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2. Formação do meio arquitetônico

2.2 Cidade, arquitetura e um apêndice

Em meio à citada vaga modernizante do Governo Federal11, as iniciativas da esfera municipal também concorrerão neste sentido. A cidade passa por um processo de melhoria da infraestrutura urbana com a pavimentação de diversas ruas e substituição dos calçamentos em pedra tosca por

10 Em reforma, realizada em 1975, o edifício recebeu acréscimo de mais um

pavimento.

11 Em Fortaleza, outras destacadas realizações de âmbito federal

acontecerão no transcorrer do período, como a construção do Banco do Brasil (1942), com projeto de Firmino Saldanha, e as sedes regionais dos institutos de previdência, projetadas no Rio de Janeiro por arquitetos integrantes dos seus respectivos quadros: IAPB (bancários), IAPC (comerciários), IAPI (industriários) e IPASE (funcionários públicos).

paralelepípedos, a facilitação de acesso à área portuária, através da interligação das ruas Visconde do Rio Branco e Sena Madureira, bem como a substituição do sistema de iluminação pública para energia elétrica (1934) e a inauguração do serviço telefônico automático de Fortaleza (1938). Também, na década de 1930, serão executados importantes marcos simbólicos, como a construção da Coluna da Hora (1933), torre de relógio projetada por José Gonçalves da Justa no centro da Praça do Ferreira, coração da cidade, e do Paço Municipal (não concluído), com projeto de Emílio Hinko.

No âmbito do planejamento urbano, um novo código de posturas é elaborado em 1932, e nele já se institui a obrigatoriedade do afastamento lateral para casas e prédios, em observância aos novos conceitos sanitaristas, além de consagrar um capítulo ao concreto armado e passar a exigir a qualificação dos responsáveis pelos projetos e obras. Também, nesta direção, serão contratados serviços do arquiteto Nestor Egydio de Figueiredo para elaboração do “Plano de Remodelação e Extensão da Cidade de Fortaleza” (1933), considerado a “primeira tentativa de sistematização do crescimento urbano de Fortaleza depois do projeto de Adolfo Herbster de 1875” (FERNANDES, 2004, p.27), concebido segundo o preceito modernista do zoneamento funcional.

O plano não será efetivado em decorrência de pressão dos grandes proprietários de terra, receosos das inevitáveis desapropriações. Na avaliação de Castro (1987, p.234),

a implantação do plano de Figueiredo poderia ter induzido, no momento apropriado, uma transformação que constituísse uma transição harmoniosa entre a organização espacial oitocentista e a do século XX. Entretanto, nada foi feito em termos de remodelação urbana, de modo que o centro se manteve intocado, sem conhecer algumas adaptações que o traçado em xadrez e as dimensões da cidade já pediam.

5. Nestor de Figueiredo.

Plano de Remodelação e Extensão da Cidade de Fortaleza, 1933. Planta do sistema viário.

Fonte: Fernandes, 2004.

Finalmente, ainda dentro do rol de ações modernizantes empreendidas pelo poder público, cabe destacar a sua postura, claramente indutora quanto ao processo de verticalização, bem expressa pelo decreto 384, de 7 de julho de 1938, o qual somente autorizava, na zona central, a construção de prédios com, no mínimo, dois pavimentos12.

O setor privado, literalmente, responderá “à altura”, desencadeando o início do processo de verticalização da área central: Edifício Granito (1934, com 3 pavimentos), Edifício Parente (1936, com 5 pavimentos), Edifício J. Lopes (1937, com 7 pavimentos), Edifício Carneiro (1938, com 5 pavimentos), Edifício Epitácio Oliveira (1938, com 6 pavimentos), Edifício do Cine São Luis (com 12 pavimentos; início em 1939 e, após longa interrupção, finalização em 1958), Loja A Cearense (1939, com 3 pavimentos), Edifício do Cine Diogo (1940, com 9 pavimentos), Clube Iracema (1940, com 3 pavimentos), Palácio do Comércio (1940, com 5 pavimentos) (ANDRADE, 1999; SAMPAIO NETO, 2005, BORGES, 2006).

