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Refletir sobre a questão dos direitos das pessoas com deficiência significa hoje discutir cidadania e democracia, igualdade social e respeito às diferenças. Pensar a mesma questão no contexto brasileiro nos obriga a uma série de análises que envolvem justiça social e direitos humanos e nos levam a considerar as muitas e incontáveis imposições econômicas e sociais que fazem dessa população um radical exemplo de exclusão social em nosso país.

Na realidade, a cidadania usurpada das pessoas com deficiência se inscreve entre os nossos mais graves problemas sociais mas não faz parte da consciência social brasileira.

Proponho formularmos a premissa de que para compreender os “direitos da pessoa com deficiência” no Brasil é preciso, antes de mais nada, que os enfoquemos como uma questão de cidadania e de direitos humanos.

A necessidade dessa abordagem social e ampla do problema resulta da convergência de três aspectos distintos.

Por um lado, sua dimensão demográfica. Considerando que a Organização das Nações Unidas calcula que a população com

deficiência em países com as características socioeconômicas do Brasil é de 10% da população global, cerca de 18 milhões de brasileiros são portadores de algum tipo de deficiência, intelectual, física, auditiva ou visual. Podemos considerar que não temos dados oficiais confiáveis, embora o IBGE tenha encontrado um índice de 14,50% no último censo nacional.

Por outro, o fato de constituírem a parcela mais fragilizada de toda a população brasileira, se levarmos em conta as limitações inerentes às deficiências e as limitações impostas pelo preconceito e pela sociedade, ambas determinando definitivamente sua exclusão social.

E por fim também porque é um problema de direitos sociais, porque a vida da grande maioria dos 18 milhões de brasileiros com deficiência está marcada pelo preconceito e caracterizada por falta de acesso a serviços de prevenção, saúde e educação, e falta de oportunidades de acesso ao mercado de trabalho.

Se unirmos aos cálculos da ONU os estudos do IPEA que dizem que, no ano de 2000, cerca de 16% da população brasileira tinha como renda domiciliar per capita menos de 1/4 de salário mínimo – estando abaixo da linha de extrema pobreza – teremos em torno de 3 milhões de pessoas com deficiências vivendo com essa renda. E sobrevivendo, desse modo, sem nenhum tipo de reabilitação básica, por menor que seja, sem qualquer possibilidade de romper a exclusão social e construir seu acesso à cidadania. Talvez esses números permitam perceber, tocar, a magnitude do problema, a existência de cerca de 3 milhões de brasileiros presos em suas deficiências, sem possibilidade de serem seres humanos:

cegos sem bengalas, amputados sem muletas, paraplégicos sem cadeiras de rodas, surdos sem comunicação, deficientes intelectuais totalmente isolados.

O desrespeito aos direitos humanos da pessoa com deficiência atinge mais do que os radicalmente excluídos pelos efeitos da miséria absoluta, e torna todos iguais na discriminação causada pelo preconceito e pelo desconhecimento. A exclusão em que vive 10% da população brasileira começa pelo desrespeito ao direito civil básico de ir e vir, passa pelo desrespeito ao direito político de votar e de participar da vida política, e desemboca no desrespeito aos direitos sociais básicos de acesso à saúde e à educação, ao trabalho e ao lazer: não há expressão mais violenta de não-cidadania.

É como se pudéssemos viver a aspiração de sermos uma democracia excluindo dela 18 milhões de brasileiros.

É como se o mundo já não vivesse as grandes perspectivas de inclusão que vêm sendo construídas como uma das soluções mais humanas e eficazes, disseminando a idéia de inclusão social da pessoa com deficiência e de normalização de sua vida.

Como então entender o permanente desrespeito aos seus direitos básicos de cidadania? A única resposta possível é perceber o problema como uma questão social e entender a sociedade como o local onde predomina o preconceito, onde o estigma atingiu de tal modo a pessoa com deficiência que a colocou vivendo em um mundo feito de diferença e discriminação.

