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A Chapeuzinho em insólito amarelo

de submissão. O moralismo alemão não era católico como o francês, mas protestante.

Não se pretendia, na Alemanha do século XIX, a plena libertação do cidadão, a saída da caverna. Pretendia-se sair do poderio francês, a caverna apenas seria de propriedade dos conterrâneos. Ratifica a afirmação a continuação do conto existente apenas no conto alemão:

Contam mais, que certa vez, Chapeuzinho Vermelho ia levando novamente um bolo para a vovozinha e outro lobo, surgindo à sua frente, tentou induzi-la a desviar-se do caminho. Chapeuzinho Vermelho, porém, não lhe deu ouvidos e seguiu o caminho bem direitinho, contando à avó que tinha encontrado o lobo, que este a cumprimentara, olhando-a com maus olhos.

– Se não estivéssemos na estrada pública, certamente me teria devorado!

(GRIMM, 1961, p. 39)

A partir do texto dos Grimm, o leitor menos crítico absorve a ideia de que todos os lobos são sempre maus e que conversar com estranhos é sempre um erro. Se a metáfora do lobo for entendida pelo leitor, a situação é agravada, uma vez que se compreenderá que todos os homens são igualmente ameaçadores às meninas ingênuas.

Afinal, o texto traz, em outro momento, outro lobo com as mesmas características do morto pelo caçador.

O texto segue ratificando a ideia da necessidade da morte defendida por Sperber. O lobo, sem chance de recuperação, representa o mal, e, por esta razão, é mais uma vez punido com a morte. Da morte do lobo depende a vida da Chapeuzinho que: “pode voltar felizmente para a casa e muito alegre, porque ninguém lhe fez o menor mal.”

(GRIMM, 1961, p. 40).

A caverna da obediência é revelada pelos Grimm como a única possibilidade de felicidade. Só as meninas obedientes são merecedoras de desfrutar a alegria, e o melhor caminho a se seguir é o distante das tentações e das seduções da floresta.

identificadas pela cor do chapéu. A francesa e a alemã têm um chapéu vermelho. O vermelho é a cor que ou seduz ou alerta e é considerada, por ser a cor do sangue, símbolo do princípio da vida: “com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho cor de fogo e de sangue, possui, entretanto, a mesma ambivalência simbólica destes últimos”.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 944). Já a Chapeuzinho brasileira tem um chapéu amarelo. A cor pode ser símbolo de riqueza, cor do ouro, mas também pode ser símbolo da aproximação com a morte: “O campo de sua confrontação é a pele da terra, nossa pele, que fica amarelada – ela também – com a aproximação da morte”.

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 40).

A escolha de Chico Buarque pela cor amarela para pintar o chapéu de sua personagem não parece ter sido em razão da riqueza que o amarelo pode remeter, mas pela aproximação da morte que a cor simboliza. Chapeuzinho Amarelo vive amedrontada:

Era a Chapeuzinho Amarelo.

Amarelada de medo.

Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.

Já não ria.

Em festa não aparecia.

Não subia escada nem descia.

Não estava resfriada mas tossia.

Ouvia conto de fada e estremecia.

(BUARQUE, 1979)

Ao contrário da Chapeuzinho Vermelho que começava a história com coragem e vontade de viver, Chapeuzinho Amarelo tinha medo de viver sua vida. Ela não conseguia brincar ou realizar atividades cotidianas porque tinha medo que algo ruim viesse a lhe acontecer. A cor de seu chapéu denunciava seu estado de espírito, a forma que levava a vida. A Chapeuzinho brasileira agia como se estivesse morta: “Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo” (BUARQUE, 1979).

Vale ressalva o fato de Chapeuzinho Amarelo ter sido escrita por Chico Buarque, famoso por suas músicas de protesto, nos anos 70. O texto foi publicado pela primeira vez em 1979, tempo em que o Brasil ainda vivia o Regime Militar.

Quando o artista, em 1966, venceu o II Festival de Música Brasileira da Record, o país conheceu a música “A banda” que contava

a história de uma gente sofrida que parava “pra ver a banda passar cantando coisas de amor”. A gente sofrida ilustrada em “A banda” era amarelada como a Chapeuzinho. A gente sofrida alegrava-se ao ver a banda, mas a alegria era efêmera e para o desencanto do artista: “O que era doce acabou / Tudo tomou seu lugar / Depois que a banda passou”.

