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As Palavras e as coisas faz um caminho de investigação, cuja direção principal é produzir uma arqueologia das ciências humanas. O que se articula é a constituição de diagnóstico sobre o lugar específico de nascimento das ciências humanas, ou seja, de onde e como foi possível o seu aparecimento. E foi justamente no espaço epistêmico da Modernidade, no entrecruzamento com o surgimento das ciências empíricas e da filosofia, que se deu a constituição das ciências humanas, cujo propósito foi instalar o humano com sua aparição real para o saber.

Aqui a palavra “real” traz à tona um resultado da configuração da epistémê, na qual se faculta a constituição da realidade fenomênica com as referências sensíveis de solidez, concretude, densidade, massa e volume. Foi em um vão volumoso, condensado pelo saber científico e pensamento filosófico moderno, que se produziu a existência do homem para o saber. Afirma radicalmente Foucault: assim como a vida, a linguagem e o trabalho, “antes do fim do século XVIII, O homem não existia. (...) É uma criatura muito recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos”78.

Esse acontecimento na ordem do saber foi possível pelo entrecruzamento de discursos, em um mesmo espaço de ordem, liberando assim a discursividade das ciências humanas já avolumada por conteúdos salientes no campo epistêmico. Por isso é que se

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correlaciona arqueologicamenate a constituição das ciências humanas com as ciências empíricas e a filosofia moderna.

As ciências humanas são, para Foucault, a sociologia, a psicologia e a análise da literatura e dos mitos. Todavia, por conta do campo epistemológico do século XIX, impõem-se dificuldades quanto ao local, de direito, das ciências humanas. Pois há um “triedro epistemológico” que, de modo geral, domina o espaço do saber nesse momento. Esse triedro - figura geométrica formada por três planos que se entrecruzam - abrange três diferentes eixos dimensionais: o das ciências matemáticas e físicas; o das ciências da linguagem, da vida, da produção, da distribuição das riquezas; e, por fim, o da reflexão filosófica. Segundo Sílvio Gallo, por exemplo, “o lugar das ciências humanas neste triedro é o não-lugar”; mas elas aparecem decerto exercitando “conexões com os eixos definidos e com os planos por eles delimitados”79.

De todo modo, as conexões que as ciências humanas estabelecem estão atreladas aos conceitos, modos e conteúdos dos discursos empíricos e filosóficos. As ciências humanas nascem originalmente tomando a extensão entre os dois domínios. No entanto, elas elaboram um discurso novo que reduplica aquilo que, de um lado, é o objeto sensível de uma ciência empírica e, de outro, da filosofia, a própria espessura do sujeito transcendental. Dessa reduplicação, novas considerações e tratamentos dar-se-ão na extensão dos dois domínios, possibilitando que as ciências humanas não se confundam, de forma equivocada, com as ciências empíricas e a filosofia, mas assumam uma condição original, cujo relevo é fazer aparecer o homem para o saber.

O discurso novo das ciências humanas vai ocupar uma “distância que separa (não sem uni-las) a biologia, a economia, a filologia daquilo que lhes dá possibilidade no ser

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mesmo do homem”80. Configurado pela profundidade epistêmica, esse discurso será a marca da Modernidade: a novidade que se estabelece é a fundação ou invenção, para o Ocidente, da avolumada natureza dupla do homem, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de conhecimento. Diz Foucault: “no movimento profundo de uma tal mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece”81. Por isso, há nesse acontecimento

uma novidade essencial: os novos objetos empíricos e, também, a nova filosofia, somente existem referidos ao homem. Este, com efeito, é anunciado, primeiro como um ser que trabalha, que vive e que fala. Depois, como um ser que sabe. Objeto e sujeito, ao mesmo tempo, do

conhecimento82.