Direitos civis foram construídos no mundo pela garantia dos direitos individuais, pelo direito de ir e vir, pela liberdade de expressão, pelo acesso à justiça. Direitos políticos foram garantidos pela participação nos diversos níveis de decisão possibilitando convivência política e exercício de democracia.

Direitos sociais foram personificados na construção do Estado do Bem Estar Social e foram plantados e colhidos das mais

diversas formas em nosso mundo atual. O direito à saúde foi definido como matéria básica do direito à vida, como possibilidade de colocar ao alcance de todos o bem estar ampliado e amparado nos avanços das ciências e da medicina.

O direito à educação, como necessidade fundamental para a construção do ser humano, indispensável ao homem como ser completo onde conhecimento e cultura transformam cotidianamente suas dimensões de vida. E o direito ao trabalho, como forma de realização do homem no mundo moderno, por onde pode tomar parte na construção de sua vida, de sua comunidade, de seu país. Também o direito ao lazer e ao esporte foram reconhecidos. E finalmente as liberdades e conquistas desse nosso século estão representadas pelo imprescindível desenvolvimento dos direitos coletivos e difusos que tornaram o homem moderno consciente de que sua vida tem uma dimensão maior onde a preservação dos bens coletivos é necessária e impõe limites à vontade pessoal.

Esses direitos de cidadania, construídos ao longo da história moderna, estão por construir em nosso país, e para grande parte da população brasileira são ainda uma luta diária a ser travada.

Ao examinarmos o enunciado desses direitos básicos torna-se indispensável pensarmos na realidade brasileira, verificarmos o quanto nos falta para alcançarmos uma democracia verdadeira e abrangente. Essa análise torna-se mais necessária quando se refere especialmente às pessoas com deficiência, pois a elas, mais radicalmente ainda, a cidadania é cotidianamente negada. Admitamos e nos alegremos com as exceções porque com elas poderemos estar começando uma nova aliança.

Para as pessoas com deficiência, direitos civis, direitos políticos, direitos sociais, direitos coletivos fazem parte de

uma realidade por construir. Examinemos sob o olhar dos direitos da pessoa com deficiência alguns desses pontos que determinam hoje o respeito que um país tem por seus habitantes, que falam da qualidade de vida de um povo, dizem da democracia nele construída.

No Brasil é cotidianamente desrespeitado o direito de ir e vir das pessoas com deficiência física. Em sua grande maioria os meios de transporte coletivos não estão adaptados, as calçadas e vias públicas não são acessíveis, os prédios, nem os públicos nem os de uso coletivo, respeitam as necessidades mínimas de acessibilidade para cadeiras de rodas e outras dificuldades de locomoção.

Nem os surdos nem os deficientes auditivos nem os cegos nem os deficientes visuais têm respeitado seu direito à liberdade de expressão, porque não somente sua própria expressão individual lhes é negada – quando a educação não lhes garante esses meios –, mas também lhes é negado o acesso aos meios de comunicação do mundo moderno, que poderiam se tornar acessíveis através de adaptações fáceis, para citarmos apenas algumas simples, como o uso da impressão em Braille, a utilização da linguagem de sinais e de legendas nos meios de comunicação, dentre outras inúmeras possibilidades.

Também não é respeitado o direito de acesso à justiça porque embora o Brasil tenha uma legislação relativa às pessoas com deficiência moderna, considerada por organismo internacional como a mais inclusiva das Américas, ela não é nem conhecida nem aplicada nem respeitada, o que quase a torna inútil.

Não são respeitados os direitos políticos porque sabemos que a grande maioria das pessoas com deficiência não faz parte do processo político, não votando pois as condições para o exercício do voto não estão acessíveis, ou não participando

porque seu alijamento da cidadania faz com que não exista representação política consistente para suas reivindicações.

