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A cidade como campo de estudo: vivendo e aprendendo com Santa Maria

Até aqui tratei da constituição da cidade de Santa Maria e, em específico, do contexto da área do Sítio Ferroviário. Agora, passo a relatar como a minha história se entrelaçou com a da cidade e quais caminhos me levaram a fazer dela o objeto deste estudo.

Mesmo não sendo natural de Santa Maria, a minha relação afetiva com a cidade começa antes mesmo que “eu me entenda por gente”. É da região de Santa Maria que provém a minha família, descendentes de imigrantes italianos que colonizaram essa área desde o final do século XIX. Por volta de 1950, com as terras da Quarta Colônia já saturadas de gente, muitos sucessores de colonos partiram para o norte do Estado do Rio Grande do Sul buscando mais espaço e oportunidades para construir uma nova vida. O mesmo ocorreu com meus avós, tanto por lado de pai quanto por lado de mãe. De Santa Maria, então, ouvi inúmeras histórias desde criança. Contudo, meu contato real com a cidade “coração do Rio Grande” foi muito pequeno, resumindo-se a algumas passagens e visitas a parentes, até que, aos dezessete anos de idade, eu nela fosse morar. Em Santa Maria comecei a cursar Arquitetura e Urbanismo na UFSM, em 2003. Ali, uma série de modos e maneiras de viver e fazer a cidade se descortinaram diante de meus olhos de menina provinda de uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. E, é a partir deste ponto que muitas das indagações que norteiam esse trabalho começaram a nascer.

Minha escolha pelo curso de Arquitetura e Urbanismo foi guiada pela vontade inicial de projetar e construir prédios e casas. A noção e a responsabilidade de trabalhar a cidade ainda não estavam presentes em mim quando ingressei na faculdade. Entretanto, o interesse pelas questões urbanas foi crescendo à medida que eu me descobria em Santa Maria. Ela era minha primeira experiência de cidade grande, de acordo com meus parâmetros da época. A visão inicial que eu tinha da cidade, a de uma grande mancha de prédios e ruas espalhadas sobre uma planície que avistava lá de cima da serra toda vez que eu estava chegando a Santa Maria, foi se modificando quando adentrei suas ruas, descobrindo suas praças, frequentando seus espaços, usufruindo de seus equipamentos.

Lembro-me saudosa das primeiras caminhadas que empreendi pelo centro da cidade. Como eu morava longe dali, nas proximidades do campus da UFSM49, ir ao centro era um evento extraordinário. Fazer esse percurso, às vezes por necessidade, outras por simples curiosidade de conhecer mais Santa Maria, implicava em pegar ônibus, descer em alguma

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O campus da Universidade Federal de Santa Maria é situado no bairro Camobi, na zona leste da cidade, distando aproximadamente dez quilômetros do centro urbano.

parada estratégica na região central da cidade e me lançar em alguma direção, prestando atenção em todos os detalhes que se apresentavam no caminho, como fachadas, lojas, placas, nomes dos logradouros, jardins, alargamentos e estreitamentos de ruas ou relevo, a fim de guardar na memória o mapa daquele trajeto.

O curioso é que demorei muitos anos até desbravar o Sítio Ferroviário, objeto de estudo deste trabalho. Embora tal área fosse muito próxima ao centro e tivesse uma significação especial para a história da cidade, sempre ouvia falar que a região poderia ser perigosa, que os prédios da ferrovia estavam abandonados, que não tinha nada interessante para ver ou fazer por lá. Nem mesmo nas aulas da faculdade se tocava muito no assunto. Então eu criei, por segurança, uma zona limite para o afastamento do núcleo central da cidade em minhas caminhadas. Chegando a determinado ponto, eu dava meia volta e retornava. Hoje, com a análise empreendida nesta pesquisa, pude perceber que essa barreira simbólica existia não somente para mim, mas se faz presente até hoje para muitas pessoas na cidade, conforme veremos adiante, no decorrer da dissertação.

Vencidos os primeiros semestres da faculdade e refletindo acerca da minha vivência de cidade e da prática profissional que estava sendo passada, eu percebia que, embora estivesse adquirindo muitos conhecimentos técnicos e tendo a criatividade estimulada nos bancos do curso de Arquitetura e Urbanismo, ainda sentia falta de instrumentos que me possibilitassem apreender os usos e os significados construídos sobre a materialidade dos espaços da cidade – elementos estes que erguem fronteiras simbólicas, possibilitam diversos fluxos entre locais distintos e aproximam ou distanciam grupos de pessoas. Assim, nos exercícios das disciplinas de projeto, em que nós éramos constantemente incentivados a intervir sobre variados espaços da urbe, certos questionamentos circundavam minha mente: quem éramos nós para escolher e determinar, por meio de nossos planos e projetos, qual era a “melhor” maneira de ser e viver a/na cidade? Somos capazes de compreender, apenas por nosso conhecimento técnico de arquitetura e urbanismo, os códigos, os ritmos e as lógicas da vida urbana? Com base em “quê” efetuamos nossas proposições projetuais? Comecei a perceber, então, que seria imprescindível buscar o aprimoramento do olhar sobre o “conteúdo humano” dos espaços urbanos, para assim poder intervir com mais responsabilidade sobre a cidade.

