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2.2 Imprensa feminina e imprensa feminista

2.2.1 Ciberfeminismo

Após viabilizar um panorama geral sobre a imprensa feminina e a feminista, apreendendo que AzMina carrega elementos dessas duas imprensas, podemos compreendê-la também como uma mídia que executa uma prática ciberfeminista. Isso porque ela é um veículo nativo digital que produz conteúdos voltados à disseminação da perspectiva de gênero e feminista nas redes online. Em razão disso, avalio que seja pertinente traçar algumas linhas a respeito do assunto.

Inicio a explanação pelo entendimento que a internet pode ser assimilada sob diversas óticas, dentre elas: um cenário para ação política (ZAFRA, 2011), uma maneira de reapropriação cidadã da comunicação (BURCH, 2009), um local plural para circulação e promoção de participação coletiva e uma forma alternativa de sociabilização (WOITOWICZ, 2010)63. Em função de propiciar essas potencialidades, Remedios Zafra (2011) atualiza o conceito de “quarto próprio” de Virgínia Woolf para refletir sobre um quarto próprio conectado à internet. Esse quarto próprio online constituiria um espaço público para experimentação e criação de identidades na internet64. Assim, as mulheres poderiam usufruir de uma potência criativa para se organizarem politicamente por meio de conexões online.

Todavia, é válido sublinhar que não só os movimentos de mulheres encontraram jeitos alternativos de se estruturarem no meio digital. Com a internet, foi aberto um caminho para que

63Há também pontos negativos sobre a internet, como as exclusões causadas pelos algoritmos, as polarizações e as organizações hierárquicas que podem aniquilar certas possibilidades democráticas (SANTOS, 2020). Além disso, Kelly Prudencio (2006) argumenta que a internet é um espaço em que todas as pessoas podem falar, mas nem todas são ouvidas. Assim, embora haja potencialidades, é importante ter consciência que não existem apenas aspectos benéficos na rede online.

64Carolina Ferreira (2015) e Remedios Zafra (2011) atualizam essa noção de quarto próprio percebendo que as condições para autonomia feminina mudaram. Isso ocasiona na ideia que a estratégia de utilização do próprio quarto não é unânime a todas, uma vez que existem fatores de intersecção tais como os marcadores sociais da diferença.

os movimentos sociais, em geral, explorassem a web como possível aliada para mobilização e ação. Isso porque nela são ofertadas outras maneiras de articulação em rede. Ainda que a tecnologia não determine os movimentos sociais, “[...] as redes da internet e de telefonia celular não são apenas ferramentas, mas formas organizacionais, expressões culturais e plataformas específicas para a autonomia política” (CASTELLS, 2013, p. 66). Assim, houve uma contribuição para refletir sobre novos modos de organização e deliberação autônoma. Nos termos de Kelly Prudencio (2006):

[...] não é a Internet que cria um provável “movimento social transnacional”, como sugerem algumas avaliações. Mas o suporte tecnológico agiliza os contatos e acelera a entrada de temas na agenda de discussão pública e o processo de tomada de decisões em relação a eles, ainda que num nível simbólico-discursivo.

Pois, na medida em que os atores em rede organizam a informação, atribuindo-lhe um significado diferente do estabelecido, eles mantêm a capacidade de produzir (ou anunciar) mudanças na sociedade (PRUDENCIO, 2006, p. 132).

A partir dessas possibilidades, diversas organizações políticas contemporâneas, a exemplo do Occupy Wall Street e da maioria dos levantes árabes na Primavera Árabe, foram gestadas pela internet65. Esses movimentos se formaram por meio das redes sociais digitais, assim constituindo preliminares teias de união. Depois, se espalharam por difusão viral, de forma horizontal e autônoma pela partilha de experiências e indignação política. Foi dessa mesma forma que ocorreu no Brasil, a partir de 2011, um período de agregação do campo discursivo de ação feminista na internet. Tal movimentação culminou em 2015 na Primavera das Mulheres (MARTINEZ, 2019)66.

