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Ciclo do gado na Alta Mojiana

Há, entretanto, uma outra região em que a influência da arquitetura praticada em Minas Gerais foi muito mais presente: naquela situada ao norte de Campinas, de Moji- Mirim a Franca.

Até meados do século XVIII, essa região era pouco povoada, limitando-se a pequenos núcleos urbanos ao longo do antigo caminho de Goiás. No entanto, uma rede de caminhos não oficiais já havia sido aberta, ligando o interior da capitania mineira às novas lavras auríferas de Goiás e Mato Grosso, caminhos que se uniam à estrada oficial de Goiás, muitos deles passando pelo nordeste paulista.

No final dos setecentos, por esses caminhos, ocorre um avanço das atividades pecuárias para além das fronteiras mineiras, invadindo o território paulista. Segundo Brioschi: Esse período em que os entrantes mineiros povoaram o Nordeste Paulista foi uma época marcada pela decadência das minas de ouro e por um esvaziamento das vilas e cidades formadas pela função da atividade mineradora. Minas Gerais, que à época da mineração

já apresentava uma rede urbana desenvolvida, conheceu uma dispersão de sua população pelo campo, dando-se verdadeira “ruralização” da sociedade mineira. Dentro dessa conjuntura processou-se grande migração de mineiros para as Capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo crer em um avanço das atividades desenvolvidas no sul de Minas, para as Capitanias vizinhas e não simplesmente uma forma de evasão à decadência mineradora.61

Já havia uma sociedade rural mineira que praticava uma agricultura diversificada e a pecuária de corte e de leite para o abastecimento das cidades. O exaurir das minas, ainda no dizer de Brioschi, liberando recursos e força de trabalho em abundância, propiciou a expansão da lavoura, da pecuária e das manufaturas nas Minas Gerais.62

As terras férteis, o clima favorável, e a presença da estrada de Goiás, ligando o Nordeste Paulista ao novo mercado consumidor recém-criado no quadrilátero do açúcar, segundo Freitas, também fazem parte do rol de fatores que incentivaram a fixação desses mineiros em solo paulista.63

Esse processo migratório pode ser comprovado também pelos relatos dos viajantes D’Alincourt e Saint-Hilaire, que no início do século XIX percorreram a região em direção a Goiás e Mato Grosso, e encontraram muitas pessoas morando na região, originárias de Minas Gerais, e que se dedicavam ao cultivo de cereais como milho, feijão, arroz e cana-de-açúcar, à fabricação de queijos, de aguardente e açúcar, mas, principalmente, à criação de gado bovino e suíno.64

Não cabe aqui tratar da forma de ocupação dessas terras e dos embates entre os antigos posseiros paulistas e os mineiros que chegavam com escravos e donos, já, de certa fortuna. O importante é a constatação da grande influência nos hábitos, na arquitetura, nas tradições que esses forasteiros deixaram em toda a região. Vindos, em sua maioria, do vale do rio das Mortes, região de São João del Rey, acabaram por se

_____________________________________________________________________________________________________________ 65 FREITAS, D. C. A. Op. cit., pp. 161-7.

66 Idem, ibidem, p. 168.

67 LEMOS, C. A. C. Op. cit., 1999, pp. 99 e 112.

68 Sobre essas fazendas trataremos mais detalhadamente no capítulo 4.

69 FREITAS, D. C. A. Op. cit., p. 173.

estabelecer nessas terras e implantar fazendas de gado, ali deixando sua descendência. Os antigos pousos ao longo do caminho de Goiás cresceram, e já no início do século XIX duas freguesias foram criadas: a de Franca, em 1805, e a do Senhor Bom Jesus da Cana Verde (Batatais), em 1815. Freitas, em seu trabalho sobre a arquitetura rural do Nordeste Paulista, baseada em intensa pesquisa em documentos do início do século XIX, mostra a expressiva presença de mineiros na região e o seu papel fundamental na abertura de fazendas, na fundação de povoados. Famílias que teriam importante papel na história local, como os Garcia Leal, Garcia de Figueiredo, Diniz Junqueira, Pereira Lima, Alves Moreira, Barcelos, Faria, Martins, etc, todos procedentes das Gerais.