É dessa maneira que se incorpora, pois, adquirindo densidade, a real existência do homem para o saber. Através da profundidade e do volume da epistémê moderna, as ciências humanas emergem situando o homem em um “espaço que, para Foucault, não é nem o domínio do empírico nem do transcendental: é o espaço da representação”83. Nesse espaço, cuja espessura está avolumada pela realidade fenomênica, é que as ciências humanas produzirão a especificidade do saber sobre o homem, pois lá se configura tanto a realidade desse homem enquanto objeto dado empiricamente, e também, em seu ser mesmo, como sujeito de conhecimento, isto é, “como lugar de conhecimentos empíricos mas reconduzidos o mais próximo possível do que os torna possíveis, e como forma pura imediatamente presente nesses conteúdos”84.

Ao marcar tal dimensão no ser mesmo do homem, constitui-se, ao contrário da Idade Clássica, uma nova relação entre o que é objetivado pelo discurso científico e o lugar

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M.C., p. 365; P.C., p. 489.

81 M.C., p. 323; P.C., p. 430.

82 TERNES, J. “A morte do sujeito” in PORTOCARRERO, V. & BRANCO, G. C. (org.), op. cit., p. 62. 83 MACHADO, op. cit., p. 127.

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mesmo de manifestação dos conteúdos. Ou seja, enquanto que na era da representação, os conteúdos do saber estavam dimensionados em um espaço lógico, ideal, no qual se definia certas essências – o ser próprio das coisas -, na era moderna, todos os conteúdos do saber serão dimensionados para um local real de manifestação. Por exemplo, o que se constituiu, na Idade Clássica, de conhecimento da loucura, em sua essência verdadeira, na Modernidade, o ser mesmo da loucura é situado na realidade concreta do louco. O louco é o lugar imediatamente presente onde se realiza o conteúdo da loucura. Dessa maneira,

a loucura não mais indica um certo relacionamento do homem com a verdade (...) indica apenas um relacionamento do homem com sua

verdade. Na loucura, o homem cai em sua verdade: o que é uma maneira

de sê-la inteiramente, mas também de perdê-la. A loucura não mais falará do não-ser, mas do ser do homem (...). E enquanto ele era outrora o Estranho em relação ao Ser – homem do nada, da ilusão, Fatuus (vazio do não-ser e manifestação paradoxal desse vazio) -, ei-lo agora retido em sua própria verdade e, por isso mesmo, afastado dela. Estranho em relação a si

mesmo, Alienado85.

Outro exemplo encontra-se no caso da medicina moderna; pois também, nessa área do saber, a realidade presente no homem, de sujeito e objeto, possível pela organização profunda do espaço epistêmico, foi sendo cada vez mais objetivada. Marcadamente, pela condução do discurso científico, instaurou-se a chamada “experiência clínica”; nessa experiência

o objeto do discurso também pode ser um sujeito, sem que as figuras da objetividade sejam por isso alteradas. Foi esta reorganização formal e em

profundidade, mais do que o abandono das teorias e dos velhos sistemas,

que criou a possibilidade de uma experiência clínica86.

85 FOUCAULT, M. Histoire de la folie a l'age classique. Paris: Gallimard, 1972, p. 637; FOUCAULT, M. História da loucura: na Idade

clássica. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 509.

86 FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. 7ªed. Paris: Quadrige/PUF, 2003, p. 10; FOUCAULT, M. O Nascimento da clínica. Rio de

O que interessa, pois, salientar aqui é o surgimento da presença real do homem para o saber. Uma presença carregada de uma dimensão factual, objetiva e, ao mesmo tempo, de uma dimensão profunda, pela espessura de seu pensamento, de realidade fenomênica, com o manifesto poder de elaborar representações não somente para as coisas, mas para si mesmo.

Nota-se que o aparecimento do homem foi possível quando a representação, antes válida somente para a relação com e para a exterioridade, agora está prestes a constituir a realidade do ser mesmo do homem: uma realidade que possibilita representações dos objetos e, ao mesmo tempo, pode fornecer a si as representações produzidas a partir da relação com os objetos empíricos. Dessa maneira é que as ciências humanas “estudam o homem enquanto ele se representa a vida na qual está inserida sua existência corpórea, a sociedade em que se realiza o trabalho, a produção e a distribuição, e o sentido das palavras”87. E na medida em que a pessoa está a falar, a viver e a produzir, as ciências humanas vêm para atravessá-la, e dar-lhe representações que representam, com consistência, a sua vida.