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2 JUVENTUDE, VIOLÊNCIA E CIDADE: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E

2.4 CIDADES E PERIFERIAS

As reflexões sobre o processo de constituição das periferias estão contidas no contexto do surgimento das cidades, logo, uma longa tradição teórica poderia ser retomada, haja vista que as cidades fazem parte da história humana desde a antiguidade. Partindo de uma perspectiva sócio antropológica, os trabalhos realizados pelos autores ligados à Escola Sociológica de Chicago são emblemáticos, pois foi um efetivo marco nas pesquisas sobre questões urbanas. Os estudos posteriores foram profundamente influenciados por essa abordagem, seja no sentido de confirmá-la ou no sentido de negá-la6. Acompanhando de perto o crescimento urbano das cidades industriais americanas, desenvolveram estudos que culminaram na elaboração da noção de cultura urbana. De acordo com Frugoli Jr. (2005, p. 136):

Em linhas gerais, a noção de cultura urbana formulada pela Escola de Chicago, fruto de um conjunto amplo de pesquisas, pode ser creditada principalmente a três autores: Robert Park, que concebeu a cidade como um campo de investigações da vida social, influenciando várias pesquisas da época; bem como, numa segunda etapa, os contrapontos entre os estudos de Louis Wirth, que culminaram no conceito de

6 Para um estudo sobre a Escola de Chicago e seus pressupostos teóricos, cf. Coulon (1995). Ver também Becker

urbanismo enquanto modo de vida – com base em variáveis como tamanho, densidade e heterogeneidade – e Robert Redfield, assentados em pequenas localidades – que originou os “estudos de comunidade” –, cujo desenvolvimento levaria presumidamente a processos de urbanização, sintetizados no conceito de continuum

folk-urbano7.

Ainda de acordo com o autor, a Escola Sociológica de Chicago recebeu influências dos sociólogos clássicos da virada do século XIX para o XX, sobretudo Weber, Durkheim e Simmel. Deles foi derivada a noção que apreendia a cidade como uma “variável independente” onde as práticas culturais desenvolvidas pelos atores eram o foco privilegiado de análise. Conjuntamente a isso havia um forte apelo prático nas pesquisas, ou seja, buscava-se por meio delas amparo científico para realizar intervenções no sentido de sanar os “problemas urbanos” encontrados nas cidades.

Posteriormente, essa abordagem foi questionada por sociólogos ligados ao marxismo que se desenvolveu na França a partir da década de 1960. Para esses autores a cidade deveria ser aprendida sob o prisma da macroestrutura, estando subordinada às determinantes da política e economia. Neste sentido, estes autores criticaram duramente o culturalismo da Escola Sociológica de Chicago como pouco explicativo, considerando que a cidade era uma “variável dependente” da estrutura social (FRUGOLI JR, 2005).

No contexto brasileiro, a discussão ganhou notabilidade entre as décadas de 1970 e 1980 sob influência da sociologia urbana marxista francesa. Os principais estudos se concentraram em São Paulo, onde se observou, nesse período, um crescimento vertiginoso dos bairros afastados do centro da cidade. Esse fenômeno foi possibilitado pelo modelo de industrialização promovido pelo governo militar da época. Assim, o elemento estrutural nesse processo de crescimento urbano era a industrialização da cidade de São Paulo, que atraía milhares de pessoas para o trabalho nas fábricas.

Nesses bairros, o que se observava eram casas autoconstruídas, falta de equipamentos públicos e todo tipo de carências imagináveis. Logo surgiu uma ampla gama de movimentos sociais reivindicando melhorias urbanas nos bairros: asfalto, iluminação, transporte coletivo, postos de saúde. Foram esses movimentos sociais que chamaram a atenção dos pesquisadores que logo relacionaram esses fenômenos ao referencial teórico do marxismo, compreendendo que o crescimento urbano da cidade estaria submetido ao processo de reprodução da força de trabalho. Não ampliar os serviços públicos que serviriam como base de sustentação da mão de

7 Neste sentido, cf. os estudos clássicos destes autores: Park (1987), Wirth (1987), Redfield (1974). Cf., também,

o texto de Hannerz (1980), onde ele apresenta um balanço teórico dos estudos de sociologia urbana desenvolvidas pela Escola de Chicago.

obra era parte do plano para extração máxima de mais valia dos trabalhadores. Esse processo de “espoliação urbana” seria o motor dos movimentos sociais contestatórios, atribuindo à questão urbana um referencial político militante muito marcante (KOWARICK, 1979).

Nesse contexto, a definição de periferia estava intrinsecamente ligada à noção de centralidade, ou seja, define-se periferia por oposição ao centro. No centro estariam concentradas as atividades comerciais, de serviços, de consumo bem como aparelhos públicos. Na periferia, ao contrário, seria o lugar da escassez, do desleixo do poder público, onde os pobres se apinhavam em casas mal construídas e bem longe do centro. Nessa relação centro- periferia, a elite habitava o centro e os pobres, a periferia. As relações sociais tinham como base a ideologia, enquanto instrumento de dominação da elite sobre a classe trabalhadora.

Há que se considerar, inclusive, que a definição de periferia nesse contexto também reforçava a noção de um espaço culturalmente fraturado, em que a noção de civilidade era precária. Tanto do ponto de vista da elite estabelecida, que associava o aumento da violência ou qualquer outro problema da cidade aos modos de vida dos sujeitos residentes nesses bairros; quanto das ações públicas que consideravam que era necessário levar cultura a esses locais, como forma de assegurar alguma “evolução” e integração às normas sociais pautadas em valores bastante claros aos moradores do centro (elite).

