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A CIDADE DE DEUS: O COMENTÁRIO DOS LIVROS XI-XIV

3 A EXEGESE AO GÊNESIS DAS CONFISSÕES E A ABORDAGEM

3.3 A CIDADE DE DEUS: O COMENTÁRIO DOS LIVROS XI-XIV

Costuma-se ver o Comentário Literal ao Gênesis como a última abordagem exegética de Agostinho ao texto do Gênesis. De fato, nesta obra se encerra o ciclo começado anos antes com a intenção de fazer frente aos obstáculos impostos pelas concepções maniqueístas. Não obstante, uma última incursão ao Gênesis pode ser vista em uma de suas derradeiras obras, e uma das mais importantes intitulada A Cidade de Deus.

Esta é uma obra que, a rigor, não deveria possuir relação alguma com os comentários exegéticos relacionados ao primeiro livro da Bíblia. Esta obra possui um pano de fundo histórico bem específico, distante das disputas de Agostinho contra os maniqueus. O próprio autor descreve o contexto histórico em que tal obra foi escrita.

Sur les entrefaites, Rὁme fut détruite sὁus les cὁuὂs de l’invasiὁn des ύὁths que cὁnduisait le rὁi χlaricμ ce fut un grand désastreέ δes adὁrateurs d’une multitude de faux dieux, que nous appelons ordinairement les païens, s’effὁrcèrent de faire retὁmber ce désastre sur la religion chrétienne et se mirent à blasὂhémer le vrai Dieu avec ὂlus d’âὂreté et d’amertume que d’habitudeέ ἑ’est ὂὁurquὁi, brûlé du “zèle de la maisὁn de Dieu”, je décidai d’écrire cὁntre leurs blasὂhèmes ὁu leurs erreurs les livres de La Cité de

Dieuέ ἑet ὁuvrage m’ὁccuὂa ὂendant ὂlusiers annés, ὂarce que beaucὁuὂ d’autres besὁgnes se ὂrésentaient qu’il ne fallait ὂas différer, et leur sὁlutiὁn réclamait d’abὁrd tὁus mes sὁinsέ Quant à ce grand ὁuvrage De la cité de

Dieu, il fut enfin achevé em vingt-deux livres. (SAINT AUGUSTIN, 1950,

A invasão dos Godos a Roma chefiados por Alarico se constitui o pano de fundo histórico para a composição desta obra. Deste desastre político e militar impensável para muitos, recai sobre os cristãos a acusação de serem os mesmos responsáveis, ao menos indiretamente, pelo fato. Esta acusação foi, na ótica do autor, mais forte do que as críticas habituais, revelando uma tensão entre a religião cristã e a cultura romana clássica nunca resolvida em sua plenitude. A Cidade de Deus foi escrita em vinte e dois livros com a intenção explícita de responder a estas acusações, embora, entremeado por muitas tarefas, o autor reconheça a sua demora em concluir tal empreitada.82 Dividida em vinte e dois livros, apenas os Livros XI a XIV possuem alguma relação com a temática abordada neste trabalho, isto é, com a exegese do primeiro livro da Bíblia. Tendo como pano de fundo não apenas a invasão dos godos, mas também a contestação do papel exercido pela igreja cristã neste processo, desaparece neste momento qualquer importância do movimento maniqueísta como impulsionador da abordagem feita. A divisão do texto, como salientado pelo próprio autor, é nitidamente uma indicação disto.