Contudo, destaca-se que a utilização das redes por movimentos organizados não começou na segunda década do século XXI. Ela vem desde antes, se focarmos na trajetória do movimento feminista. Mesmo enfrentando obstáculos como a brecha de gênero67 - a qual se

65Segundo Castells (2013), esses movimentos apresentam algumas características comuns, a saber: conexão em rede de múltiplas formas; simultaneamente locais e globais; espontâneos em sua origem - geralmente desencadeados por indignações; virais; sem liderança formal; raramente programáticos; e voltados às mudanças de valores na sociedade pela cultura da autonomia.

66Desde 2011, tivemos uma série de movimentos no Brasil, como a Marcha das Vadias, o Ele Não e o Mexeu com Uma, Mexeu com Todas, os quais começaram e se disseminaram pelas redes sociais digitais. Também, houveram campanhas cibernéticas, como a #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, #AgoraÉQueSãoElas,

#EuNãoMereçoSerEstuprada, Chega de FiuFiu e Vamos Juntas?. O ano de 2015 foi considerado o ano do feminismo na internet segundo o Think Olga, já que ocorreu, em conjunto com a Primavera Secundarista no Brasil (encabeçada por jovens mulheres), a Primavera das Mulheres, que foi a tomada das ruas relacionada à insatisfação sobre as pautas conservadoras do Congresso Nacional.

67Ainda que essa brecha de gênero tenha diminuído nos últimos anos, as mulheres ainda participam pouco da esfera de decisão sobre infraestrutura física e lógica das redes sociais digitais. Em razão disso, Graciela Natansohn (2013) pondera que não basta só ter a possibilidade de acesso. É preciso ser feito o questionamento acerca da cultura tecnológica resistente às mulheres.

refere ao habitus tecnológico binário e hierárquico que propicia a falta de alfabetização, uso, capacitação e apropriação da ciência e da tecnologia pelas mulheres (BENÍTEZ-EYZAGUIRRE, 2019; FERREIRA, 2015) –, o feminismo aliado à internet surgiu na década de 1980 (DUTRA, 2018), de forma a questionar a tecnofobia do feminismo tradicional (MIGUEL;

BOIX, 2013). Porém, é a partir dos anos 2000 que houve maior aproveitamento da rede e de seu caráter criativo, político, autônomo e coletivo. Tal movimento aconteceu neste século em razão da disseminação da internet ter efetivamente ocorrido em diversos países somente nessa altura.

A partir disso, a internet tornou-se também um local para tradução de termos, ideias e lutas feministas, para formação de redes de ativismo online e offline (FERREIRA, 2015) e para discussão sobre o próprio campo do feminismo e suas vertentes (MARTINEZ, 2019)68. A espanhola Lucía Benítez-Eyzaguirre (2019) utiliza, inclusive, o termo “internet feminista”, o qual se refere àquela que se ocupa de outras lógicas, incluindo novos pontos de vista e dispondo de outra ordem de prioridades. Ademais, a proposta dessa internet feminista é não apenas incorporar as mulheres às tecnologias existentes, mas torná-las plurais a todas, independente dos marcadores sociais existentes (MAFFIA, 2013).

Nesse cenário que contempla a internet como um espaço de disputa a ser ocupado pelo feminismo, surgem práticas ativistas em redes digitais. Esse movimento é chamado de ciberfeminismo. Embora não haja consenso sobre o termo, é considerado um fenômeno estético, político e comunicacional que questiona as desigualdades de gênero por meio das relações estabelecidas entre mulheres, ciência, tecnologia e cultura eletrônica (MARTINEZ, 2019; FERREIRA, 2015).

