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1. POLÍTICA EM REDE: VÍNCULOS CULTURAIS EM CONEXÕES TÉCNICAS

1.4 Ciberdemocracia à moda brasileira

As práticas no campo político na contemporaneidade são resultados de uma herança moderna cujo modelo burguês de democracia assentado na representação por meio de sufrágio se consolidou na sociedade, principalmente no mundo ocidental. Neste modelo, emergiu a necessidade da classe política buscar apoio e consentimento popular através da visibilidade na esfera pública, ainda que sejam utilizados mecanismos cada vez mais próximos da publicidade comercial e da lógica do consumo. Mesmo com o surgimento de novas tecnologias de comunicação mediadas por computador, não parece ter se concretizado uma ruptura estrutural nas práticas e instituições da sociedade, uma vez que a visibilidade através da comunicação continua sendo fator preponderante, meio e objetivo das disputas da esfera pública. A internet como espaço de proliferação de discursos e disputa possibilitou a emergência de uma esfera pública virtual que, em boa medida, manteve ou aprofundou a lógica de funcionamento da esfera pública tradicional. A publicidade, conquistada seja pelos meios de comunicação de massa ou através do ambiente virtual de rede, manteve sua força e papel de protagonismo na esfera pública. O desenvolvimento da comunicação em rede

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(Castells, 1999) permitiu maior mobilidade e, além disso, a conectividade permanente entre os indivíduos, corporações, instituições, partidos e governos. Essas conexões ocorrem através da circulação cada vez maior e mais rápida de mensagens e informações por meio de suportes tecnológicos. Colocada desta forma, sugere-se que, por uma base técnica, estaria garantida a interatividade, também permanente, entre cidadãos e políticos justamente pela conexão propiciada por estes artefatos comunicativos.

Assim, acaba por circular nos meios políticos, e na sociedade em geral, um ideal de interatividade midiatizado (e tecnicista) que, por si só, seria capaz de promover um aprimoramento das práticas democráticas através da maior participação de atores nos processos políticos, especialmente daqueles que, historicamente estariam à margem das decisões, como os cidadãos de forma individual, trabalhadores não sindicalizados, mulheres, minorias, entre outros (Lévy, 2002). Em suma, o ideal tecnicista de interatividade aponta que através dos vínculos propiciados pela tecnologia, novas transformações ocorrem no interior da sociedade. Entre essas mudanças podemos considerar o fato de que a atual base tecnológica permite - ao menos em tese - a conexão entre o cidadão (representado) e a esfera política (representante) numa escala maior que os encontros físicos e sem a antes necessária intermediação dos meios de comunicação de massa, ainda sob forte influência da imprensa privada.

No entanto, a possibilidade da ubiquidade virtual do cidadão junto à classe política (e vice-versa), algo só possível com a tecnologia hoje disponível, seria então a ferramenta que nos faltava para garantir maior transparência, vigilância e termos consequente aperfeiçoamento das práticas políticas no nosso sistema político? Ou essa mesma tecnologia pode ser utilizada com outros objetivos, de cunho mais privado do que público, mais individual e menos coletivo e colocando nessas interações entre representantes e representados o pessoal acima de questões impessoais?

Assim, poderia a técnica de fato determinar o conteúdo e resultado das interações geradas por meios técnicos entre representantes do poder público e representados ou a cultura adapta as tecnologias para se renovar ou aprofundar, sendo revelada também no conteúdo dessas mensagens por meios técnicos? Hoje, são ainda mais diversas as estratégias de comunicação adotadas pela classe política no sentido de garantir interação e conexão com os cidadãos. Porém, como argumentou o pesquisador Wilson Gomes (2011, p. 30), nem sempre os efeitos são os previstos:

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Um projeto adequado de democracia digital não pode incluir apenas a formação de iniciativas. Iniciativas são meios para a consecução dos propósitos anteriormente indicados. Não sendo tampouco um fim em si mesmo, elas devem ser julgadas em função dos fins que as orientam; mas os fins não se alcançam se os meios não forem empregados numa circunstância específica que permita a geração de seus efeitos. O que traz ao centro da discussão a questão do emprego ou uso das iniciativas digitais e das circunstâncias ou oportunidades em que este uso pode gerar os efeitos previstos quando as iniciativas são projetadas.