De ces livres, les cinq premiers réfutent ceux qui voient dans le culte de la multitude des faux dieux, qu’hὁnὁrent habituellement les ὂaïens, la cὁnditiὁn nécessaire à la prospérité des affaires humaines et qui prétendent trouver dans l’interdictiὁn de ce culte, l’exὂlicatiὁn de la naissance et de l’accrὁissement des maux actuelsέ δes cinq suivants sὁnt dirigés cὁntre ceux qui, tout en avὁuant que de tels maux n’ὁnt jamais manqué et ne manquerὁnt jamais aux mortels et que, tantôt grands tantôt petis, ils varient selon les lieux, les temps et les personnes, déclarent pourtant utile le culte des faux dieux, avec les sacrifices qu’ὁn leur ὁffre, à cause de la vie qui dὁit suivre la mort. Dans ces dix livres, ce sont donc ces deux opinions vaines et contraires à la religiὁn chrétienne qui se trὁuvent réfutéesέ εais ὂὁur qu’ὁn ne nὁus accuse ὂas d’avὁir seulement cὁmbattu les dὁctrines des autres sans avὁir exposé les nôtres, c’est cet exὂὁsé que cὁntient la secὁnde ὂartie de cet ouvrage, qui est renfermée em douze livres. ἑeὂendant, lὁrsqu’il em est besoin, nous affirmons les opinions qui sont nôtres, même dans les dix premiers livres et nous réfutons celles des autres dans les douze derniers. Des dὁuze derniers livres dὁnc, les quatre ὂremiers traitent de l’ὁrigine des deux cités, dὁnt l’une est la cité de Dieu, l’autre la cité de ce mὁndeέ δes quatre suivants décrivent leurs progrès et leurs développements. Les autres, qui sont aussi les derniers, montrent les fins qui leur sont dues. Ainsi tous ces vingt-deux livres ont ὂὁur théme l’une et l’autre citésν mais ils ὁnt

82 E à ,à ágosti hoà o eça iaà aà es e e à A Cidade de Deus, onde daria continuidade a seu trabalho de

efutaç oà sà a usaç esà dosà pag osà aoà C istia is o,à i i iadasà asà o espo d iasà o à oà C uloà deà Volusia o .àáà edaç oàdaà efe idaào aàseàeste de iaàat à ,àe ua toàpa alela e te,àes e iaà uitasàout as,à dentre as quais A Trindade à CO“Tá,à ,àp.à .à

emprunté leur titre à la meilleure et ils sont appelés de préférence De la cité

de Dieu. (SAINT AUGUSTIN, 1950, 525-527)

Os cinco primeiros livros (I ao V) se constituem numa refutação à crença existente entre não cristãos acerca da necessidade de seus deuses para a prosperidade dos afazeres humanos. Por esta linha de raciocínio os males que caíam sobre o império romano eram causados diretamente pela proibição, por parte dos cristãos, da adoração aos deuses tradicionais do império. Os cinco livros seguintes (VI-X) expõem outra crença que o autor intenciona questionar. Esta outra crença afirma que embora os males possam atingir as pessoas, grandes ou pequenas, variando somente de lugar e ocasião, os deuses tradicionais devem ser adorados ou venerados em virtude da vida vindoura, isto é, da vida que existe além da morte. Estas duas posturas são nos primeiros dez livros. Resta expor o pensamento cristão acerca destas ideias (ou doutrinas), além de refutá-las, e isto é realizado nos doze livros posteriores (XI- XXII).

A divisão posta por Agostinho reflete bem que a temática acerca da exegese do Gênesis já não lhe é problema e isto pode ser percebido pela maneira como o autor descreve o conteúdo dos últimos doze livros de A Cidade de Deus. Os quatro primeiros livros (da segunda parte da obra, do XI ao XIV) tratam da origem das duas cidades e são justamente nestes livros que são feitas as últimas abordagens do autor ao Gênesis, e como já foi dito, não existe mais o interesse, ao menos explícito, de encontrar a forma mais correta de interpretar tais textos. O foco em questão é justamente encontrar na narrativa do livro primeiro da Bíblia a origem das duas cidades, objetivo principal da obra. Os quatro livros seguintes (XV-XVIII) descrevem o desenvolvimento destas duas cidades que Agostinho cuida tê-las encontrado na narrativa dos primeiros livros da Escritura Sagrada. Os últimos livros (XIX-XXII) narram o fim das duas cidades que tiveram origem no Gênesis.

Ao observar tal divisão de conteúdos salta aos olhos a importância dos quatro primeiros livros da segunda parte da obra, isto é, dos livros XI ao XIV. Nestes textos se encontram o embrião espiritual das duas cidades, a dos homens e a de Deus. Estes livros são fundamentados em comentários exegéticos anteriormente feitos por Agostinho ao livro do Gênesis, e tal empreendimento já havia sido previsto no último (e talvez definitivo, guardadas

as devidas proporções) comentário ao Gênesis, o Comentário Literal ao Gênesis.83 Tais promessas também podem ser encontradas em outras obras anteriores do autor e isto configura a obra A Cidade de Deus como um trabalho concebido há muito tempo, o que não significa necessariamente que a noção das duas cidades provenientes de uma extração do texto do Gênesis seja algo obrigatória.84

Visto serem os dez primeiros livros de cunho nitidamente apologético, cabe examinar para efeito desta pesquisa a relação que existe entre os doze livros restantes e a temática aqui desenvolvida. Agostinho realiza nesta obra uma grande filosofia da história, tendo como pano de fundo uma visão escatológica predominantemente bíblica. A narrativa de duas cidades coexistindo historicamente, porém distintas quanto ao objetivo final de seus membros, bem como pelo tipo de postura moral dos mesmos, delineia para o autor o significado da história do ponto de vista linear, ou seja, com começo, meio e fim. Mas em que ponto da história se pode demarcar a origem das duas cidades?