Desde a arte, o humor e a ironia, as ciberfeministas buscam a desconstrução de arquétipos e da representação do corpo feminino pelo uso subversivo dos dispositivos digitais (MIGUEL;

BOIX, 2013; DUTRA, 2018). Também, trabalham pela inserção de mulheres em profissões da área da tecnologia, além de ocupar as redes para estabelecer comunicações entre mulheres (LEMOS, 2009). O intuito é construir outras ordens e discursos por meio da tecnologia, negociando novas possibilidades de subjetividades. Assim, apostam no potencial transformador

68Fabiana Martinez (2019) afirma que, a partir de 2015, a internet para o feminismo começou a ocupar papel semelhante aos dos grupos de consciência da década de 1970, consolidando esse espaço como de trocas e identificações. Assim, tornou-se um lócus de ação e reflexão de grupos feministas para construir uma nova epistemologia do conhecimento feminista, a qual não esteja mais pautada pela cisão de categorias estanques como o feminismo acadêmico e o pragmático militante.

do cruzamento entre feminismo, tecnologia e internet, a fim de que haja mudança social e criação de um espaço público, político e social próprio (BENÍTEZ-EYZAGUIRRE, 2019).

O movimento ciberfeminista, fragmentado, múltiplo e desterritorializado, teve sua origem nas redes eletrônicas anteriores à WWW, como a BBS e as intranets universitárias dos anos 1990. Os primeiros grupos foram o VNS Matrix e o Old Boys Network (OBN), fundados na Austrália e na Alemanha, respectivamente69. Também, teve sua germinação a partir das investigações de teóricas que estudavam a linguagem em sua relação com o corpo, a subjetividade e a tecnologia, propondo uma crítica ao sujeito autônomo e centrado do projeto moderno (LEMOS, 2009). Um exemplo dessas pesquisas é o Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway (2009). No texto, a autora buscou desenvolver uma perspectiva epistemológica diante da urgência de delinear uma política feminista dirigida à ciência e à tecnologia70.

De acordo com o estadunidense Alex Galloway (1997 apud MIGUEL; BOIX, 2013)71, o ciberfeminismo apresenta duas tendências: radical e conservadora. A radical foi mobilizada pelas intervenções com táticas de guerrilha de vanguarda de grupos como a VNS Matrix, enquanto a conservadora estaria situada na prática da OBN, articulando as primeiras conferências ciberfeministas do mundo. As espanholas Ana Miguel e Montserrat Boix (2013) adicionam uma terceira tendência, que seria a social. Ela diz respeito ao uso estratégico das redes, reivindicando a comunicação como direito humano básico e elemento fundamental para mudança social.

Partindo dessa tendência social do movimento, podemos compreendê-la como uma semente para o engendramento de práticas online de jornalismo com perspectiva de gênero, tal como AzMina. Desse modo, a criação de espaços próprios de comunicação e jornalismo na rede

69O ciberfeminismo não teve tanta expressão no Brasil em seu início, apenas contando com a atuação de grupos isolados e ONGs que tentavam inserir as mulheres no debate sobre feminismo e tecnologia. Isso aconteceu uma vez que o movimento apresentava características etnocêntricas por não incorporar mulheres de outras partes do mundo que tinham dificuldades de acesso às tecnologias, à educação formal ou à língua inglesa (BINDER, 2019).

Desse modo, o ciberfeminismo só começou a ter maior expansão na América Latina, e no Brasil, em específico, a partir dos anos 2000.

70No Manifesto Ciborgue, Donna Haraway (2009) promove uma tensão entre os dualismos hierárquicos como mente e corpo, animal e humana, organismo e máquina, natureza e cultura, primitivo e civilizado, etc. Por meio da ideia de criação do ciborgue, um organismo cibernético híbrido entre máquina e organismo, “criatura de um mundo pós-gênero” (HARAWAY, 2009, p. 38), argumenta sobre a existência de identidades permanentemente parciais, recusando qualquer totalidade e matriz identitária natural. Assim, a autora advoga para que as tecnologias da comunicação funcionem como ferramentas de remodelamento dos corpos e proposição de novas relações sociais. Com isso, pretende buscar uma outra representação que se dê em um mundo sem gênero, adotando uma perspectiva que vai ao encontro das desconstruções de gênero e da valorização das subjetividades fluidas.

71GALLOWAY, Alex. Un informe sobre ciberfeminismo: Sadie Plant y VNS Matrix - análisis comparativo.

1997. Disponível em: <https://www.mujeresenred.net/spip.php?article1531>. Acesso em: 20 fev. 2020.

digital tem se tornado uma nova forma de ação política para o ciberfeminismo e para o movimento feminista, como um todo.