Desta forma, corre o risco de ser um tanto rasa a análise que apenas busca verificar como as instituições políticas abrem a porta de diálogo com a sociedade através das novas tecnologias, quantos canais de interação foram estabelecidos, seus formatos e sua eficácia em termos de audiência e suposta participação. Afinal, como abordou o autor, o que pode decorrer nesses ambientes de interação virtual não pode vir a ser apenas acomodações de

vinhos novos em odres velhos? Não se deve perder de vista que a participação política online é feita por indivíduos conectados, mas, em boa medida, isolados. Desta forma, o desejo que move a interação do cidadão com seu representante no poder público é influenciado por questões coletivas ou, por outro lado, tal diálogo é motivado pela busca pessoal de resolver questões do âmbito individual, privado e particular?

Então, seria a tecnologia uma ferramenta que estaria a serviço de, também, acabar por aprofundar com maior intensidade e amplitude algumas práticas que foram ao longo do tempo caracterizadoras da política em esferas extraoficiais como, por exemplo, o clientelismo16? Sabemos que ainda hoje é recorrente a confusão entre os limites do público

e do privado na gestão administrativa do Estado. Desta forma, a tecnologia pode permitir um avanço no sentido de resolver esses obstáculos para a efetivação de uma política mais impessoal e democrática ou seria, pelo contrário, uma ponte que pode acabar por reforçar ou facilitar tais práticas? Afinal, a base técnica por si só não determina o produto final do vínculo gerado entre diferentes setores da sociedade. Aliás, quando do surgimento de outras tecnologias de comunicação, como o rádio e a televisão, por exemplo, criou-se a expectativa de que poderíamos ter um aperfeiçoamento da política e da sociedade, uma vez que essas novas mídias iriam difundir maior conhecimento e, por consequência, maior engajamento, como resgatou Sodré (2011, p. 72), citando que o “dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht apresentava, com seu panfleto intitulado “teoria do rádio”, a utopia tecnológica de

16 O clientelismo é uma prática que remonta aos tempos romanos, que permaneceu no Absolutismo, foi

reiterado na Era Moderna e que as revoluções liberais não conseguiram extinguir. Aliás, mais que isso: Acabaram por mantê-las e enraizá-las nas práticas políticas e em disputas partidárias. (Bobbio, 2007, p. 177).

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uma sociedade conversacional, dialógica, em que por meio da radiodifusão, todos poderiam confluir para um consenso, e as massas poderiam exigir diretamente prestação de contas ao Estado”.

Esgotada a promessa do rádio e da televisão, surge a expectativa de que seja a internet o meio tecnológico capaz de dar conta do objetivo de promover um sistema político mais eficaz pela vigilância constante da população junto à classe política. O desenvolvimento da rede virtual e de suas ferramentas possibilitou a criação de recursos de divulgação e trocas de mensagens entre usuários, as redes sociais online, onde já se fazem presentes diferentes atores da esfera pública – políticos e imprensa – e cidadãos que podem interagir diretamente com ambos, sendo uma plataforma que pode contribuir com o jogo democrático ao, conforme afirmou Fabio Santos Oliveira (2013, p. 143), “trazer à luz questões ignoradas na pauta de grandes veículos de comunicação (o que) já seria, por si, dado significativo para que ela fosse considerada um novo elemento de interferência na conformação do debate político”.

No entanto, os usos dessas ferramentas são tão diversos quanto a variedade de indivíduos que postam mensagens nessas plataformas de interação online. Desta forma, para que possamos analisar como as práticas políticas podem ser impactadas com essas novas tecnologias, é necessário ir além da questão técnica, observando também a lógica empregada pelo cidadão em relação à classe política nesses ambientes virtuais. Uma lógica ou motivação de interação que muitas vezes pode ser pautada por fatores culturais e sociais. Também é necessário destacar que tal análise proposta leva em consideração uma característica desses espaços virtuais de trocas de mensagens. Assim como em ambientes físicos, no meio online também é possível aos atores em interação tanto o debate público, com a observação de um conjunto maior de participantes como o diálogo restrito, reservado, através das chamadas mensagens privadas. E então, nessa espécie de esconderijo da virtualidade, o político e o cidadão estão, enfim, a sós.

