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A emergência da televisão acabou ratificando um novo padrão de relaciona- mento com a atividade cultural, encarando-a do ponto de vista da lógica do mercado, como um investimento comercial. Na década de 50, ela já funcionava como indús- tria de cultura de massa nos Estados Unidos, exportando séries produzidas em Hol- lywood para países de sua área de influência, entre eles o Brasil. Por outro lado, aqui a televisão mal havia chegado, consistindo ainda num bem restrito e, por conta da fragilidade tecnológica das empresas brasileiras, preferiu importar programas, ao invés de produzi-los.

Assim, conservou-se desconectada da lógica comercial, tanto que, em compa- ração com outras mídias (rádio e jornal), atraiu pequena quantidade de anúncios pu- blicitários. Era encarada com certa desconfiança pelos anunciantes, que reafirmavam sua fidelidade aos veículos tradicionais para a publicidade de seus produtos. Só mais tarde, com a criação das TVs Excelsior e Globo, esse espaço publicitário foi raciona- lizado. Até então, os anunciantes não só vendiam seus produtos, como também fi- nanciavam, viabilizavam e produziam eles mesmos os comerciais de TV.

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Raymond Williams, Television, Technology and Cultural Forms. New York: Schocken Books, 1975.

A mesma ausência de sintonia com o mercado levou a TV brasileira, na épo- ca, a abrir espaço para que profissionais do teatro e do cinema desenvolvessem pro- duções com conteúdo mais sofisticado (adaptações de textos clássicos, por exem- plo), que foram sendo suspensas na medida em que o veículo passou a se caracteri- zar verdadeiramente como indústria cultural e de caráter nacional. A passagem da TV a essa condição se deu efetivamente em meados dos anos 60, quando as imagens televisivas (antes apenas acessíveis a pequena parte do território brasileiro) puderam ser veiculadas em todo o País, viabilizadas por um sistema de telecomunicação que também propiciou a integração do mercado e a consciência nacional.

Na década de 70, os “enlatados” americanos preenchiam boa parte da pro- gramação das nossas emissoras; no entanto, o jornalismo e os programas esportivos passaram a receber incentivos e a telenovela firmou-se como o grande produto tele- visivo. A partir daí, ocorreu uma considerável expansão na produção, distribuição e consumo nacionais, ainda que concentrada em um mesmo grupo de comunicação, a Rede Globo de Televisão.

Nos anos 80, teve início a incrementação dos recursos tecnológicos de comu- nicação por satélites, sedimentação dos sistemas de TVs por assinatura e de redes de alimentação desses sistemas e digitalização das informações que por eles trafegam. Em função desses avanços, a estratégia das empresas de comunicação adotada no mundo e, no Brasil, pela Rede Globo e por outras emissoras nacionais (entre elas, o SBT, a Bandeirantes e a Record), foi investir, de um lado, no aprimoramento técnico dos programas e, de outro, no crescimento da publicidade, especialmente no que tocava à produção das telenovelas e à sua exploração comercial. Nos anos 90, tam- bém o telejornalismo deu um salto qualitativo, expandindo seu universo temático, adotando novas formas de tratamento da informação e começando a desgarrar-se da influência institucional e do empresariado, como já era comum na Europa e nos Es- tados Unidos.

No entanto, as telenovelas brasileiras confirmaram ser o carro-chefe da pro- gramação na maioria dos canais nacionais. José Mário Ortiz Ramos sustenta que a telenovela é o maior exemplo da conquista de um padrão de qualidade competitivo internacionalmente:

Consolidou-se uma estrutura, envolvendo várias dimensões: o acio- namento da tradição do gênero que foi combinado com inovações tecnológicas (videoteipe, câmaras mais sensíveis, editores eletrôni- cos, cor, câmaras portáteis etc.) e com o uso racionalizado dos estú- dios; a formação de um corpo técnico especializado na utilização de novas câmaras, no trabalho de iluminação – foram absorvidos inclu- sive fotógrafos do cinema para explorar os limites da luz na TV – e na construção de cenários; e a catalização dos criadores culturais mais destacados do País que, combinados com os “tradicionais”, e com os “novos”, sofisticaram o padrão da dramaturgia.54

A alta qualidade da teledramaturgia no Brasil, aliada ao concentracionismo da teledifusão pela Rede Globo e a sua hegemonia cultural imposta a públicos regionais com identidades bastante distintas – num contexto de regime autoritário que impe- rou por duas décadas e de uma população vítima da má distribuição da renda e do baixo nível de educação –, reforçou a televisão brasileira como a própria expressão, mais que representação, da realidade. Hoje em dia, muito além de exportar suas no- velas aos quatro cantos do mundo, a Rede Globo firma parcerias internacionais – entre outras, com a emissora americana em idioma hispânico Telemundo – para a produção de telenovelas em versões adaptadas a outras línguas e realidades.

