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2. A DIMENSÃO ESPACIAL NA COMPOSIÇÃO MUSICAL

2.1. Charles Ives

O interesse dos compositores pela espacialização da música, na primeira metade do século, tem uma expressão reduzida se comparada com o entusiasmo que vira a suscitar a partir da Segunda Guerra Mundial. Contudo, os compositores que se interessaram por este parâmetro da escrita musical, fá-lo-iam com uma atenção até então nunca manifestada, como seria o caso de Charles Ives.

Apartado da influência da cultura musical europeia e da sua tradição histórica, Charles Edward Ives (1874-1954) é, hoje, considerado um dos mais extraordinários e originais compositores americanos, apesar de ter sido praticamente ignorado ao longo de toda a sua vida. Essa originalidade poder-se-á justificar pelo isolamento artístico em que o compositor viveu durante a sua fase mais criativa: 1902-1918. Homem de negócios de dia e compositor à noite e aos fins-de-semana, foi um pioneiro em diversas vertentes da música moderna: politonalidade, polirritmia, microtonalismo, cluster, citações e música espacial.

Filho de George Ives, que, além de chefe de uma banda musical da cidade de Danbury, fez diversas experiências na área da acústica e temperamento, Charles Ives afirmava que o seu pai tinha sido o seu mais influente professor, tendo-lhe proporcionado algumas experiências determinantes para o seu estilo de escrita. Uma delas aconteceu quando duas bandas partiram de localidades vizinhas a tocar peças com diferentes tonalidades e compassos e se juntaram num estádio de baseball, o que poderá ajudar a explicar o seu interesse pela politonalidade, polirritmia e mesmo pela espacialização do som.332 De facto, no seu artigo “Music

and Its Future”, Ives afirmaria que o seu interesse pela espacialização teve como inspiração as bandas de música que ouviu durante a sua infância, e a forma como estas eram dispostas na praça.333

332 Cf. Jonathan COLE, “Music and Architecture: Confronting the boundaries between space and sound”,

http://www.gresham.ac.uk/event.asp?PageId=45&EventId=609;

e Eric SALZMAN, Twentieth-Century Music: An Introduction, Englewood Cliffs, Prentice Hall, New Jersey, 1988, p. 135.

333 Cf. Amaro FILHO, An original composition, Diamundo, and a historical survey of music spatialization,

Música e Pintura: interinfluências na primeira metade do século XX

The Unanswered Question (1906, revista em 1930-1935) é talvez a obra mais

conhecida de Charles Ives, tendo influenciado inúmeros compositores, em particular Henry Brant (1913) — um dos mais importantes compositores americanos de música acústica espacial (com mais de 100 obras compostas com base no conceito de espacialização).

Podendo ser tocada por uma orquestra de câmara ou por um conjunto instrumental, esta peça é considerada a primeira do século XX a usar a espacialização como um elemento primordial na composição: três grupos instrumentais são colocados em diferentes locais;334 um solo de trompete apresenta a eterna questão, que Ives

descreve como “The Perennial Question of Existence”; um pequeno conjunto de flautas (possivelmente acompanhadas por um oboé e um clarinete) tenta responder com “The Invisible Answer”; um quarteto de cordas representa a constante harmonia do Universo; e um simples coral segue repetidamente em órbita o trajecto criado pelos três grupos.

Fig. 65 - Charles Ives, The Unanswered Question, a diferença de escrita dos três grupos

Universe Symphony, que se acredita ter ficado inacabada, é a sua última obra —

uma sinfonia de cerca de 64 minutos, escrita entre 1911 e 1928, que revela a importância que Ives dá ao conceito de espaço musical: foi composta para três

334 Na segunda versão de The Unanswered Question, Ives indica aos músicos a sua intenção,

escrevendo: “the string quartet or string orchestra (con sordini), if possible, should be “off stage,” or away from the trumpet and flutes.”, citado em Amaro FILHO, An original composition, Diamundo, and a historical survey of music spatialization, cit., p. 202.

CAPÍTULO VI

orquestras, separadas em três secções, que representam o passado — a formação dos oceanos e das montanhas; o presente — a terra, a evolução da natureza e da humanidade; e o futuro — o céu, o alcançar de toda a espiritualidade.335 Esta

sinfonia, concebida para ser tocada e cantada pela Humanidade, ao ar livre, nos campos ou nas montanhas, mostra que Charles Ives desejava quebrar a fronteira entre a arte e a vida, entre o homem e a natureza.336 Para além de ter trazido para a

música o conceito de espacialização, Ives também importou do universo visual, neste caso da pintura, outra técnica de escrita: a colagem. Sobejamente usada na história pintura e recuperada pelos cubistas, esta técnica seria utilizada na sua obra orquestral Central Park in the Dark (1906), com a duração de 10 minutos, ao longo dos quais se ouve uma série de citações, colagens de marchas e de melodias populares. A inspiração para esta peça surgiu quando Ives foi viver para um apartamento junto ao Central Park: “This piece purports to be a picture-in-sounds of the sounds of nature and of happenings that men would hear some thirty or so years ago (before the combustion engine and radio monopolized the earth and air), when sitting on a bench in Central Park on a hot summer night.”337 Esta obra tem sido

comparada com a pintura que se fazia na América naquele tempo, em particular a de James Whistler (1834-1903), pintor americano ligado ao simbolismo, e Edward Hopper (1882-1967), pintor realista americano conhecido pela temática da sua pintura: a interacção entre o Homem e o seu envolvimento — cidade ou campo.338

A espacialização do som e as colagens assumem também grande relevância em

Three places in New England, obra composta por Charles Ives entre 1911 e 1914

(apesar de ter sido iniciada em 1903 e a última revisão datar de 1929).

335 Cf. John KIRKPATRICK, “Charles E. Ives”, The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed.

Stanley Sadie (London: Macmillan, 1980), ix, 414-429.

336 Cf. Eric SALZMAN, Twentieth-Century Music, cit., p. 137. Tal como Scriabin com a sua também

última obra — Mystére.

337 Cf. Golo FÖLLMER, Julia GERLACH, “Audiovisions. Music as an Intermedia Art Form”, Media Art

Net, http://www.medienkunstnetz.de/themes/image-sound_relations/audiovisions/18/.

338 Cf. Eric BROMBERGER, “Central Park in the Dark. Charles Ives”, Pieces Details,

Música e Pintura: interinfluências na primeira metade do século XX

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