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CIÊNCIAS HUMANAS: ESTÁS VIVO SOB MINHA PROTEÇÃO

2. UMA MAQUINARIA MORAL

3.1 CIÊNCIAS HUMANAS: ESTÁS VIVO SOB MINHA PROTEÇÃO

As ciências humanas se constituem com a função de definir, classificar e hierarquizar a normalidade e a anormalidade do humano e, conforme, Castro (2006), incluir em suas falas, a normalidade do humano nos dispositivos de segurança. Para Foucault (apud CASTRO, 2006, p. 73-74):

[...] a temática do homem, através das ciências humanas que o analisam como ser vivente, indivíduo que trabalha, sujeito falante, deve ser compreendida a partir do surgimento da população como correlato de poder e objeto de saber. Depois de tudo, o homem, tal como foi pensado e definido a partir das chamadas ciências humanas do século XIX e tal como o humanismo, desse mesmo século, o fez objeto de sua reflexão não é, em definitivo, outra coisa que uma figura da população. Ou melhor, digamos que enquanto o problema do poder se formulava na teoria da soberania, frente a esta não podia existir o homem, mas unicamente a noção jurídica de sujeito de direito. Ao contrário, a partir do momento em que apareceu a população como contra-face já não mais da soberania, mas do governo e da arte de governar, podemos dizer que o homem foi para a população o que o sujeito de direito havia sido para o soberano.

Há uma intervenção crescente do Estado na vida dos indivíduos e será o desenvolvimento das ciências humanas que irá garantir também essa biopolítica. Esta é a principal característica de nossa racionalidade moderna, segundo Foucault, o indivíduo tratado no detalhe e na sua totalidade como população. Desse modo, ordem e direito fazem sentido, uma vez que “o direito, por definição, remete sempre a um sistema jurídico, enquanto a ordem se relaciona a um sistema administrativo, a uma ordem bem precisa do Estado” (Ibidem., 317). O que se vive com a JR na escola é justamente este entrelaçamento.

Assim, Foucault (2002c) marca que o discurso da disciplina não é o da regra jurídica, mas da regra natural, da norma e é aí que entra a constituição das ciências humanas, partindo de um saber clínico.

Pensando na função que a escola vem assumindo na correção, na restauração desses “sujeitos perigosos em potencial” (que depredam prédios, que brigam, que xingam e ameaçam professores, que não se comportam em sala de aula), penso que há um atravessamento dos discursos das ciências humanas e do discurso jurídico, da pedagogia e da Justiça Restaurativa, não se anulando, mas, muito contrário, se complementando na regulação dos corpos, na produção de modos de subjetivação. Foucault (2002c, p. 46) marca que:

Eu creio que o processo que tornou fundamentalmente possível o discurso das ciências humanas foi a justaposição, o enfrentamento de dois mecanismos e dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos: de um lado, a organização do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas. Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma “sociedade de normalização”.

E me parece que hoje vivemos um pouco isso e também um borrar de fronteiras. Explico melhor. Penso que há uma apropriação de técnicas do saber jurídico e o funcionamento de uma maquinaria, envolvendo saberes, instituições e técnicas da pedagogia e do saber jurídico na escola e fora dela para dar conta daqueles que hoje estão infringindo normas, mas que são colocados como “indivíduos perigosos em potencial” por meio do dispositivo da inclusão, com capturas de outra ordem, funcionando em uma sociedade de normalização. Foucault (2000c) alertou que não será recorrendo ao poder soberano, da legislação, que iremos minimizar os efeitos do poder disciplinar. Parece-me, porém, que, atualmente, não é isso que se busca, mas sim unir o poder da lei, o poder disciplinar e regulamentador, assim como o controle como garantia de “segurança”. São diferentes mecanismos de poder que se apóiam na fabricação de determinados modos de ser.

Por isso, mais uma, vez o cuidado de não tomarmos a escola como uma unidade global, mas analisarmos as relações de força, as relações de poder, como se apóiam, quais são as estratégias na produção de uma multiplicidade de sujeições, a partir do disciplinamento dos corpos e dos saberes.