Mas durante essas décadas todas em que conquistou e influenciou o gosto da audiência mundial, a televisão carregou consigo o estigma da banalização da cultura, pelo fato de ter adotado uma nova lógica comercial nessa esfera de atividade. Foi apenas na breve fase anterior à generalização e popularização da TV, conhecida co- mo “The Golden Age of Television”, mais ou menos entre 1947 e 1960, que o veí-

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José Mário Ortiz Ramos, Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 49.

culo conseguiu ser encarado com a devida seriedade por parte do conjunto dos críti- cos e espectadores – por sua vez, o público mais sofisticado se dirigia comumente aos cafés para ver televisão. Como reflexo dessa credibilidade do veículo, “na déca- da de 50, a importante revista francesa Cahiers du Cinéma, no período em que foi dirigida por André Bazin (um dos primeiros entusiastas da televisão), trazia o subtí- tulo Revue du Cinéma et du Télécinéma”.55

Hoje em dia, o máximo que se credita à TV é permitir o acesso do público leigo a alguns conteúdos legitimamente cultos, como se isso fosse de menor impor- tância. O alcance da televisão é tão grande que a sua menor audiência supera de lon- ge a de qualquer outro meio. Nela, o produto mais sofisticado deixa de ser elitista, porque encontra sempre uma audiência de massa.

Importa, assim, olhar a TV em seu conjunto, que, como qualquer outro meio de comunicação, admite conteúdos com maior e menor grau de qualidade, e aposen- tar a conclusão taxativa e simplista de que todo produto televisual é um lixo. É pre- ciso valorizar as várias iniciativas de canais espalhados pelo mundo56 e no Brasil, entre elas, as do núcleo do diretor Guel Arraes, em pleno seio da grande indústria cultural televisiva brasileira que é a Rede Globo. Além disso, carece perceber que, em conseqüência de uma propensão internacional de declínio dos espetáculos públi- cos e do apogeu da cultura a domicílio (com a disponibilização do rádio, da TV, do vídeo e da internet), “as ‘belas artes’ (literatura, teatro, música, ópera) e certas pro- duções populares ou étnicas inserem-se nesses circuitos massmidiáticos para expan- dir sua audiência”, como insiste Néstor García Canclini.57

A produção cultural moderna, na opinião de José Mário Ortiz Ramos, exige que se repense os vínculos e as interpenetrações entre o popular e o hegemônico, procurando captar de que modo a cultura de massa é enriquecida pelos saberes acu-

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Arlindo Machado, A Televisão levada a Sério, op. cit., pp. 22-23 [grifo acrescentado]. 56

Cf. relação abrangente desses programas em Arlindo Machado, A Televisão levada a

Sério, op. cit.

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mulados pelos povos ao longo de sua história. Como resultado dos cruzamentos en- tre o popular e o de massa, que já têm longa história, em vários dos produtos televi- sivos, “características de uma produção artística de origem mais ‘culta’, de ‘van- guarda’, passam assim a habitar e irrigar, com naturalidade, a cultura de massa”.58

As obras literárias, peças musicais clássicas e artistas consagrados têm se tor- nado cada vez mais presentes nessa mídia e, com isso, “deixam de ser objetos de práticas culturais minoritárias ou apenas de interesse localizado”, como explica Canclini,59 mesmo que essa democratização tenha vindo acompanhada de uma vul- garização.

E, ainda que se tome como verdadeira a afirmação de Tom Gunning de que “a televisão parece menos envolvida com intensificar a visão e mais em proporcio- nar acesso imediato a qualquer coisa de qualquer maneira”,60 por que não admitir tal procedimento característico do veículo como o grande justificador da sua existência? Por que não reconhecer a televisão como, mais do que tudo, um espaço comum, in- serido numa realidade coletiva e festiva, independentemente de qualquer conteúdo? Por que não encará-la como um veículo com potencial para a circulação de idéias tão diversas quanto é o conjunto de telespectadores, o que, por sua vez, poderá se revelar na esteira da multiplicação dos seus canais?