Chapeuzinho não se deixava encantar como a gente sofrida brasileira que, apesar da ditadura, se valia das alegrias efêmeras:

dançava com a banda, sambava no carnaval e comemorava o sucesso do futebol. Chapeuzinho, amarelada de medo, era viva, mas era morta, e por isso preferia permanecer em sua caverna. Ela tinha medo dos lobos que poderiam devorá-la, ou puni-la caso saísse ou ousasse como Chapeuzinho Vermelho.

Entretanto, foi de forma insólita que a Chapeuzinho brasileira se libertou. Quando de fato ficou frente a frente com o temido lobo, percebeu que ele não era tão aterrorizante quanto pensava. Com a sabedoria de Ulisses, que usa a palavra para salvar-se do ciclope, Chapeuzinho Amarelo faz uso de sua capacidade hermenêutica e desvela os signos, não somente pronunciados, mas apresentados na expressão do lobo:

O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele, só que sem o medo dele.

Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco azedo, porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.

(BUARQUE, 1979)

Envergonhado por não assustar Chapeuzinho, o lobo tenta outra estratégia para levar a menina a sentir medo, ele faz uso da repetição.

Ele disse que era “LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO” (BUARQUE, 1979) umas vinte e cinco vezes. Repetir pode ser uma possibilidade de aceitação e de autoconvencimento: “repetir significa a possibilidade de aceitação pela constância reiterativa. Goebbels, o teórico da propaganda nazista, apregoava que uma mentira repetida muitas vezes era mais eficaz do que a verdade dita uma única vez.” (CITELLI, 2002, p. 49).

Apesar de o lobo ter repetido quem era, para que o medo de Chapeuzinho voltasse, tal fato não aconteceu. Ao contrário, a ilustradora da edição de 1979, Donatella Berlendis, pintou a mudança de cor das bochechas de Chapeuzinho. Se no início, elas eram amareladas de

medo, no enfrentamento com o lobo, elas se tornaram vermelhas, vibrantes e vivas. A menina de bochechas vermelhas, por mais que o lobo repetisse, não conseguia ouvir a palavra LOBO, mas BOLO, que se encaixava melhor à figura assustada do animal. Na reedição, ilustrada por Ziraldo, publicada pela primeira vez em 1998 e reimpressa várias vezes também no século XXI, o lobo aparece de fato em formato de bolo, tal como Chapeuzinho o via.

Conta Chico Buarque que Chapeuzinho Amarelo começou a brincar com os seus medos, mudando-lhes o nome. Com inteligência, a menina descobriu a força das palavras. Com habilidade, passou a ressignificar o mundo. A partir do domínio da linguagem, Chapeuzinho aprendeu a enfrentar a vida: “Cai, levanta, se machuca”, mas não deixa de viver. Apesar de amarelada no início, tal como a gente que parou para ver a banda, Chapeuzinho Amarelo não somente negou o fato de o lobo ter que ser assustador, como “entrou” nos signos emitidos, voluntária e involuntariamente, por ele. Desta forma, a alegria da Chapeuzinho não foi efêmera como a dos que assistiam a banda passar, mas foi duradoura porque havia descoberto uma forma de enfrentar o mundo.

Chapeuzinho Amarelo, ao contrário da Vermelho, conseguiu sair de sua caverna. Se a caverna das Chapeuzinhos, francesa e alemã, era o moralismo, a da brasileira era a ditadura, a opressão. E foi no cenário construído pelo Regime Militar que a personagem brasileira nasceu. No ano anterior à publicação de Chapeuzinho Amarelo, 1978, Chico Buarque: “Com o arquiteto Oscar Niemeyer e seu pai, Sérgio Buarque, entre outros, funda o Cebrade – Centro Brasil Democrático, em oposição aos militares” (SILVA, 2004, p. 138). Chapeuzinho Amarelo pode ser entendido como uma possibilidade de dar voz aos amedrontados e calados pela opressão. O artista usa a literatura infantil e seus personagens para esclarecer que os medos podem ser enfrentados com a inteligência do domínio da linguagem.