidiana. Ao modificar o texto escrito pelo historiador, o protagonista passa a ter, também, a percepção comprometida, sobre os fatos a sua volta, como se pode verificar na seguinte passagem:

Raimundo Silva, que justamente se encontra nos lugares da antiga cidade moura, tem, desta coincidência histórica e topográfica, uma consciência múltipla, caleidoscópica, sem dúvida graças à decisão que formalmente tomou de haverem os cruzados resolvido não auxiliar os portugueses [...], para Raimundo Silva, e até nova ordem ou até que Deus Nosso Senhor doutra maneira o disponha, Lisboa continua a ser dos mouros [...] (SARAMAGO, 2004, p.60 - 61)

A situação descrita acima, na qual o revisor perambula pela parte moura de Lisboa, retrata, embora de forma emblemática, a confusão estabelecida entre a narrativa histórica por ele revisada e sua própria existência. Antecipa-se, aqui, a permanência histórica dos mouros, que ganhará uma feição mais abstrata ao longo do romance, como forma de alteridade, que ora se aproxima da cultura portuguesa, constituindo mesmo uma identificação, ora figura-se, em um âmbito pessoal, como pólo antagônico, representativo do estranhamento, da ameaça.

pedindo esmolas à porta de um restaurante, corrobora a proposição de uma confluência entre o texto historiográfico modificado por Raimundo Silva e sua percepção da realidade: “o revisor, que, indo atrás dos pensamentos que o ocupam, não viu cigana, mas moura, na hora da primeira necessidade [...] Mas o cerco não acabou, avisam os olhos da cigana.” (SARAMAGO, 2004, p.73).

Assim a emergência de uma alteridade estranha, presentificada pelos mouros, e da configuração, mesmo, de um cerco, como mecanismo de separação e ameaça, advêm da intervenção feita por Raimundo Silva em um texto historiográfico, mas alcança o plano narrativo mais abrangente, referente ao romance, no qual está contido este relato histórico. Maria Lúcia Wiltishire de Oliveira aponta três possibilidades discursivas no romance de José Saramago:

Temos ali a confluência de, no mínimo, três tempos, três vozes, três enunciados. Há o discurso literário comandado pelo narrador; há os discursos dos historiadores trazidos à colagem, há um (suposto) discurso histórico-literário da personagem Raimundo. (OLIVEIRA, 2000, p.226)

E o que perpassa essas três linhas narrativas é justamente a questão da alteridade. Nos discursos históricos, representada, de forma mais imediata, pelos mouros; na voz do narrador externo, percebida, principalmente, pela distância que separa Maria Sara e Raimundo Silva; e, naquele suposto texto conduzido pelo revisor- escritor, simbolizada pela interação entre Mogueime e Ouroana, e pelo antagonismo entre mouros e portugueses.

Desse último ponto, resulta o outro aspecto que tencionamos tratar nesse texto: o pensamento sobre a cultura portuguesa originado pela presença dos mouros na narrativa. Valendo-se, também, da idéia de cerco que pressupõe a delimitação entre dois lados opostos e rivais, no caso cristãos-portugueses e os mouros-muçulmanos, o

narrador apresenta, de forma um tanto despretensiosa, a confluência entre as duas culturas aí antagonizadas.

A denominação corrente de bárbaros feita aos mouros é também utilizada nessa obra, como se pode verificar na passagem abaixo, e em muitos outros pontos do romance. Mas, como também se pode perceber no seguinte excerto, a terminologia e os próprios fatos narrados são constituídos de forma irreverente e irônica. Aqui, e ao longo de quase todo o texto, prevalece uma estruturação aparentemente coerente, fundamentada em silogismos irrefutáveis, que resulta, entretanto, em uma expressão absolutamente bizarra dos fatos. Assim, em um tom muito bem-humorado, resultante da leviandade e despretensão com os quais constitui-se o discurso, o narrador apresenta a seguinte reflexão sobre o milagre de Ourique:

[...] aquele milagre de Ourique, celebérrimo, quando Cristo apareceu ao rei português, e este lhe gritou, enquanto o exército prostrado no chão orava, Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis, mas Cristo não quis aparecer aos mouros, e foi pena, que em vez da crudelíssima batalha poderíamos, hoje, registar nestes anais a conversão maravilhosa dos cento e cinqüenta mil bárbaros que afinal ali perderam a vida, um desperdício de almas de bradar aos céus. (SARAMAGO, 2004, p.20)