Nesse espaço reservado à vista de terceiros, quase secreto, que conteúdos e interesses podem prevalecer no vínculo técnico entre a classe política e o cidadão? O espaço do esconderijo e do reservado sempre existiu em qualquer interação comunicativa. Porém, a esfera pública virtual ampliou de forma significativa o número de pessoas (cidadãos e eleitores) que podem ter um diálogo direto e reservado com seu representante na esfera política. O ideal tecnicista eleva as redes sociais virtuais como possíveis vetores de uma

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participação popular mais eficiente na esfera política pela simples conexão entre representante e representado. A máquina e a tecnologia efetivamente cumpriu seu papel, ligando milhares de cidadãos ao seu parlamentar ou governante em questão de segundos. No entanto, uma vez estabelecida tal conexão, temos também a construção de um esconderijo para um diálogo mais reservado. E, então, esta interação por um novo espaço reservado - ainda que virtual – não poderia apenas servir para o ideal tecnicista de aprimoramento da democracia mas também atuar num lado oposto, atualizando a matriz cultural brasileira quando colocados em contato direto cidadãos isolados e políticos? Portanto, mais do que questionar se as práticas políticas foram alteradas pela presença dos agentes políticos nessas redes sociais interagindo com cidadãos – em boa medida seus eleitores - é fundamental perguntar: quais práticas foram/são alteradas e de quais formas isso se desenvolve? E, assim, incluir na análise da plataforma tecnológica interativa a perspectiva que leve em consideração nossas matrizes culturais.

Para uma compreensão que vá além da visão tecnicista, é necessário ampliar o olhar para os demais aspectos culturais que integram a sociedade, ou seja, analisar também outros ingredientes que compõem a receita de uma ciberdemocracia, por assim dizer, à moda brasileira. Por ser um ingrediente forte, a matriz cultural deixa sua marca de forma profunda nos vínculos gerados pela técnica. Afinal, esse componente histórico e cultural está enraizado na sociedade. Não se trata de penduricalho ou ornamentação. A matriz ou raiz cultural de um povo é algo que vem acompanhando a formação da nossa sociedade ao longo de anos, décadas e séculos. Mais uma vez, é uma raiz. Ou melhor, são as raízes do Brasil. Para Sérgio Buarque de Holanda, nossa sociedade tem características personalistas enraizadas, priorizando o individual em detrimento do coletivo, permeando as ações na esfera pública de uma razão que leva em conta mais o emotivo que o racional, no que o autor adjetivou com o “homem cordial”, afirmando que a cordialidade constitui a contribuição da sociedade brasileira à humanidade (Holanda, 1995, p. 61):

Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos (...). O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente.

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O conceito de cordialidade no pensamento buarquiano busca dar conta do quanto esse aspecto íntimo da personalidade brasileira está presente nas relações e vínculos da sociedade, sendo expressivo inclusive na religiosidade e mesmo nas questões mais públicas, como a política. Portanto, tendo a cordialidade como matriz cultural da sociedade brasileira, e trazendo ao nosso tempo, é possível que mesmo em ambientes estruturados tecnologicamente, podem estar sendo reforçadas velhas práticas extraoficiais da política brasileira como o clientelismo e, de forma mais genérica, nas formas como o cidadão brasileiro se relaciona com a “coisa” pública? Afinal, esse tipo de prática cordial persiste na política brasileira, seja nas instituições, nos partidos ou outras esferas, tal como destaca Gomes (2004, p. 102):

De qualquer maneira, há uma diferença entre partidos que se põem na arena política com uma visão de mundo acerca do modo como deve ser configurada a coisa pública e partidos que se constituem como agregações de interessados em tirar vantagem do controle do Estado. O primeiro caso se dá em sistemas democráticos mais amadurecidos, com esfera civil forte e uma esfera política constituída por partidos que disputam em torno de projetos e programas. O segundo caso é típico de sistemas políticos onde o Estado é entendido como coisa particular do grupo que chegou ao poder, que pode exercê-lo através de práticas, clássicas em nossa região, como o velho clientelismo. De todo modo, em toda parte, em certos lugares mais, em outros menos, a política é terreno fecundo para oportunistas sempre à procura das saborosas sobras do poder, não importando quem se senta à mesa.