6. Humberto Justa Menescal.

Cine São Luís. Construção: 1939-58. Fonte: Cals, 2002. 7. Emílio Hinko. Edifício J. Lopes, 1937. Foto do autor. 8. Sylvio Ekman. Edifício Parente, 1936. Fonte: Cals, 2002.

Diversos artigos, em variados periódicos, dão conta do clima de otimismo com relação à atividade edilícia vivenciado no período; alguns, dentro de um viés ufanista-anedótico, como o do Jornal Unitário, de 10/01/1938:

[...] Por onde a gente anda, só vê construção. Os andaimes já fazem parte da fisionomia habitual da cidade, nesses tempos em que, guardadas as devidas proporções, somos, no Nordeste, sem cabotinismo algum, a Chigago de 1929.

Outros, em tom mais contido, como o assinado por um de seus protagonistas, o engenheiro-arquiteto Sylvio Ekman, para a revista Acrópole, neste mesmo ano:

O norte do Brasil, e mais particularmente o nordeste, está atravessando um período de franco ressurgimento econômico e de progresso. [...] Fortaleza é, talvez, das cidades do norte, a que maior índice de crescimento e desenvolvimento urbano apresenta nestes últimos anos. Dotada, para felicidade sua, de um traçado regular de ruas em xadrez, com muitas praças e avenidas bem calçadas e arborizadas, o progresso veio encontrar um quadro favorável à sua expansão, sem a necessidade da intervenção cirúrgica da edilidade em benefício do tráfego. (EKMAN, 1938, p.43).

Com o início dos anos 1940 e o advento da Segunda Guerra, estas aspirações modernizadoras serão reforçadas pela crescente influência norte-americana na cultura local, tanto pela presença de grande contingente de militares americanos com a instalação de duas bases aéreas em Fortaleza (Pici e Cocorote), quanto pela maciça propaganda, veiculada pelo

DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), sob a coordenação do OCIAA (Office of the Coordinator of Inter- American Affairs); além, obviamente, pelo seu mais poderoso instrumento de comunicação: o cinema. Com extrema acuidade, Silva Filho (2002, p.9) observa, por esta ocasião, a

transposição – vital porém repleta de tensões e contramarchas – de um paradigma civilizatório inspirado na cultura francesa, mais ligado ao universo das belas letras e da erudição de círculos de elite, em direção a uma vertente calcada no progresso material e no poderio técnico, representado pela sociedade norte-americana.

Será, também, sob o patrocínio de uma empresa americana, que a cidade receberá, possivelmente, o seu primeiro exemplar da arquitetura moderna. O autor, ninguém menos do que Oscar Niemeyer, desenvolverá o projeto para uma residência à beira mar, no bairro do Meireles, destinada à moradia dos dirigentes da Companhia Johnson, empresa envolvida na exportação da cera de carnaúba13. O projeto

será documentado na famosa publicação Brazil Builds (p.168- 169), livro-catálogo da exposição homônima, realizada pelo Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, em 1943.

9. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942.

Vista das fachadas leste e norte.

Foto: Michael B. Williams (1976).

10. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942. Vista da piscina sob pilotis.

Foto: Michael B. Williams (1976).

13 Para Weintraub e Hess (2006, p.21), este fato é surpreendente na

medida em que Niemeyer ainda era pouco conhecido ao norte do equador. Ele havia se destacado, juntamente a Lúcio Costa, no projeto do pavilhão brasileiro para a feira de Nova York, em 1939, porém esta encomenda seria anterior à construção da Capela da Pampulha, o seu primeiro projeto de repercussão internacional.