Se o pano de fundo desta meta-narrativa são as Escrituras Sagradas, Agostinho procura buscar nas mesmas a origem das duas cidades. Se a narrativa bíblica fornece ao autor

83 Estesàdoisàa o es,àdosà uaisàu à àsa to,àoàout oài pu o,àu àso ial,àoàout oàp i ado,àu à ueàolhaàpa aàoà

bem da utilidade comum em ordem à companhia celestial, o outro, que submete o comum a seu poder por causa da dominação arrogante, um, sujeito a Deus, o outro, rival de Deus, um, tranquilo, o outro, turbulento, um, pacífico, o outro, rebelde, um que prefere a verdade às louvaminhas dos que erram, o outro, ávido de louvor de qualquer maneira, um amigável, o outro, invejoso, um que quer submeter o próximo a si, um que governa o próximo para a utilidade do próximo, o outro, para a sua utilidade; estes amores existiram antes entre os anjos: um nos bons, o outro nos maus; e separam as duas cidades fundadas no gênero humano sob a admirável e inefável Providência de Deus que administra e ordena todas as coisas criadas, uma dos justos, a outra dos pecadores. Com a mescla das duas o mundo caminha até serem separadas no último juízo, uma, unida aos anjos bons, até conseguir a vida eterna com o seu Rei; a outra, unida aos anjos maus, até ser mandada para o fogo eterno com o seu rei. Se o Senhor quiser, dissertaremos, talvez, mais longamente em out aào asi oàso eàestasàduasà idades à “áNTOàáGO“TINHO,à ,àp.à .à

84 Além da alusão existente acerca deste projeto no Comentário Literal ao Gênesis (conforme nota anterior), é

possível também ver tal projeto, de forma indireta, sendo citado em outro comentário ao Gênesis na obra

Confissões:à Congregastes numa só aspiração a sociedade dos infiéis, para que aparecessem os bons

se ti e tosàdosàfi isàeàp oduzisse àe à ossaàho aào asàdeà ise i diaà[...] à “áNTOàáGO“TINHO,à ,àp.à 286-287) (itálico nosso). Em uma obra de cunho catequista, redigida no ano 400, Agostinho já apontava a temática a ser desenvolvida em A Cidade de Deus, de forma independente de qualquer relação com o livro do G esis:à Ilàe isteàdeu à it s,à ta liesà àl o igi eàdu i o deàetà uiàdu e o tàjus u àlaàfi àdesàsi les,à elleàdesà ha tsàetà elleàdesàjustesà:àellesà eàseàdisti gue tàaujou d huià ueàpa àl esp ità uiàlesàa i e;à ais,àauàjou àduà juge e t,à ellesà se o tà s pa esà deà o psà o eà d esp it.à Lesà ho esà e i sà d orgueil, que travaille l a itio àdeà g e à su à leà o deà a e à toutà leà fasteà età touteà laà po peà desà a it sàhu ai es,à fo e tà u eà société étroite avec les démons qui sont animés des mêmes passions et mettent également leur gloire à soumettre les hommes à leur empire; quoique les biens du monde excitent souvent des luttes entre eux, ils e à p ou e tàpasà oi sàu eà galeàa itio àdo tàleàpoidsàlesàe t a eàtousàda sàleà eàa e,ào àilsàseà trouvent associés par la ressemblance des caractères et des crimes. Au contraire, les hommes et les purs esp itsà uiàou lie tàleu àgloi eàpou à eà he he à ueà elleàdeàDieuàetà uiàs atta he tàhu le e tà àlui,à eàso tà tousà o àplusà u u eàseuleàso i t .àEtà epe da t,àDieuàestàplei àdeà is i o deàetàdeàpatie eàpou àlesài pies : ilàleu à ageàl o asio àdeàseà epe ti àetàdeàseà o ige à “áINTàáUGU“TIN,àT ait àduàCat his e,às.d. .