Como foi visto, o desenvolvimento das internet gerou a expectativa dos cidadãos terem a possibilidade de dialogar diretamente com os detentores de poder político a qualquer tempo, seja de forma pública ou reservada, com mais facilidade. O efeito dessa ligação direta entre sociedade civil e classe política gerada a partir das redes sociais poderia ocasionar novamente mudanças ou reinvenções das práticas políticas? Ou teríamos aprofundamento de práticas presentes historicamente na política, inclusive ampliadas e aprofundadas por conta da conexão técnica?

Por fim, temos a disposição um arsenal técnico que poderia gerar o aprimoramento da democracia representativa, sendo o conjunto de fatores como pluralidade de discursos, transparência do Estado, interação constante entre cidadãos e poder político, instaneidade e agilidade da informação, transmissão de conteúdo para um número maior de usuários da rede aptos a compartilhar e participar dos processos e debates da esfera política o embrião para uma futura aplicação do ideal de ciberdemocracia, com voto direto dos cidadãos sobre as questões públicas (Lévy, 2002).

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As novas tecnologias de comunicação, mais uma vez, surgem com a promessa de solucionar obstáculos da democracia representativa na contemporaneidade. Trata-se, no entanto, novamente da importação de um modelo estrangeiro de interação e vínculo político, desta vez baseado na técnica computacional. Porém, conforme Sérgio Buarque de Holanda abordou em outro contexto e período histórico, mas que permite a reflexão ainda hoje, modelos políticos trazidos de fora acabam por adaptar-se e moldar-se de forma diferente por estas terras, uma vez que parece estranho no processo de formação do sistema político nacional e de nossa sociedade a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático, como coloca o autor (Holanda, 1995, p. 146):

No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.

Sem dúvida, são inúmeros os caminhos que a internet possibilita, capaz de ligar as pessoas em rede, conforme descreve Castells, num novo ambiente. Mas, apesar dessa possibilidade de participação democrática da população nas questões públicas, a técnica pode ser pensada fora das matrizes culturais brasileiras? Afinal, o padrão do comportamento e do uso pelo cidadão da internet é individual, tal como é também seu relacionamento com a classe política, uma vez fora de ambientes coletivos ou corporativos, como sindicatos e associações. E, quando o relacionamento é individual e isolado de terceiros, muitas vezes é pautado por uma ética que varia de acordo com os interesses dos envolvidos no vínculo criado.

Para Sérgio Buarque de Holanda (1995), nossa sociedade está inclinada a acreditar que as leis em nosso País não foram feitas para serem cumpridas e sim violadas, uma terra onde tudo pode ser feito e realizado, onde a exceção pode ser a regra. Assim, boa medida do que pode ser observado no sistema político brasileiro não ocorre senão em favor de indivíduos e de oligarquias. Portanto, mesmo na rede mundial de computadores, onde poderia ser gerado um novo ambiente para nos levar a uma democracia mais plural e coletiva, podemos ainda estar carregando para este espaço virtual todos os aspectos culturais e históricos que forjaram a sociedade brasileira. Essa matriz cultural, tão abordada pela pesquisa social brasileira e mais especificamente no pensamento buarquiano, estaria também

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então viva ainda hoje mesmo em novíssimos ambientes e vínculos criados por mecanismos tecnológicos?

Estes questionamentos devem ser considerados quando for pensado o problema da interação virtual entre a classe política e a sociedade, uma vez que não é possível fazer a análise desses vínculos sem deixar de lado aspectos sociais e culturais, superando uma visão demasiadamente tecnicista da conexão online como base de solução para o aprimoramento e aperfeiçoamento do sistema político vigente no Brasil.

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