Destaco alguns pontos de minha trajetória acadêmica na Arquitetura e Urbanismo, onde pude caminhar ao encontro desse objetivo. Primeiro, saliento a participação como colabora e depois bolsista, do projeto de extensão Plano Diretor de Desenvolvimento

Municipal de Itaara/RS50. Esta atividade foi realizada entre os anos de 2005 e 2006, quando trabalhei em conjunto com uma equipe multidisciplinar de professores e acadêmicos de várias áreas do conhecimento, inclusive do curso de Ciências Sociais da UFSM. Foi meu primeiro contato com as Ciências Sociais, assim como, foi a primeira experiência prática que tive de convívio com a comunidade na qual o trabalho que eu estava desenvolvendo visava intervir. Conversas, reuniões e audiências me deram um panorama mais aproximado de como se construía diariamente o viver naquela pequena cidade para a qual estávamos elaborando o processo de planejamento urbano. Ouvir as pessoas, escutar suas histórias, seus anseios e suas insatisfações em relação à cidade em que viviam fez toda a diferença na análise e na proposição feitas naquele momento.

Mais tarde, ao escolher a temática projetual de meu trabalho final de graduação, acabei optando por um objeto que me oportunizasse estabelecer um diálogo com a comunidade e o espaço no qual minha proposta de intervenção arquitetônica se desenvolveria. Sabia que queria trabalhar com patrimônio histórico, uma das grandes paixões que adquiri no curso, mas não sabia exatamente com qual e, por fim, acabei decidindo me “debruçar” sobre o Sítio Ferroviário de Santa Maria. Entre tantos exemplares remanescentes dos tempos áureos da ferrovia na cidade, deparei-me com a condição precária em que se encontravam as antigas “Oficinas do Km 3”, conjunto de oficinas que desempenharam importante papel no sistema ferroviário gaúcho. Se não bastasse o seu abandono, tais oficinas estavam inseridas em um contexto bastante peculiar, fazendo parte de uma realidade que compreendia ocupações residenciais irregulares, problemas ambientais, pobreza, carência de infraestrutura urbana e o descaso com a história ferroviária ali presente. Definido o objeto, fui para as comunidades adjacentes conversar com as pessoas que conheciam aquela situação melhor que eu. Apliquei questionários e entrevistei alguns ex-funcionários das oficinas e moradores locais para tentar compreender melhor que porção da cidade era aquela. Nessa breve incursão em campo, mais uma vez me certifiquei da importância de tentar apreender o contexto mais amplo sobre o qual se quer intervir em um projeto de arquitetura e/ou urbanismo. Deparei-me com narrativas interessantíssimas e com experiências de vida que construíam dia após dia o significado de ser santa-mariense e de viver nessa cidade. Percebi, assim, a riqueza das diversas vozes do urbano, muitas vezes pouco conhecidas e ouvidas.

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Itaara é um pequeno município localizado na Serra que emoldura a paisagem santa-mariense e se destaca pelos atrativos turísticos, em especial, os balneários. Emancipado de Santa Maria no ano de 1997, sua população é de aproximadamente cinco mil habitantes. Dados do IBGE disponíveis em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=431053&search=rio-grande-do-

Procurando compreender melhor a complexa realidade social que se descortinava a minha volta durante a execução do trabalho final de graduação, passei a buscar leituras além das usuais da área de arquitetura e urbanismo. Em uma das incursões pelas bibliotecas da universidade me deparei com um livro novo na prateleira, cujo nome prontamente chamou a atenção: Contra-usos da cidade, escrito por Rogerio Proença Leite (2007). Foi partindo da leitura desse livro, já nas vésperas de minha formatura, que tomei a decisão de prestar vestibular para o curso de Ciências Sociais na UFSM.

Assim, no ano de 2010 ingressei no curso de Ciências Sociais Bacharelado. A intenção inicial ao iniciar a nova graduação era apenas angariar maior conhecimento teórico para em um futuro próximo utilizá-lo em uma pós-graduação na área de Planejamento Urbano. Mas isso foi só a intenção inicial de fato. A cada aula e a cada texto lido e discutido eu tomava mais gosto pelas Ciências Sociais. Começava aí a “metamorfose” da arquiteta em antropóloga, agora não apenas contagiada pela vontade de compreender o objeto cidade em suas inter-relações sociais e redes de significados, mas também tomando conhecimento de instrumentos teóricos e metodológicos para tal.