o suporte para que esta interpretação histórica siga seu rumo, nada mais natural do que ver a origem das duas cidades, cidades logicamente compostas por homens de carne e osso, na origem destes mesmos homens. A narrativa do Gênesis permite a Agostinho trabalhar com estes textos visando um objetivo completamente distinto daquele que o animou nos trabalhos anteriores. Se nestes trabalhos a sombra do maniqueísmo sempre se fez presente, nesta última abordagem, como já foi comentado, predomina um interesse distinto da exegese apologética. O que interessa em última instância ao autor é reconhecer na narrativa da criação e queda do homem, especialmente nesta última, os traços antropológicos que o permitiriam explicar o devir histórico do mundo a partir de fundamentações teológicas e filosóficas. E estes são os fundamentos que guiam a sua exegese.

Se o interesse do autor é descrever a história em termos teológico-filosóficos, o ponto de partida é dado pela autoridade ontológica assumida pelas Sagradas Escrituras. Qual o início da narrativa bíblica? O livro do Gênesis. É neste livro, portanto, que a reflexão agostiniana inicia sua leitura da história. Esta leitura da humanidade deve ser vista a partir de um prisma teleológico divino e tal fato se manifesta na vivência de dois tipos de atitudes caracterizadas pela descrição dos habitantes das duas distintas cidades. Os Livros XI a XIV da obra A Cidade de Deus descrevem em momentos diversos estas características.

Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si mesmo até o desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si – a celeste. Aquela glorifica-se em si própria – esta no Senhor; aquela solicita dos homens a glória – a maior glória desta consiste em ter Deus como testemunha da sua consciência. (SANTO AGOSTINHO, 1993, p. 1319)

A História da humanidade é o desenvolvimento através dos tempos destas duas cidades. O aspecto moral de seus membros as torna diferentes entre si. O orgulho de si próprio que coincide com o desprezo ao divino dos habitantes da cidade terrestre contrasta com o desprezo de si e o amor a Deus dos habitantes da cidade celeste. Uma, a terrestre, almeja ser glorificada pelos homens; outra, a celeste ou divina, requer o testemunho de aprovação por parte de Deus no que concerne às suas ações.

Qual a relação entre estas duas cidades que coabitam durante o devir histórico e somente são separadas no fim dos tempos com o relato do Gênesis? A origem das duas

cidades, que na verdade são personificações éticas e sociais da humanidade, é dada no relato da criação do homem. Embora existam nestes livros ligeiras discussões do autor acerca do significado de certas expressões obscuras no texto bíblico,85 sua intenção principal é localizar nas Escrituras Sagradas a origem dos sentimentos morais que caracterizarão de forma indiscutível o perfil ético dos habitantes das duas cidades.

Mais importante para o autor nesta última investigação ao relato da criação é a abordagem ao aspecto moral da narrativa que se encontra no segundo e terceiro capítulo do Gênesis, onde são tratados os temas da criação do homem e a queda do mesmo, respectivamente. Na verdade a discussão é muito mais abrangente. É necessário abordar a questão da queda em toda a sua amplitude, e desta forma, a queda dos anjos e o surgimento do próprio diabo é também analisadaέ Em suma, a abὁrdagem agὁstiniana “esquece” a problemática maniqueia ao priorizar o estabelecimento de uma fundamentação moral de fundo bíblico para a história da humanidade.86

Neste caso as interpretações dadas pelo autor no intuito de descrever moralmente o perfil dos dois tipos de cidadãos envolvidos nesta meta-narrativa, celeste e terrestre, constituem-se em aplicações do texto bíblico a comportamentos condenáveis ou elogiáveis por parte de Agostinho, e não em exegeses que elucidassem as dificuldades surgidas no processo de leitura do mesmo. Agostinho não cria ou inova nas interpretações dadas,87 mas apenas aplica noções já estabelecidas extraídas da narrativa do Gênesis, especialmente a

85 Exemplos de breves discussões neste sentido podem ser citadas, tais como: se a criação foi algo temporal ou

um novo plano divino, extensão infinita de tempo, extensão infinita de lugares fora deste mundo, natureza dos primeiros dias etc.(conferir livro XI da obra). Todas estas discussões, de cunho exegético, são extremamente resumidas, dando a entender que uma abordagem hermenêutica a estas passagens, especialmente ao primeiro capítulo do Gênesis não seria mais necessária.