O processo de disciplinamento dos saberes a partir do século XVIII está intimamente relacionado à organização do Estado e a necessidade de controle da população, para torná-la dócil e útil. Assim, Foucault (2002c, p. 215-216) traz a intervenção do Estado em quatro procedimentos:

Primeiro, a eliminação, a desqualificação daquilo que se poderia chamar de pequenos saberes inúteis e irredutíveis, economicamente dispendiosos; eliminação e desqualificação, portanto. Segundo, normalização desses saberes entre si, que vai permitir ajustá-los uns aos outros, fazê-los comunicar-se entre si, derrubar as barreiras do segredo e das delimitações geográficas e técnicas, em resumo, tornar intercambiáveis não só os saberes, mas também aqueles que os detém; normalização, pois, desses saberes dispersos. Terceira operação: classificação hierárquica desses saberes que permite, de certo modo, encaixá-los uns aos outros, desde os mais específicos e mais materiais, que serão ao mesmo tempo os saberes subordinados, até as formas mais gerais, até os saberes mais formais, que serão a um só tempo as formas envolventes e diretrizes do saber. Portanto, classificação hierárquica. E, enfim, a partir daí, possibilidade da quarta operação, de uma centralização piramidal, que permite o controle desses saberes, que assegura as seleções e permite transmitir a um só tempo de baixo para cima os conteúdos desses saberes, e de cima para baixo as direções de conjunto e as organizações gerais que se quer fazer prevalecer.

Dessa organização dos saberes, decorrem técnicas e instituições. Estamos no período da higienização da sociedade. O século XVIII foi o século do disciplinamento dos saberes, cada disciplina organizando-se em seu interior, demarcando suas fronteiras e objetos de

estudo. Até então, tínhamos ciências. Com essa organização de cada saber como disciplina, sua classificação e hierarquização, foi-se produzindo um campo global, a Ciência. Anterior a isso tinha a filosofia, saberes, ciências. Era a filosofia a forma de disposição e interligação dos saberes. Temos agora uma ciência que policia os saberes; estamos na era do “progresso da razão”. E aí está posto o papel do ensino, disciplinamento dos corpos e uma certa distribuição dos saberes. Dividem-se enunciados em falsos e verdadeiros e se tem um grande controle da enunciação.

Foucault (2002c, p. 221) aponta que as técnicas disciplinares de poder que incidem sobre o corpo “haviam provocado não só um acúmulo de saber, mas também individuado domínios de saber possíveis; e, depois, como as disciplinas de poder aplicadas ao corpo haviam feito sair desses corpos sujeitados algo que era uma alma-sujeito, um ‘eu’, uma psique, etc”.

Temos agora a ciência como regra de verdade, funcionando como saberes de estado. O sujeito torna-se objeto de conhecimento para diferentes saberes. E o mecanismo do exame aqui muito interessa, uma vez que perpassa as práticas pedagógicas, psicológicas, jurídicas e policiais, o que nos mostra um instrumento importante de produção de si mesmo. Para Foucault (2004b, p. 300), “através dessas diferentes práticas – psicológicas, médicas, penitenciárias, educativas – formou-se uma certa idéia, um modelo de humanidade; e esta idéia do homem tornou-se atualmente normativa, evidente, e é tomada como universal”. Isso significa que um determinado modo de ser foi assumido como universal e uma moral estabelecida como sendo válida para todos.

Nós, seres viventes, nos tornamos objeto para diversas ciências, amarrados a tecnologias políticas, tecnologias de poder. Sujeitos que estudam, falam, produzem, que são incluídos e corrigidos. Metáfora do pastor, se ocupando de seu rebanho. E não temos como analisar as ciências humanas separadas das modificações nos mecanismos de poder. Nossa luta poderá se dar justamente na tentativa de nos liberarmos de algumas concepções de nós mesmos inventadas e naturalizadas, estritamente ligadas à regulação estatal, que passam por diferentes instrumentos. Foi a partir de um poder sobre o corpo que as ciências humanas se desenvolveram.

