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CAPÍTULO 2 – O MÉTODO DE EDITH STEIN PARA UMA INVESTIGAÇÃO QUE VISA

2.1. A certeza do ser do eu

Embora Edith Stein se interesse pelo mundo imanente da consciência, ela defende que uma orientação filosófica absolutamente transcendental é incapaz, por si só, de esclarecer o modo como, em contrapartida, o mundo transcendente se dirige à consciência. A comentadora Mary Catherine Baseheart afirma:

“Edith Stein é uma filósofa da consciência, mas ela é a antítese da tendência iluminista de conceber a consciência enquanto puro pensamento e o sujeito meramente como um si pensante e auto-suficiente (BASEHEART, 1997, p. x)”.

48 Porém, a proposta de Edith Stein de chegar ao domínio transcendente31, das coisas que estão na realidade, não pode se justificar por um “salto [Sprung]”. Em Potenz und Akt (Potência e ato), ela afirma:

“Estamos engajados numa consideração genuína das origens e se desejarmos compreender o que é onticamente mais distante [ontisch Fernere] ao começarmos por aquilo que nos é mais próximo, devemos nos mover passo a passo (STEIN, 2009, p. 15)”32.

Para Edith Stein, aquilo que nos é mais próximo se identifica com o fato do próprio ser do eu [die Tatsache des eigenen Seins]. Em Ser Finito e Ser Eterno, ela afirma que sempre que a mente humana em sua busca pela verdade encontra um ponto de partida indubitável, ela encontra o inescapável fato de seu próprio ser (STEIN, 2006, p. 40). Para explicar essa indubitável constatação, a autora cita uma passagem de Agostinho, em De Trinitate (A Trindade)33:

“Excetuadas as coisas que chegam a nós pelos sentidos, quantas outras restam que conhecemos com certeza, como por exemplo o fato de sabermos que estamos vivos. Neste pormenor, não tememos absolutamente ser enganados por falsa verossimilhança, pois aquele mesmo que se engana, vive, e também tem certeza disso.

(AGOSTINHO, 1994, p. 510).”

Adiante, em sua tentativa de elucidar a indubitabilidade acerca do nosso próprio ser ou existência, Edith Stein faz referência à obra Meditationes de prima philosophia (Meditações sobre filosofia primeira) de René Descartes. Segundo a autora, em tal obra

31 Edith Stein diferencia imanência de transcendência conforme Husserl. A imanência diz respeito ao domínio do “eu puro”, ao passo que a transcendência é o domínio que abrange toda a realidade psico-física que transcende ao imanente, envolvendo assim até mesmo o que seria o “eu empírico” e o “eu psicológico”.

32 Daqui por diante, a principal obra de Edith Stein a ser analisada será Ser Finito e Ser Eterno. Porém, em alguns momentos deste capítulo, para compreendermos melhor o pano de fundo das argumentações da autora, recorrerei paralelamente a trechos presentes na obra anterior dela, Potência e ato. Nesta obra, apesar de constatarmos certas passagens que foram reescritas e aprofundadas em Ser finito e Ser Eterno, é possível notar que a autora se presta a esclarecer melhor o seu próprio método de investigação filosófica, principalmente no que se refere à sua tentativa de compatibilizar reflexões sobre o sentido do ser com a fenomenologia de Husserl. As referências que farei de Potência e Ato reportam à tradução para a língua inglesa: STEIN, Edith. Potency and act. Tradução de Walter Redmond. Washington: ICS Publications, 2009. Por sua vez, o uso que faço dessa tradução será sempre cotejado com a versão original, em alemão (Potenz und Akt: Studien zu einer Philosophie des Seins), disponível online. In: http://www.edith-stein-archiv.de/beispielseite.

33 Optei por transcrever o trecho correspondente da tradução em língua portuguesa (Livro XV, 21b), feita por Agustino Belmonte, publicada pela Paulus (1994), ao invés de traduzir para o português a tradução de Edith Stein do original de Agostinho.

49 Descartes realizou a tentativa de reconstruir a filosofia enquanto uma ciência segura, fundada por uma certeza indubitável e, neste esforço, teve início a metodologia da dúvida universal, onde o sujeito elimina tudo aquilo que - sendo possivelmente capaz de enganá-lo ou iludi-lo- seria, portanto, objeto de dúvida. Dessa maneira, “o que permaneceu como um dado irredutível foi o fato da dúvida mesma e, de um modo geral, o fato do pensamento mesmo e, no pensamento, o ser: Cogito, sum [in dem Denken das Sein]: Cogito, sum (STEIN, 2006, p. 41)”. Por fim, Edith Stein explica brevemente o método desenvolvido por Husserl para alcançar, pela exclusão de tudo aquilo que possa levantar dúvidas, um conjunto de dados absolutamente evidentes. Na ideia de fenomenologia desenvolvida por Husserl, o percurso filosófico pode ser caracterizado pela busca de um conhecimento verdadeiro e radicalmente fundamentado no voltar-se sobre si mesmo, enquanto eu puro.

Dessa maneira, enquanto pode haver interrogações a respeito da existência ou não do objeto que percebo com os meus sentidos como real, não pode haver dúvida sobre a existência da minha percepção. Posso duvidar se as conclusões que extraio de certas premissas são corretas, mas meu raciocínio silogístico enquanto tal é um fato indubitável. E o mesmo se aplica a todos os meus desejos e volições, meus sonhos e esperanças, minhas alegrias e tristezas. O eu é consciente de tudo isso. Seja no ‘viver’

de Agostinho, no ‘eu penso’ de Descartes ou nas vivencias ou consciência em Husserl, está implicado um ‘eu sou’. Este eu sou não é uma conclusão, como parece estar sugerido pela sentença Cogito, ergo sum, mas algo implicitamente dado: eu sou, enquanto penso, ou desejo, ou em qualquer outro modo em que ajo espiritualmente [geistig mich regende] (Cf. STEIN, 2006, p. 41).

Para Edith Stein, a certeza de que sou é o meu conhecimento mais primordial, não em sentido temporal, muito menos no sentido de um primeiro princípio do qual outras verdades são deduzidas, mas no sentido de conhecimento mais imediato de que disponho. Dessa maneira, será a partir de questões apresentadas pela própria imediatez do conhecimento, isto é, do conhecimento evidente do eu que se dá na base do agir intelectual, que Edith Stein começará a sua investigação filosófica. Segundo a autora, quando o intelecto renuncia sua atitude natural de se ocupar com objetos exteriores, e volta para si próprio, três questões podem ser levantadas a partir da certeza do eu sou:

(1) O que é o ser do qual sou consciente? [Was ist das Sein, dessen ich inne bin?] (2) O que é o eu que é consciente de seu ser? [Was ist das Ich, das seines Seins inne ist?]? (3) O que é o impulso espiritual [geistige Regung] no qual eu sou e no qual eu sou

50 consciente de mim mesmo e do próprio estímulo? (STEIN, 2006, p.42). Em resumo, ao levantar essas três questões, Edith Stein irá analisar, o ser, o Eu e a unidade da experiência (em que eu sou).