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Cap 2. O cinema científico de Jean Painlevé

2.5 Ciência é ficção

“Ciência é ficção” – a frase, que se transformou em marca registrada de Painlevé, ilustra a percepção de um mundo científico que, por si só, era suficientemente fantástico. Para Painlevé, as emoções apresentadas pelo documentário eram maiores do que em qualquer outro gênero de filme ficcional. A imparcialidade nos temas tratados, mesmo em reconstituições, favorecia essa força natural ao conteúdo mostrado.

Por enxergar uma poesia inerente ao documentário científico, Painlevé considerava que o valor científico jamais deveria ser ofuscado por efeitos cinematográficos. Assim, ao direcionar o conteúdo científico captado nas filmagens para o público das salas de cinema, Painlevé fez uso de recursos de linguagem que, em sua visão, tornariam o

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Painlevé, “Scientific Cinematography in France”, 4, www.lesdocs.com (acessado em 13 de agosto de 2013).

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Painlevé faz uso da expressão “Cinéma-temoin”, aqui traduzida como cinema testemunha.

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Painlevé, “Cinema and Research”, 6, www.lesdocs.com (acessado em 13 de agosto de 2013).

45! conteúdo mais palatável aos sentidos dos espectadores110, sem alterar o significado real do que era apresentado:

“O que importava para mim, em 1927, era mostrar para o público tudo o que eu via de tão fascinante nos polvos. Havia tanto a falar sobre eles que tive que limitar às coisas que realmente saltavam a vista. Por exemplo, os olhos”111.

Os primeiros filmes de Painlevé foram estritamente científicos, mas na medida em que se aproximava do universo surrealista, o cineasta se distanciava da ciência pura. Com isto, seu comprometimento com a ciência acabou por torná-lo um estranho, tanto dentro do movimento surrealista, quanto do meio científico. Em artigo na Nature, o professor Martin Kemp utiliza o termo ”surrealismo natural” para definir o trabalho de Painlevé112.

Para muitos de seus filmes, produziu três versões diferentes: uma estritamente de pesquisa, outra para divulgação na academia e uma terceira voltada para o grande público. Na tentativa de traduzir a linguagem científica para um público distante dos laboratórios, caminhou por uma tênue linha entre o documentário científico e a ficção. Encorajado pelos cineastas surrealistas Luis Buñuel (1900- 1983) e Jean Vigo (1905-1934), Painlevé começou a produzir filmes que convidavam os espectadores a questionar sua relação com o mundo. Em 1928, no filme “O Polvo”, ele misturou, pela primeira vez, imagens e textos poéticos com informação científica113.!!

Neste filme, fez uso de imagens captadas na natureza e também em aquários, dentro do estúdio. Painlevé inseriu elementos que traziam

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Painlevé, “On the Documentary”, 2, www.lesdocs.com (acessado em 13 de agosto de 2013).

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Trecho extraído de entrevista para a série documental “Jean Painlevé: Au Fil de Ses

Films”, (Jean Painlevé: através de seus filmes), já mencionada acima. 4.

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Kemp,”Surrealism Bites Back”, 382. 113

46! nova dimensão às imagens da vida desse animal marinho. Por exemplo, a cena em que o polvo desliza sobre um crânio de um esqueleto humano (Fig. 10), trouxe dramaticidade à imagem captada. !

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Fig. 10 Cena do filme “O Polvo”, de 1928.

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Imagens como essa atraíram artistas e intelectuais que frequentavam os cine clubes de Paris para apreciar os filmes da Avant- Garde, entre os quais eram exibidos os de Painlevé. Alguns estudiosos enxergaram em certas obras de Pablo Picasso, referências aos filmes de Painlevé114. Ainda que essa relação seja apenas subjetiva, de fato Picasso e outros artistas tiveram contato com esses filmes nos cine clubes, na década de 1930, e a natureza apresentada pelo cineasta, repleta de dramas, erotismo, violência e antropomorfismos cômicos, foi muito apreciada por eles.

O encantamento de Painlevé pelas criaturas marinhas é evidente em sua obra. No texto “On the seabed a human eye is watching us” (No fundo do mar, um olho humano está nos observando), Painlevé

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47! comentou o fascínio por algumas características do polvo, em especial o olho, que se assemelha ao humano:

“Não é apenas a cor dos olhos que muda, revelando íntimos sentimentos em pulsos de luz, talvez azul para medo, vermelho para raiva, preto para inveja; são as pálpebras que lhe conferem um ar tão expressivo e único, comparado, por exemplo, com a expressão estúpida de um peixe, com seus olhos arregalados...”115.

Painlevé acreditava que o cinema poderia criar vidas surreais. Em sua obra é possível encontrar exemplos de uma justaposição de poesia e ciência. Para ele, a natureza era a origem de tudo e usava os recursos visuais para destacar a realidade natural das coisas. Metáforas antropomórficas também estão nesses filmes116.

Em 1966, Painlevé retomou o tema do polvo, mas dessa vez em um filme voltado para o grande público: “A vida amorosa do Polvo”. Nele, o cineasta descreveu a reprodução desse molusco usando temas humanos na narrativa, como o amor117. Os escritos e filmes de Painlevé são permeados de uma aproximação entre ciência e arte. Para ele, o surpreendente estava presente na natureza, ele extraia o surreal a partir do real118. Surpreender e encantar eram parte do objetivo de Painlevé, que entendia a divulgação científica como função fundamental dentro do conceito de cinema científico. !

O cinema teria permitido aos cineastas a ambivalência que os poetas sempre buscaram. O mundo oferecido pelo cinema era surreal, satisfazendo os sentidos por sua reprodução fiel da realidade, e a imaginação por suas criações maravilhosas.Assim, conseguia prender !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Painlevé, “On the seabed a human eye is watching us”, 2, www.lesdocs.com (acessado em 13 de agosto de 2013).

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Fretz, 52. 117

Em entrevista, já referida acima, para a série televisiva francesa “Jean Painlevé: Au Fil de Ses Films” (Jean Painlevé através dos seus filmes), de 1984, 14.

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48! o espectador por meio de seu irresistível poder de sugestão e ilusão mental119.

O cinema seria, portanto, mais do que um aparelho para reproduzir a realidade. J. Debrix comparou a imagem do cinema às palavras usadas na poesia. Para ele, as imagens no cinema não faziam pensar, mas sentir120. Como indicado, Painlevé buscava dar forma a essa poesia a partir do que era inerente a natureza, do fascínio que estava presente nas imagens do mundo real. Painlevé foi um dos poucos cineastas surrealistas que utilizaram a natureza para produzir uma narrativa sem o uso de ficção, buscando alcançar a verdade irracional e inconsciente do homem121.

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