Nunca tivemos na escola tantos “especialistas no homem”: professores, supervisores, orientadores educacionais, psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos, psicoterapeutas, médicos, assistentes sociais, conselheiros tutelares, advogados, assessores de toda ordem, entre tantos outros que sempre têm algo a dizer de como os alunos devem se conduzir. E agora uma novidade: temos os coordenadores dos Círculos Restaurativos. Um conduzir-se que a mim

tem parecido assumir cada vem mais um jeito tribunalesco, em que os indivíduos estão sempre dando explicações, confessando, assumindo seus acordos, sendo encaminhados para outros Círculos Restaurativos ou não, reformando-se. Outras e velhas verdades, outros modos de funcionamento do governo... Tratar, educar, reformar, corrigir, restaurar, misturam-se... Estilos de vida... Modos de existência...

Daí a importância de se analisar essas relações entre poder e saber, marcando a necessidade de análise dos efeitos de poder que circulam entre os enunciados científicos, a mecânica do funcionamento destas relações de força, a constituição de modos de ser nestas relações, como modo de investigação genealógica, uma vez que não remete a um sujeito fundante. Para Foucault (2007a, p. 8):

O que se busca então não é saber o que é verdadeiro ou falso, fundamentado ou não fundamentado, real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo. Procura-se saber quais são os elos, quais são as conexões que podem ser observadas entre mecanismos de coerção e elementos de conhecimento, quais jogos de emissão e de suporte se desenvolvem uns nos outros, o que faz com que tal elemento de conhecimento possa tomar efeitos de poder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou provável ou incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de coerção adquira a forma e as justificações próprias a um elemento racional, calculado, tecnicamente eficaz etc.

A justificativa da melhoria do humano. Esta nova economia do poder que perpassa toda a rede social está estreitamente ligada com a composição das ciências humanas em seus efeitos específicos dos discursos verdadeiros. Conforme já pontuado anteriormente, a economia política de verdade na sociedade atual estaria pautada no discurso científico (FOUCAULT, 2003f).

Assim, o conhecimento não está na natureza humana, não faz parte de uma estrutura mental, de um ente metafísico; ele é uma invenção, não tem uma origem. “Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas” (FOUCAULT, 2005b, p. 18).

É neste sentido que não temos como pensar saber e poder desvinculados, a verdade fora das relações de força, uma vez que ela não passa de mais um valor produzido socialmente e vai tomando formas diferenciadas ao longo da história. O saber não busca procurar o sentido das coisas, mas impor sentidos.

Assim, nesta tese busco sair de uma lógica de avaliação a partir do verdadeiro e do falso para, com Foucault como importante intercessor, analisar a potência de aumento da vida

ou não dos valores em questão. Não se trata da análise de um sujeito essencial, mas de analisar a constituição das relações que nos atravessam e nos produzem. “[...] não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo” (NIETZSCHE, 1998, p. 36).

Esta crítica à ciência coloca-se como uma crítica a uma noção de verdade como valor superior que se produziu ao longo da história, a partir de uma lógica platônico-cristã. Assim, há uma estreita ligação entre ciência e moral, uma vez que é esta moral que dá valor à ciência. Os valores morais, como genialmente escreveu Nietzsche, não têm uma existência em si; são produções nossas, humanas. Como aponta Machado (1999, p, 75), a partir de Nietzsche, “a vontade de verdade é a crença, que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro. A questão não é propriamente a essência da verdade, mas a crença na verdade”.

Este tipo de crítica não se coloca como mais uma verdade a respeito do mundo, apenas como interpretação, mas uma interpretação não ligada a uma moral universal, apoiada em princípios totalitários como critérios de avaliação, submetendo a própria vida. Não há conhecimento verdadeiro sobre o homem, uma vez que ele mesmo não passa de uma ficção.

Os códigos de normal e anormal, saudável e patológico, legal e ilegal tem uma ligação profunda com as invenções de juízo de valor de bem e mal. Critérios estes ligados a uma lógica de governo dos homens, que passa por uma estatização do biológico, que busca controlar e calcular o que era nômade, selvagem, regulando a vida em nome da segurança, de uma forma de felicidade que se inventou. Na contemporaneidade o governo assume novas formas de se operar que merecem nossa atenção.

Verdade, ciência, moral, homem, medida, progresso, salvação, higienização, bom, normal, legal... Livros de direito, livros de educação... E nós estamos no meio.

3.2 ESCOLA, PANACÉIA, TODOS E INCLUSÃO: FILIAÇÃO ENTRE JUSTIÇA E