Contemporânea às residências Hungria Machado e Barão de Saavedra (1942, ambas de Lúcio Costa), além dos seus projetos para a residência Cavalcante e sua própria residência, na Gávea, além de obras de maior vulto, como o Grande Hotel de Ouro Preto (1940), a Casa Herbert Johnson refletirá algumas preocupações deste período do modernismo arquitetônico brasileiro, sobretudo as relativas à procurada síntese entre sintaxe moderna e valores da tradição construtiva. Nela, podem-se observar as características apontadas por Wisnik (2001), em relação às obras de Lúcio Costa, que têm, como núcleo gerador, os elementos de articulação entre interior e exterior – no caso da de Niemeyer, amplos pilotis e varanda do primeiro pavimento –, configurando-se como locais de convívio e áreas de permeabilidade, além de certo léxico construtivo vernacular. O seu arranjo espacial, porém, difere do caráter clássico das realizações do seu mestre, as quais não apresentam interpenetrações verticais. Neste aspecto, a obra é tributária da rica espacialidade corbusiana, com pés-direitos duplos, ora no pilotis (integrando térreo e primeiro pavimento), ora na sala de estar (comunicando os pavimentos superiores da edificação), e teatralizados percursos. Quanto à configuração geométrica, manterá a “concepção purista” de residência, assinalada por Segre (2000, p.9) como hegemônica até início dos anos 1950.

A construção do edifício em análise será da responsabilidade do Escritório Técnico de Sylvio Jaguaribe Ekman, sendo, o cálculo estrutural, do engenheiro Aderson Moreira da Rocha. Após a construção da obra, Niemeyer não assumirá a autoria do projeto, segundo Castro (1998, p.51),

porque o considerava alterado pelo calculista Aderson Moreira da Rocha, particularmente quanto à escada helicoidal, redesenhada pela arquiteta Maria Adelaide Ribeiro Albano Pires [...]. Mais de uma vez, a arquiteta, tratada afetuosamente por Mara, iniciais do seu nome, esclareceu-nos que a alteração fora feita por pressão dos proprietários, pois a escada original apresentava problemas para ser calculada tal como fora desenhada.

11. Lucio Costa.

Residência Hungria Machado, 1942.

Fonte: Wisnik, 2001. 12. Lucio Costa. Residência Saavedra, 1942. Fonte: Wisnik, 2001. 13. Oscar Niemeyer. Residência do Arquiteto, 1942. Fonte: Papadaki, 1950.

14. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942. Vista das fachadas norte.

Foto: Michael B. Williams (1976).

15. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942. Desenho da fachada norte.

Fonte: Weintraub; Hess, 2006.

16. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942.

Vista interna da sala de estar/jantar.

Foto: Michael B. Williams (1976).

17. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942. Planta do primeiro pavimento.

Fonte: Weintraub; Hess, 2006.

Procedendo-se à análise dos desenhos apresentados pelo arquiteto e confrontando-os às imagens disponíveis, podem- se constatar duas significativas alterações: a primeira, diz respeito à fachada norte, pela inclusão da viga que arremata as janelas dos dormitórios, situados no segundo pavimento da edificação (comparar figuras 14 e 15). Segundo o desenho do arquiteto, a rigor, existiria uma esquadria contínua, do peitoril à laje inclinada da coberta, não sendo, esta, sequer, interrompida pelas paredes divisórias dos ambientes. A segunda alteração diz respeito à escada interna da edificação, que deveria estar implantada na face oposta à circulação dos quartos (porção sul do edifício), formando, junto ao passadiço que interligaria estes dois elementos, um rico “passeio arquitetônico”. Note-se que escada e passadiço não possuem apoios, devendo ancorar-se apenas no arranque da primeira (escada) e nos pilares juntos aos dormitórios. A escada

executada desmancha toda a organização espacial pretendida, além de colocar-se como obstáculo à desejada fluidez entre sala de jantar e varanda e impedir as visuais do mar (ver figuras 16 e 17). Infelizmente, os desenhos disponíveis não nos possibilitaram verificar o aspecto aludido por Castro, quanto à escada helicoidal.

