• Nenhum resultado encontrado

A música e a cidade: as práticas musicais brasileiras e as transformações urbanas

2. Cidades pós-coloniais, cidades globais?

A história da capital portuguesa, Lisboa, está entrelaçada com a história do colonialismo que marcou o desenvolvimento económico, político e social de Portugal ao longo de vários séculos. A questão do pós-colonialismo é, portanto, um aspecto central para se ter em conta numa análise sobre a cidade contemporaneamente. Lisboa, que outrora foi uma metrópole colonial, apresenta-se atualmente como uma metrópole pós-colonial. Domingos & Peralta (2013) assinalam que muitos dos princípios de organização que norteavam as sociedades coloniais são reproduzidos em contextos pós-coloniais (Domingos & Peralta 2013, XXXI-XXXII). Neste sentido, o espaço urbano possui um papel crucial no entendimento das formas como este passado colonial faz-se presente nos dias que correm, pois «é na cidade que a ordem espacial dos projetos e imaginação imperiais é concretizada» (Domingos & Peralta 2013, X).

O espaço urbano é o palco onde a experiência pós-colonial delineia-se em seus variados aspectos. É na cidade que acontecem os encontros da metrópole com a população imigrante vinda das ex-colónias, que o passado colonial é repensado através das formas de organização de monumentos e museus, entre outras dimensões materiais (Domingos & Peralta 2013, XI). Assim como no passado a urbe constituía o cerne do projeto colonialista, o local de onde irradiavam as ideologias que norteavam tais empreendimentos; a cidade é no presente o lócus privilegiado dos encontros e

interações impulsionados pela experiência pós-colonial – revelando harmonias e dissonâncias que marcam as relações entre a metrópole e o outro colonizado, que se dão em interfaces distintas daquelas que aconteciam no período colonial.

Hoje, em Portugal, em práticas quotidianas, na cultura popular, em políticas institucionais, em livros de história, nos museus, na produção ideológica mas também na própria geografia das cidades, esse passado é ainda visível e continua a servir de grelha de conhecimento na mediação das relações sociais, na materialidade e na imaginação dos entendimentos comuns produzidos sobre o “outro”. (Domingos & Peralta 2013: XIX-X).

O fenómeno da imigração em Portugal torna-se significativamente numerosa a partir dos anos 2000, como resultado de uma conjuntura global dos fluxos migratórios que redireciona os brasileiros que migravam para os Estados Unidos para o país que vivia um bom momento económico, oferecendo boas oportunidades de colocação laboral aliadas às facilidades de entrada em território português e a partilha do idioma. Deste modo, a crescente presença de uma população brasileira em Portugal acaba por ser inserida no fenómeno das migrações das ex-colónias em direção às suas antigas metrópoles – basta pensar nas facilidades burocráticas que os brasileiros possuem no país em contraste com os outros destinos de migração, devido a inúmeros acordos que existem entre Brasil e Portugal, cuja criação relaciona-se com o passado histórico que une os dois países.

Eu diria que o fluxo de brasileiros difere, nalguma medida, daquele dos imigrantes vindos das ex-colónias portuguesas em África; não apenas em decorrência dos motivos e condições que perpassam a mobilidade em si, mas também pelo facto de que os processos de independência vividos por aqueles países e pelo Brasil são notadamente diversos. Para além da diferença temporal entres estes processos, as independências de algumas das ex-colónias africanas, como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, ficaram marcadas pela «Guerra do Ultramar» e por choques armados subsequentes entre diferentes forças políticas locais que mergulharam estes países em longos e violentos conflitos internos. Estas peculiaridades que diferenciam a experiência de mobilidade dos migrantes vindos das ex-colónias portuguesas em África contrastam-se com os fluxos migratórios brasileiros, que estão inseridos no contexto dos fluxos de migração global que se intensificam a partir do final dos anos 1980. Apesar desta diferença substancial que marca as vagas de migração de brasileiros, uma vez instalados em Portugal, esta população depara-se com imagens e representações reificadas feitas pelos portugueses sobre o Brasil que remontam aos

séculos de história que unem os dois países. Ainda que não sejam imagens e representações que emergem em decorrência de uma relação marcadamente pós- colonial, elas estão proximamente ligadas ao facto de que desde os primeiros anos de ocupação colonial portuguesa no Brasil, há a reprodução mútua de estereótipos e imagens feitas entre as duas populações (Rowland 2002).

Os migrantes brasileiros quando chegam em Lisboa deparam-se com as diferentes formas de reiteração do passado colonial que se faz presente na cidade (Domingos & Peralta 2013); contudo, o modo como estas projeções de um passado colonial compartilhado apresenta-se de forma muito mais subtil na realidade quotidiana destes sujeitos. As ambivalências que caracterizam Brasil e Portugal fazem com que as formas desta relação pós-colonial deem-se de forma muito mais intrincada. Deste modo, pensar em Lisboa enquanto uma cidade pós-colonial é interessante para pensar o modo como os brasileiros entraram neste cenário, devido às formas de recepção e compreensão feitas pelos portugueses acerca dos mesmos (Machado 2009; Frangella 2013b; Gomes 2013). No caso das práticas musicais dos brasileiros com quem trabalhei, estas ambivalências são notórias: os músicos migrantes vivem simultaneamente condições de subalternidade dadas pela sua condição migratória e ocupam espaços privilegiados ao serem reprodutores de um bem cultural que possui um carácter de destaque e grande impacto na sociedade portuguesa.