86 Oà es ue i e to à agosti ia oà oà sig ifi aà aus iaà deà e ç o.à ágosti hoà ja aisà es ue e à oà

movimento maniqueu literalmente falando. Exemplos deste tipo de não esquecimento em A Cidade de Deus pode àse à istasà edia teàe p ess esàtipoà a i ueusàeàout asàpestesàdaà es aàopi i o ,à ua doàoàauto à discutia acerca da possibilidade de o Diabo ter recebido a natureza maléfica do próprio Deus, ou quando analisa a natureza do corpo eàdaàal a,àeà o pa aàoàpe sa e toàplat i oà o àoà a i ueu,àafi a doà ueà osà platônicos não são insensatos como os maniqueus que detestam os corpos terrenos como se fossem maus por atu eza à “áNTOàáGO“TINHO,à ,àp.à ,à .àOà oàes ue i e toà sà ezes se dá de forma indireta, quando, por exemplo, a doutrina maniqueia da existência de uma natureza má ontologicamente é citada e pli ita e teàse à ueàseuàp opo e teàsejaà o eado:à N oà à uitoàad i a ,à o à e teza,à ueàa uelesà ueà creem na existência de uma natureza má, proveniente de e propagada por algum princípio contrário, se e use àaà e à aà o dadeàdeàDeus,àauto àdosàse esà o s,àaà ausaàdaà iaç oà[...] à “áNTOàáGO“TINHO,à ,à p. 1042).

87 Um exemplo da inexistência de novas interpretações pode ser vista quando Agostinho se depara com o

relato da criação em seis dias. O autor resolve a dificuldade da interpretação mediante o recurso da tese da criação em um só momento, momento este, no entanto, repetido seis vezes (SANTO AGOSTINHO, 1993, p. 1063). Esta interpretação já está contida no tratado acerca do Gênesis escrita anteriormente: o Comentário Literal ao Gênesis (SANTO AGOSTINHO, 2005c, p. 160-166).

narrativa da queda do homem, para delinear um retrato descritivo do cidadão tanto da cidade celeste como da cidade terrestre.

Desta forma, qual a contribuição que tal texto pode fornecer acerca da discussão hermenêutica agostiniana sobre o livro do Gênesis? Em primeiro lugar ainda existe um espaço para uma exegese do texto bíblico em questão, mas o seu objetivo, como já foi dito antes, não é o mesmo que esteve presente nos outros tratados anteriores. O maniqueísmo surgia como pano de fundo daquelas análises, porém mesmo com as citações esparsas sobre este movimento o mesmo já não se constitui um elemento tão relevante posto no horizonte hermenêutico agostiniano, pelo menos no que concerne ao livro do Gênesis. Em segundo lugar, embora o autor ainda exercite uma exegese criativa, ela se concentra no segundo e terceiro capítulo do Gênesis, segundo documento da criação e relato da queda, com um enfoque que pode ser chamado de moral, ou seja, a interpretação agostiniana destes textos é permeada por uma linha interpretativa que pretendia encontrar o fundamento das ações morais dos habitantes da cidade de Deus e da cidade terrestre. Embora tal processo exegético seja interessante do ponto de vista hermenêutico, ele se afasta da linha das interpretações do Gênesis dadas anteriormente, tanto pelo viés adotado como pelo fato de que tal interpretação é apenas um meio para um esclarecimento maior, ou seja, o entendimento da história da humanidade do ponto de vista teológico.

A leitura desta obra, no entanto, possui uma relação com as discussões anteriores apenas no que se refere ao método adotado de análise. Na obra Comentário Literal ao Gênesis, texto entendido como a reflexão definitiva do autor sobre a questão, ao menos no que concerne à motivação original, isto é, responder à crítica dos maniqueus, o mesmo define que a melhor posição acerca do primeiro livro da Bíblia seria a abordagem literal, embora em alguns momentos tal abordagem seja feita com alguma dificuldade, como já foi visto.88 É esta postura, a abordagem direta do texto, que permanece como sendo o elo hermenêutico entre as diversas tentativas de interpretação do texto sacro, embora o conteúdo a ser interpretado varie;