Em recente publicação, da editora Rizzoli, de Nova York (Weintraub; Hess, 2006), a obra voltou a constar no currículo do arquiteto, sendo apresentados vários desenhos e uma fotografia da obra em fase de acabamento. Quanto ao estado de conservação da casa, ela manteve-se íntegra por longo período, cedida a um grupo religioso americano, tendo, posteriormente, sido vendida a uma rede de hotéis, que promoveu a sua descaracterização e subsequente demolição.

18. Oscar Niemeyer.

Casa Johnson, 1942. Perspectiva varanda do 1º pavimento.

Fonte: Weintraub; Hess, 2006.

Nas décadas seguintes, sob o ponto de vista do crescimento populacional, Fortaleza passará a exibir superlativas taxas, superando as verificadas nas outras capitais nordestinas, como Recife e Salvador. O censo federal de 1940 registrará os 180.185 habitantes; em 1950, 270.169; e em 1960, alcançará a ordem dos 507.108 habitantes, com taxa de crescimento de 87,7% neste último período. A cartografia urbana de 1945, levantamento aerofotogramétrico realizado pelo Serviço Geográfico do Exército, evidenciará um crescimento urbano no eixo sudoeste, tendo por principal vetor o ramal ferroviário e a localização da área industrial, fator de atração de grande contingente de migrantes do interior do estado (em que pese o ainda incipiente processo de industrialização da cidade), acentuado pelos fenômenos das secas, resultando no

aparecimento de favelas, bem como no crescimento dos núcleos já existentes, como a favela do Pirambu (ANDRADE, 1999). Em contrapartida, a zona leste (notadamente, a Aldeota), embora com ocupação ainda dispersa, já se apresenta profusamente loteada, passando a ser a área escolhida pelos grupos mais abastados, instaurando-se, desde já, uma marcante segregação espacial.

Por esta época, mais precisamente em 1947, uma nova tentativa de ordenamento da cidade será requerida pelo prefeito Clóvis de Alencar Matos ao engenheiro cearense, radicado no Rio de Janeiro, José Otacílio Saboya Ribeiro. O “Plano Diretor para Remodelação e Extensão da Cidade de Fortaleza” dará ênfase ao aspecto físico-territorial, com destaque para o sistema viário. Este deveria ser redimensionado, com o alargamento de vias, e reformulado, visando a articulação do plano xadrez com as radiais, eixos de penetração que demandavam ao interior do estado e pelos quais se vinha processando a expansão da área urbanizada da capital (recomendação, aliás, já presente no plano de Nestor de Figueiredo). Segundo Cortez (2000), a área de ocupação urbana efetiva, por este período, era da ordem de 3.000 hectares, inscritos num semicírculo de aproximadamente cinco quilômetros de raio.

19. Saboya Ribeiro.

Plano Diretor para Remodelação e Extensão da Cidade de Fortaleza, 1947. Planta do sistema viário.

Embora aprovado, o plano jamais será aplicado, sobretudo pela forte oposição dos proprietários de imóveis do centro da cidade, dadas as desapropriações necessárias a tal implementação.

O Plano Saboya Ribeiro, tecnicamente, era digno de todos os elogios, mas não fora a resultante de estudos mais aprofundados, mais realistas, das possibilidades econômicas da cidade, além de ter surgido, no tocante à sua adoção oficial, com um grave erro de origem. Foi tornado obrigatório ex-abrupto, mediante um apressado Decreto-lei, sem transitar pelos crivos purificantes da Comissão do Plano da cidade. Forçava-se, aprioristicamente, a obrigatoriedade de muitas soluções impossíveis, por sobre-modo avançadas ou atrevidas, como se um trabalho dessa espécie dependesse tão somente dos devaneios do arquiteto ou da vaidade do governador do município, ansioso por ligar seu nome a obra de tanto mérito e importância. Morreu por ter nascido inviável, esta segunda tentativa de urbanização de Fortaleza. Morreu pela carência de ponderação no seu ajustamento à realidade e, principalmente, porque lhe faltou o indispensável, lento e seguro preparo de uma consciência ou mentalidade geral, que o garantisse contra as insólitas reações que os planos de cidade necessariamente provocam. (GIRÃO, 1979, p.47).

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