Durante o trabalho de campo, diversas vezes deparei-me com resquícios da ideologia colonial que perpassam as relações entre brasileiros e portugueses – algumas vezes com o intuito de valorizar e exaltar os feitos de Portugal na construção do Brasil, outras com algum escárnio e desprezo por aquilo que os brasileiros trazem para o país. Em muitos momentos durante o trabalho de campo, os resquícios destas relações pós-coloniais emergiam principalmente quando observava o público nas apresentações dos músicos brasileiros: o recorrente assédio de homens portugueses a mulheres brasileiras, revestido do estereótipo da mulher brasileira sexualizada e interessada em relacionar-se com portugueses; o inúmeros pedidos para que os brasileiros ensinassem os portugueses a sambar; a reiteração da ideia de que os

brasileiros são todos felizes, alegres e dispostos a conviver com todos3. A seguir, apresento um trecho do diário de campo sobre comentários feitos por duas senhoras portuguesas durante a apresentação de Ana, uma mulher brasileira e negra que canta samba em bares da região central de Lisboa.

Estava a fumar um cigarro do lado de fora do bar e observava a apresentação de Ana, que cantava alguns sambas acompanhada pelo violão de Jorge, e comecei a ouvir a conversa de duas senhoras portuguesas que estavam ao meu lado e a assistir à apresentação também do lado de fora do bar. As duas senhoras deviam ter por volta dos 55, 60 anos de idade, estavam bem vestidas e não consegui perceber muito bem como tinham ido parar ali. Enquanto olhavam para dentro do bar e seu pequeno salão, observavam a energia de Ana a cantar com um sorriso no rosto e a animação de duas meninas brasileiras que dançavam e interagiam com a cantora. Neste momento uma senhora disse para outra:

Senhora A – Isso é incrível! Os ingleses até têm um sentido de humor engraçado, mas eles... eles têm outra forma de olhar a vida.

Senhora B – Isto, no fundo, é África!

Senhora A – Isto também é os índios, é a mistura... Senhora B – Exatamente. É... isso ainda existe! Até hoje... Senhora A – Apesar de termos ido lá e os dizimado.

Quando dizem eles, as senhoras estavam a referir-se aos brasileiros. Achei interessante como em poucas frases elas conseguiram reunir a ideia da democracia racial e o mito das três raças, que está no cerne do lusotropicalismo de Freyre. Ao mesmo tempo em que assumem alguns dos males do colonialismo, exaltam o exotismo que envolve a imagem da mulata brasileira (Trecho do Diário de Campo, 27 de Julho de 2016).

Concordo com Domingos & Peralta (2013) quando sugerem que o passado colonial persiste na vida das antigas metrópoles imperiais e, a meu ver, esta persistência faz-se presente não apenas na manutenção de monumentos relacionados ao império, discursos oficiais e outros momentos excepcionais, podem acontecer nos encontros quotidianos e banais nas ruas da cidade – como este encontro de duas senhoras portuguesas numa terça-feira de verão num bar da região do Cais do Sodré com a expansividade e alegria que caracterizam tanto as apresentações de samba em geral quanto os estereótipos acerca da identidade nacional brasileira.

A mobilidade da população de ex-colónias e seu estabelecimento na metrópole, neste caso em Lisboa, reiteram e reproduzem relações de dominação com outro colonizado, bem como reiteram imagens reificadas e estereotipadas acerca deste

3 Este tipo de comportamento que observei durante o trabalho de campo é transversal à maioria dos estudos sobre a população brasileira em Portugal. Machado (2009) desenvolve a ideia de «mercado da alegria» que posicionaria os brasileiros no mercado laboral, sobretudo no setor de serviços, atendimento e cuidado na cidade do Porto. Gomes (2013) e Fernandes (2017) mostram a forma como a imagem da mulher brasileira tem sido, no decorrer da longa história de relações entre os países, reproduzida de forma a salientar uma hiper-sexualidade.

outro. Afinal, «muitos dos caminhos criados no tempo colonial desembocaram na Lisboa pós-colonial» (Domingos & Peralta 2013, XXXIII). No caso das práticas musicais brasileiras, estas relações e estereótipos tornam-se evidentes no modo como estas se distribuem pela cidade, em consonância com os ritmos que apresentam e o público que atraem. Quando olho para as práticas de meus interlocutores, posso observar o movimento indicado por T. Monteiro (2011), em artigo sobre uma roda de choro em Alfama, sobre o modo como determinado tipo de música brasileira, considerada de qualidade e prestigiada pelos portugueses, tem a sua presença na cidade capitalizada, sendo integrada à programação cultural da cidade (T. Monteiro 2011). Neste sentido, a atividade dos músicos desafia as relações de poder assimétrica que marcam essa Lisboa pós-colonial, impondo-se como reprodutores de um bem cultural valorizado que ocupa lugares de destaque. Em contrapartida, as práticas musicais de brasileiros, reproduzidas em espaços menos hegemónicos e conotadas como «música dos migrantes», são compreendidas a partir da reiteração de uma certa imagem de Brasil baseada em estereótipos depreciativos.

