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O poder do cetro ou do trono x o poder do phármakon : a política de Creonte x a magia de Medeia

3 CAPÍTULO 2: MEDEIA NO EXÍLIO

3.3. O poder do cetro ou do trono x o poder do phármakon : a política de Creonte x a magia de Medeia

O teatro é, no mundo grego, uma forma de se tornar outro. (VERNANT, 2009, p. 354)

Que significa Medeia, uma mulher bárbara, exilada em solo coríntio, para aquele que comanda a região? Embora tenha primeiro enganado os amigos e conterrâneos para seguir Jasão, instigado as filhas de Pélias a matar o pai, tornou-se benfazeja para os cidadãos dessa terra onde passou a viver com marido e filhos, Corinto (Med. v. 9-12). Ao passo que Jasão

pretere o lar à cama real (vέ 1κ), εedeia “lastima o pai queridoή e a terra e a casa, coisas que,

traindo, largouή com um homem que agora a desonrou” (vέ 31-33). A Ama assim a descreve: E Medeia, a infeliz desonrada,

grita as juras, invoca a mão direita - o grande pacto – e pros deuses dá Provas de que paga ganhou de Jasão. (...)

é como rocha ou onda do mar,

que escuta aborrecida o conselho dos amigos. (EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 20-23.28-29)

Em diálogo com outro servo, o Pedagogo, percebe-se mais afeição pela patroa do que demonstram seus pares – em geral a rejeitam ou temem –, sobre os quais tecem duras críticas:

AMA

Idoso companheiro dos meninos de Jasão, pra um bom servo a desgraceira dos senhores desaba com força e abate os corações. PEDAGOGO

As velhas pelas novas! As alianças são deixadas e aquele não é amigo desta casa.

(EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 53-55.76-77)

Ouvindo as queixas da mãe desgraçada, a serva entoa um lamento com tom de programa político, além de advertência ou conselho:

iôÔ, mãe! Iômôi, desgraçada!

E por que – pra ti – os filhos entram na culpa do pai? Por que odeia estes? Ôi eu!

Como me dói, meninos! Que não sofram! Vontades terríveis dos tiranos!

Quão pouco se dominam! São muito mandões; e que dificuldade é acalmarem o rancor...

Pois acostumar a viver entre iguais

é o melhor! E eu quero mais é, sem grandezas, na dureza envelhecer... Pois então! Pra vencer, que se diga antes

o nome da Cautela! Usar dele é muito melhor pros vivos: exageros dão vantagem nenhuma pros mortais.

A cegueira maior é quando, Irritado, um demônio visita a casa.

(EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 115-130)

Não menos programático é o discurso proferido por Medeia (v. 215-266), o conhecido monólogo no qual expõe para a cidade um drama familiar que não lhe é exclusivo. Ela, a estrangeira recém-abandonada pelo marido, solidariza-se com as mulheres coríntias, tomadas por fracas pela sua quietude ou submissão (v. 217-8). Antes de proferir as já conhecidas queixas, trata de questões gerais, como tolerância, justiça, hospitalidade, até chegar à condição das mulheres, as quais ela representa fora do oîkos (v. 218-224.231-251). Fechando o discurso, lamenta sua desigual condição e conta com a discrição do coro de mulheres para o que intenta fazer para vingar-se:

Tu tens essa cidade, a casa do pai,

vantagens na vida e a companhia de amigos; já eu, solitária e sem pátria, afrontada pelo marido, arrastada da terra bárbara, sem mãe, sem irmão, sem família,

de porto em porto busco refúgio dessas desgraças. (EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 253-258)

Trava-se o confronto com o rei, que a chamando de tenebrosa, lembra a sentença de expulsão para longe de sua terra (v. 271-276). Em resposta, Medeia faz uso de sofismas até convencer Creonte e, assim, não só vencer o debate mas também urdir a maior das vinganças. A palavra venenosa dá vazão ao uso de pharmákois para deitar mortos três dos seus inimigos: o pai, a moça e o marido (v. 374-5). Este, no entanto, nada sofre, a não ser a dor da perda de tudo que conquistara até ali, inclusive os filhos para honrá-lo na hora da morte e perpetuar-lhe o nome...