Seu direito à saúde não é respeitado. Se não são expulsas logo na entrada pelas barreiras da discriminação e do desconhecimento, são logo em seguida descartadas pelo despreparo e o preconceito dos profissionais de saúde que em sua grande maioria parecem querer desconhecer que as necessidades de âmbito geral dessas pessoas são as mesmas de qualquer um. Por fim, são colocadas para fora pela falta de recursos humanos e materiais adequados às suas necessidades específicas. Não dispomos de um sistema de prevenção coordenado e não temos atendimento especializado. As doenças relacionadas com as diferentes deficiências se instalam na população brasileira livres de qualquer controle, sem prevenção primária, secundária ou terciária, abandonadas que estão à própria sorte, ao acaso da força pessoal de conseguir vencer e conviver com a deficiência.

Prova disso é a precariedade do sistema de concessão de órteses e próteses.

Também o direito à educação é desrespeitado. O Brasil discute ininterruptamente as reformas do ensino, as novas necessidades da educação, a criança na escola, a formação profissional, mas a educação especial inclusiva não existe como problema importante a ser enfrentado. A sociedade, através das associações de pais, assumiu a maior parte da educação das pessoas com deficiência intelectual, e o Estado, através do que sobrou dos grandes institutos, recebe as pessoas com deficiência visual e auditiva. Reafirmo: as raras exceções confirmam essa análise. O país age como se as pessoas que necessitam de educação especializada não precisassem ser levadas em conta, não estivessem entre as obrigações do

Estado com educação, quando são exatamente elas as que mais precisam e mais têm a perder se não passarem por um processo educacional.

Por outro lado, também não estão nas instituições de profissionalização nem nas disputas por colocação no mercado de trabalho. Seu direito ao trabalho não é respeitado nem na formação profissional nem na hora da disputa por competência.

A grande maioria das diferentes instituições responsáveis pela formação profissional em nosso país mantém-se fechada para elas. Os Sistemas Nacionais de Aprendizagem e as universidades ainda não são inclusivos. Desse modo, o preconceito lhes nega o direito a adquirir competência e a grande maioria não consegue nem se profissionalizar nem se empregar em igualdade de condições.

Direito ao esporte, à cultura, ao lazer, são praticamente da dimensão do supérfluo para sua grande maioria.

Diariamente elas têm desrespeitados seus direitos básicos de cidadania. Construí-los porém é simples. Não são necessários nem bilhões de dólares de investimento, nem inovações tecnológicas difíceis de alcançar, nem grandes obras, nem mesmo reformas institucionais profundas ou grandes mudanças de legislação. Mas é a discriminação baseada no preconceito e no desconhecimento que define a falta de compromisso com o problema. É preciso fazer entender o direito que as pessoas com deficiência têm de serem iguais.

O reconhecimento da diferença e a luta pela igualdade devem ser os marcos de uma democracia onde todos têm os mesmos direitos e são cidadãos da mesma categoria.

O preconceito se forma com a necessidade de eficiência e produtividade do mundo moderno somada à ameaça que a pessoa com deficiência representa através de suas limitações.

É como se o homem fosse avaliado não pelo que tem de humano, pelo seu conteúdo, mas pelo que tem de aparência, por sua representação. Nesse contexto, a diferença e a falta representados na deficiência são uma ameaça à busca de perfeição do homem moderno.

Existe um pacto entre Estado e sociedade em nosso país em relação a essa questão. O acordo começa quando o assunto é mantido na área da assistência social, da caridade, do paternalismo, passa pelas falsas políticas de participação e se completa quando entende a deficiência como diferença e aceita a cidadania incompleta dos diferentes.

É essa cidadania diferenciada que mantém a pessoa com deficiência longe.

É preciso acreditar na construção de seus direitos em nosso país, participar dessa construção; e ela só acontecerá quando houver consciência social para exigir o respeito à diferença, quando entendermos que só uma sociedade inclusiva pode construir uma democracia verdadeira.

2. Os instrumentos para a cidadania: marco legal e

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