Entretanto, passado um ano do ingresso no curso de Ciências Sociais, fui convocada para assumir uma vaga de arquiteta urbanista em concurso público na prefeitura de minha cidade natal, Frederico Westphalen/RS. Acabei trancando a matrícula na faculdade, acreditando ser esta uma boa oportunidade para começar a aplicar uma maneira de fazer arquitetura e urbanismo mais compromissada com um entendimento amplo de cidade. Contudo, enquanto arquiteta e urbanista da prefeitura segui me deparando com a dificuldade de não poder ouvir as vozes do urbano no desenvolvimento dos trabalhos executados na minha repartição. Os prazos apertados, os riscos de perda de verbas, os interesses de terceiros, entre outros fatores, acabam afastando as possibilidades de captar sensivelmente as demandas urbanas, que exigem tempo e dedicação, e fazem com que o trabalho ligado ao planejamento urbano se torne exaustivo e, muitas vezes, apoiado em diretrizes vazias de sentido. Eu sentia falta de conhecimento e de aplicação da teoria social nas intervenções sobre a cidade. Eu sabia que precisava fazer alguma coisa para mudar, mas ali me sentia atada, sem aliados e sem ninguém disposto a, pelo menos, me ouvir.

Em meio à frustração com a minha profissão e meu grupo profissional tomei a decisão de voltar às Ciências Sociais. Agora, não mais como uma alternativa de complementação teórica, mas como a profissão que resolvi escolher para seguir adiante. Não se tratava de deixar para trás toda a carga que a formação em Arquitetura e Urbanismo havia me dado, mas sim desconstruir pré-noções, pré-conceitos, aprofundar conhecimentos,

aprender um novo olhar e um novo “saber fazer”. Assim, levando em consideração minhas aptidões e paixões, delimitei tema, objeto e objetivos na confecção de um projeto de pesquisa e me candidatei ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM ainda em 2011, escolhendo o enfoque antropológico para enfrentar a problemática de interesse. Voltei a Santa Maria para viver e aprender, mais uma vez, com essa cidade.

A temática escolhida para a pesquisa, que gerou esta dissertação, não se distancia daquilo que eu já vinha tangenciando ao longo de minha experiência acadêmica. O Sítio Ferroviário de Santa Maria estava na pauta de minhas preocupações outra vez, agora instigada pelo recente movimento de promoção de um “centro histórico” para a cidade por meio das políticas de planejamento urbano, da revitalização da Vila Belga e a da Avenida Rio Branco, do anúncio de “resgate” de velhos cartões postais da cidade, da condição cada vez mais divulgada de Santa Maria como cidade turística, na qual o viés do patrimônio ferroviário se mostrava uma atração estratégica para o poder público. Mas, afinal, o que os moradores da área pensam sobre isso? Essas intervenções e propostas sobre o espaço urbano estão influenciando as maneiras de ser e viver na cidade? Como os moradores estão assimilando esse processo? Em algum momento, eles foram ouvidos, consultados, participaram de alguma foram na implementação dessas ações? Como esses moradores se relacionam com a condição patrimonial do local onde vivem? São inúmeras perguntas precisando de respostas.

O fato é que a cidade planejada e concebida nunca se equivale à cidade vivida, como bem destaca o antropólogo Manuel Delgado (1999, 2007). O autor expõe que a cidade comporta a dimensão da polis e da urbs, sendo que a primeira trata da ordem política encarregada da administração centralizada da cidade, enquanto a segunda é o urbano propriamente dito, com sua heterogeneidade de atores e práticas, um campo de forças, tensões e distorções. Assim, a polis visa à ordenação da cidade, sua regulação, controle e codificação, exprimindo-se em um território politicamente determinado. Já a urbs é o que há de instável, irregular, cambiante, ou seja, traduz-se em espaços socialmente indeterminados. Arquitetos, urbanistas e demais interventores e planejadores da cidade trabalham a favor da polis, uma vez que os projetos e planos para a cidade geralmente visam espaços públicos em boas condições para encontros e deslocamentos ordenados e previsíveis, a superação do conflito, o controle das formas e dos usos, a legibilidade da cidade, ou seja, em última instância se almeja domar o urbano, inclusive igualando a todos em um “saber comportar-se” nos espaços dessa cidade concebida e idealizada (DELGADO, 2007). Entretanto, a cidade real, a que se reinventa a todo instante na urbs, não pode ser preestabelecida em um plano, não responde

mecanicamente a funções e usos predeterminados, mas se desentende das diretrizes pensadas (e impostas) pela ordem política da cidade51.

O desafio: ir além da leitura de cidade que um arquiteto urbanista geralmente faz (até porque assim é treinado a fazer) e ver a cidade não somente pela faceta da polis. Aquela cidade vista do alto como um mapa ou uma maquete, como um conjunto que se pode definir o início e o fim, uma totalidade palpável, quero ter só como base, como ponto de partida. Certeau (1998) nos lembra que é mais embaixo, ao nível do chão, onde vivem os praticantes da cidade. É ali que a urbs acontece na inconstância dos movimentos, das relações, dos pensamentos que vão delineando a cidade na medida em que os praticantes usam ou deixam de usar certos espaços. Portanto, foi preciso mais. Se fez necessário converter o meu olhar para um novo saber fazer, o da antropologia urbana, cujas interpretações são construídas por intermédio da convivência com o outro. Afinal, é a cidade praticada que me interessa e é nesta cidade que eu poderia encontrar as respostas que estava procurando. Vivenciemos, então, uma excursão antropológica pelos espaços urbanos do Sítio Ferroviário de Santa Maria.

1.3 Compondo percursos, tecendo contatos: considerações gerais sobre o trabalho de