A situação que essas famílias encontraram no Nordeste paulista foi muito diferente daquela do quadrilátero do açúcar: uma região já constituída, povoada e com o peso da tradição paulista de séculos. Por outro lado, naquela os migrantes se viram em meio a uma região praticamente deserta, inculta, repleta de terras devolutas, fruto de sesmarias concedidas e não ocupadas. Desse modo, eles foram os principais responsáveis pela criação de todos os seus aspectos socioculturais, transformando-a na mais mineira das regiões paulistas.

Como resultado dessa ocupação, as unidades agrícolas conservaram da tradição mineira a destilaria e o engenho de açúcar, a casa de farinha, o monjolo, o paiol, a queijaria, o indispensável curral cercado de lascas de aroeira, e o cos- tume de se abrir grandes valos para determinar as divisas de pastos e mesmo entre as propriedades. Essas eram as características das fazendas da Comarca do Rio das Mortes, e ainda hoje são visíveis nas fazendas da região.65

Freitas também afirma, e isso é facilmente comprovável, que essas fazendas herdaram das mineiras a técnica construtiva, a implantação no terreno, o respeito à topografia, a proximidade dos córregos, o rego d’água correndo entre as árvores do quintal e indo mover o monjolo ou a roda d’água ou ainda o engenho de serra. Este uso do rego d’água para mover estes equipamentos é, pelos antigos, chamado de engenharia mineira.66

Todos esses equipamentos e edificações, aí incluídas o casarão e a senzala, se organizavam ao redor de um pátio de terra ou calçado de pedra, geralmente cercado por paliçadas. Pátio de tradição portuguesa, com funções múltiplas de organização do espaço, circulação, secagem de cereais ou guarda do rebanho. A religiosidade era marca significativa dos mineiros e em suas fazendas, quase sempre aparece a cruz latina, plantada num local próximo ao casarão. Esse foi um costume que se perpetuou e se tornou freqüente em muitas das fazendas da Mojiana.

Hoje, os mais antigos desses casarões datam das primeiras décadas do século XIX. Lemos destaca que essas casas

mineiras construídas em São Paulo não tiveram uma constância no seu planejamento:

(...) as plantas assumiam as mais variadas disposições, contanto que sempre ficasse assegurada aquela separação de circulações, a íntima e a de cerimônia. Constante foi a opção: casa elevada do chão numa de suas extremidades, porão alto, estrutura autônoma de madeira e vãos estruturais preenchidos com adobes nos exemplares mais antigos. No embasamento, muros de pedra. Nas paredes internas, taipa de mão. Quase todas, principalmente as mais velhas, providas de varandas alpendradas sob telhados de prolongo, varandas de recepção e às vezes servindo de nave para a capela.67

Na verdade, o historiador generaliza algumas características nem sempre presentes. O alpendre não foi tão usual assim - muitas delas são desprovidas desse elemento - e podem- se citar como exemplos as casas das duas fazendas de mesmo nome, São José, existentes no município de Nuporanga; da fazenda São Pedro, em São João da Boa Vista; da Invernada, em Morro Agudo; da fazenda Floresta, em Mococa; fazendas Cachoeira, Itatinga e São José, de Batatais, entre outras. O adobe também não foi uma constante nas paredes externas, já que em muitas delas a técnica utilizada foi a taipa de mão. Quanto à disposição da planta, pode-se afirmar que houve um predomínio do partido em L: corpo principal atrelado ao anexo de serviços. Mas deve-se concordar que a variação é grande.68

Freitas, em seu estudo sobre a arquitetura rural da região de Batatais e Franca, salienta a existência, em algumas casas, do alpendre posterior, e também a influência das casas da Comarca do Rio das Velhas, onde se entra diretamente na sala,69 o que reflete a inexistência de alpendre.

Muitas dessas antigas fazendas de gado se transformariam em fazendas cafeeiras, nas décadas seguintes. Os velhos pátios e antigas dependências dos primeiros tempos seriam substituídos por terreiros de café, lavadores, tulhas, casas de máquinas de beneficiamento. Boa parte delas, no entanto, conservaria seus casarões, alguns intactos, outros com algumas alterações.