No mundo contemporâneo, as chamadas cidades pós-coloniais são frequentemente consideradas cidades globais. Isto é, o seu passado colonial, que convergia inúmeros lugares do mundo na sua construção imagética enquanto metrópole de um império, combinado com o intenso e diverso fluxo migratório contemporâneo, faz com que cidades como Lisboa apresentem-se enquanto cidades globais. Neste sentido, suas relações pós-coloniais e sua posição de centralidade em relação aos processos de globalização são equacionadas de modo a reforçar a ideia de multiculturalismo, consolidando uma posição no hall das cidades europeias modernas, multiculturais e cosmopolitas (Tsing 2000; Bastos 2001 e 2004; Sassen 2001 [1991] e 2005; Gilroy 2004; Vertovec 2007a e 2007b; Mendes 2012).

Saskia Sassen publica em 1991 o livro intitulado Global City: New York, London, Tokyo que trata das transformações das atividades e relações de produção no panorama do chamado mundo globalizado. Neste sentido, a autora afirma que as cidades globais compreendem polos de convergência desta produção espalhada ao redor do globo, concentrando serviços responsáveis pelo funcionamento da economia em escala global (Sassen 2001 [1991]).

Pouco mais de uma década depois, em 2005, Sassen reafirma a relação entre os processos ligados à globalização e as mudanças nos meios e relações de produção que se reproduzem a nível global. Contudo, a autora chama atenção às diversas

desigualdades que perpassam tais relações no mundo globalizado e ao facto de que atualmente as chamadas cidades globais desempenham outros papéis que não àqueles ligados à centralização de produtos e serviços financeiros que asseguram o funcionamento da economia capitalista global (Sassen 2005).

No mundo contemporâneo as cidades globais apresentam-se como palco de conflitos e negociações entre os múltiplos atores que fazem parte do fenómeno da globalização. Afinal, estas cidades são tanto dos profissionais da alta finança que controlam os fluxos de capitais ao redor do mundo, quanto dos migrantes laborais que deixam seus países de origem em busca de melhores condições de vida. Ao aproximar-se da economia global (algo cada vez mais inevitável), as cidades sofrem transformações significativas em termos das demandas por cidadania e pelo direito ao lugar que emergem de tais transformações (Sassen 2005).

Deste modo, a análise sobre a globalização proposta por Sassen distancia-se das premissas de um mundo global disperso e desterritorializado, sugerindo uma abordagem localizada fundamentada na ideia de cidade global. Concordo quando a autora afirma que as cidades globais são espaços que evidenciam as contradições subjacentes à globalização, sendo palco de múltiplas reivindicações por espaço e reconhecimento por parte daqueles que nelas vivem.

Anna L. Tsing caminha numa direção convergente ao questionar o que de facto é o global e sugerir que as análises das Ciências Sociais devem distanciar-se do deslumbramento que envolve a ideia de um mundo sem fronteiras e homogeneizado. Para esta autora, as análises desenvolvidas no âmbito da globalização devem considerar de maneira efetivamente crítica todas as dissonâncias que subjazem aos processos ligados ao fenómeno do global. A decisão de tomar esta distância crítica permite realizar uma análise da globalização a partir de uma abordagem que se beneficia da noção de territorialidade e do comprometimento com a ideia de localização. Afinal, a existência do global não prescinde quaisquer territorializações e a existência do local (Tsing 2000).

A decisão de trazer este debate sobre as cidades globais no âmbito da discussão acerca das relações entre as práticas musicais brasileiras e a cidade deve-se ao facto de que Lisboa está a atravessar um momento de intensas e importantes transformações ligadas à sua consolidação enquanto cidade global, cosmopolita e multicultural no cenário das grandes cidades europeias. Neste sentido, as práticas musicais brasileiras apresentam-se como uma das inúmeras evidências desse seu

carácter culturalmente diverso e inclusivo, colaborando para a sua colocação no mercado das cidades globais em geral.

Assim, ao observar o modo como estas práticas distribuem-se pelo centro da cidade, espaço privilegiado desta montra do «multiculturalismo lisboeta», devo ter em consideração todos os processos de transformação que projetam essa «globalidade» na cidade de Lisboa. A partir dessa distribuição e construção de um circuito destas práticas, como veremos a seguir, os músicos brasileiros acabam por reiterar as reivindicações da comunidade imigrante brasileira por um lugar próprio e reconhecido no âmbito da diversidade cultural que caracteriza a cidade atualmente. Além disso esta presença marcante das práticas musicais brasileiras acaba por fomentar alguns dos processos de gentrificação assistidos na cena noturna lisboeta e que contribuem para o delineamento de uma imagem da marca da cidade assente numa narrativa de multiculturalismo e autenticidade.