Antes, em diálogo com a feiticeira da Cólquida, tem a destra reclamada, e seu cinismo é apontado como causa de mal:

Vieste até nós, vieste, mesmo sendo odiado? [Pelos deuses, por mim e por toda a raça humana] Com certeza, isto não é coragem nem ousadia, fazer o mal a um amigo e ainda olhar na cara. É de todas a maior das doenças humanas, canalhice. (...)

Phu! Mão direita que tu muitas vezes pegavas! e estes joelhos! Como em vão fomos usadas por um homem mau. Erramos pela esperança. eu deixarei a terra, banida,

de amigos vazia e apenas com as crianças (...).

(EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 467-472.495-497.512-513)

Não menos sofismático, Jasão invoca a própria condição de exilado para justificar sua união com a filha do rei (v. 554) e credita tão-somente a Afrodite a salvação de sua “vida à

deriva” (vέ ἃἀι-8). Também assegura que a bárbara mais ganhou que perdeu ou doou, a começar

por habitar a terra grega, conhecer a justiça, fazer uso das leis e não da força. Além disso, é reconhecida por sua sábia essência, tem fama (v. 535-540). Medeia, todavia, reivindica o direito de ser diferente (Cf. Jocy de Oliveira, Kseni a Estrangeira, 2005):

É. Muito – e de muitos mortais – sou diferente. Pra mim, quem é injusto mas se faz hábil no falar, castigo maior merece

porque contorna a injustiça com a língua, blefa e manobra com ousadia. É sábio, mas não o bastante. (...) Uma palavra te derruba:

tu deverias, se não fosse mau, ter me convencido

a aceitar esse casamento, antes de se calar para os amigos. (EURÍPIDES/TRUPERSA. Med. 579-583.585-7)

O discurso da sofística é uma técnica comum no repertório euripidiano. Sua poética, assim, é pautada por uma retórica superior e pensamento crítico. Seu teatro resulta do conflito entre conservadorismo religioso e tendências filosóficas. É nesse lugar que Medeia se coloca:

primeiro “faὐ uma condenação à retórica sofista do traidor” (ἢEREIRA, ἀίίἄ, pέ43); em

seguida, faz uso de artimanhas semelhantes para ludibriar o inimigo, dentre elas a ironia e a simulação. Desse modo, vence os rivais, inicialmente, pelo poder da palavra; posteriormente, pelo poder dos phármakois. Uma engenhosa urdidura capaz de derrubar tiranos e capitães. Um majestoso adorno passível de júbilo e sofrimento.

Como vimos, há três relações74 (que bem poderíamos chamar de “marcas de

alteridade”, como sugere a ἢrofaέ εaria Regina Cândido) no seio das personagens de Eurípides

em sua tragédia Medeia: a de hostilidade recíproca entre Medeia e Creonte e da heroína com Jasão; a de neutralidade com o Coro de mulheres coríntias e, em certa medida, com os servos (ama e pedagogo), mas, em nosso entender, está mais para relação de amizade; e a de aliança, primeiro com Jasão, por ocasião da fuga da Cólquida; em seguida com Creonte, que lhes concedeu asilo em Corinto; por último com Egeu, que oferece a destra para Medeia em sinal de respeito e amizade. O rei de Atenas não só aceita acolhê-la, como também promete não julgá- la em sua desdita. Protótipo do Basileus, o rei justo, Egeu é contraponto do poder tirano de Creonte e da infidelidade de Jasão, que outrora obtivera êxito graças à intervenção da feiticeira. Ela, a despeito de tudo, prescinde do herói grego; ele, antes do termo da vigem, sucumbiria sem ela.

74 “(έέέ) três tipos de relação que podem existir no seio dos personagens – relação de hostilidade recíproca, relação

de neutralidade, relação de aliança – somente a terceira é capaz de criar emoção trágica. O termo relação de aliança deve ser entendido no sentido lato: aliança pelo sangue, pelo casamento, pela hospitalidade. Sabe-se que na Antiguidade a relação com o hóspede ou convidado é sagrada. O termo abrange, portanto, as relações familiares, as relações amorosas e as relações de amizade. São essas relações de aliança que o teatro ocidental, seja ele trágico ou não, explorará incansavelmenteέ Somente elas são capaὐes de interessar o espectadorέ” (ώUBERT, ἀί1ἁ, pέ ἂἀ)

4 CAPÍTULO 3: DE EXÍLIO EM EXÍLIO: UM DIÁLOGO ENTRE EURÍPIDES E