Mesmo que essa noção de periferia enquanto distância geográfica do centro esteja presente no senso comum, na teoria (principalmente na perspectiva antropológica) ela já foi revisada e melhor problematizada. Desde os anos 1980 estudos vêm apontando o surgimento de novas formas de ocupação do espaço urbano, bem como novas configurações sociais no contexto das periferias.

Quanto à ocupação do espaço urbano, Frúgoli Jr. (2000), discute o surgimento de várias centralidades no tecido urbano da cidade de São Paulo, apresentando o histórico dos movimentos de mudança da centralidade do setor antigo para Avenida Paulista e mais recentemente, da Paulista para Avenida Roberto Marinho/Marginal Pinheiros, no sentido sudoeste. Por sua vez, Spósito (2001), apresenta alguns elementos que auxiliam na compreensão dessa nova forma de relação centro-periferia e os impactos da policentralidade na organização do espaço urbano.

A primeira observação desta autora diz respeito à flexibilidade das indústrias em separar o setor produtivo do setor administrativo. Assim, a linha de produção passou a se instalar nas periferias enquanto os escritórios administrativos permaneceram na região central. Em torno dos galpões das fábricas novas centralidades se desenvolvem principalmente pelo aparato que

é necessário para manter os trabalhadores, desde conjuntos habitacionais no entorno, até aparelhos ligados ao consumo e lazer.

A segunda observação se refere aos condomínios em locais distantes do centro, financiados na maioria pela iniciativa privada, mas que necessitam de toda uma infraestrutura fornecida pelo poder público, tais como vias de acesso, saneamento básico, segurança. A terceira observação destaca a instalação de aparelhos de consumo e serviços como shopping

centers e hipermercados que ocupam áreas não loteadas, promovendo assim a especulação

imobiliária e formação de novos núcleos.

Assim, considerando a morfologia do espaço urbano é pertinente falar de periferias – no plural. Segundo Kowarick (2000), a periferia deve ser considerada no plural por que:

[…] são milhares de Vilas e Jardins. Também porque são muito desiguais. Algumas mais consolidadas do ponto de vista urbanístico; outros verdadeiros acampamentos destituídos de benfeitorias básicas. Mas, no geral, com graves problemas de saneamento, transporte, serviços médicos e escolares, em zonas onde predominam casas autoconstruídas, favelas ou o aluguel de um cubículo situado no fundo de um terreno em que se dividem as instalações sanitárias com outros moradores: é o cortiço da periferia. Zonas que abrigam população pobre, onde se gastam várias horas por dia no percurso entre a casa e o trabalho (KOWARICK, 2000, p. 43).

Mesmo o tema da pluralidade da periferia estando presente desde os anos 1980 na discussão antropológica, atualmente ela se refere ao grau de consolidação desses bairros periféricos, medido pelo acesso ou não aos equipamentos públicos de promoção social, decorrente principalmente da mobilização comunitária por melhorias no bairro e no atendimento pelo Estado dessas demandas.

De acordo com Caldeira (2000), mesmo diante dessas novas dinâmicas o que caracteriza o crescimento da malha urbana das cidades continua sendo a segregação socioespacial. Na esteira da consolidação de diversas periferias, os setores médios e dominantes se instalaram em condomínios fortemente protegidos, coabitando o mesmo espaço periférico com as camadas populares, mas não fazendo parte dele. Esses “enclaves fortificados” formam o que a autora chamou de “cidade de muros”, onde moradores se escondem com medo da violência, imperando a vigilância e a discriminação social.

No que se refere aos conteúdos culturais das periferias, a mudança operada foi em direção de compreender a periferia para além do espaço geográfico, destacando a dimensão social do espaço físico que comporta uma série de dinâmicas manifestas em diferentes práticas discursivas, deixando claro que a periferia é um processo, que envolve projetos de longo prazo e organização da comunidade no plano político buscando sempre melhoria de vida. A periferia

passou de um lugar que, na perspectiva marxista, era marcada pela exploração e alienação, para um lugar significativo onde ocorrem formas variadas de sociabilidades e representações simbólicas.

Nesse sentido, a periferia deve ser abordada nos estudos sociológicos e antropológicos sob o prisma de uma polifonia de significados, sabendo que alguns elementos contribuem para sua unificação enquanto conceito homogêneo e outros destacando as especificidades presentes principalmente nas narrativas sobre os sentidos de viver na periferia. Sobre isso Frugoli Jr. (2005) destaca:

Cabe assim diferenciar, no plano analítico, a periferia como área urbana específica e sujeita a distintos graus de segregação (ou, num sentido inverso, de consolidação), como fenômeno social (que, nas últimas décadas, tem envolvido um projeto familiar e comunitário de inserção na cidade, mas com certas rupturas introduzidas por diversos fatores), como um conjunto polifônico de representações nativas (cujas predominâncias tipológicas cabe definir caso a caso), bem como uma série de narrativas (FRUGOLI JR, 2005, p. 148).

Assim, as periferias podem ser analisadas a partir das mais variadas possibilidades, uma vez que compreendem aspectos geoespaciais e também a produção de saberes e epistemologias localizadas. Vale destacar que não são perspectivas excludentes, não se trata de abandonar as formulações que tratam das periferias a partir de um referente geográfico e contrastivo (em oposição ao centro), mas de incluir na análise a variável imaterial, que diz respeito a um tipo de sociabilidade e modo de organização que não se remete diretamente à ideia de um centro irradiador de poder.

Gadea (2012), ao tratar do significante negro entre haitianos residentes na periferia de Miami, compreende a periferia como “modelo de sociabilidade” permitindo uma análise que retira o conteúdo antitético da periferia e sua relação com o “centro”, ou seja, enquanto modelo de sociabilidade não faz sentido reforçar essa relação (centro x periferia), mas atentar para as ambiguidades contidas nos processos de identificações na contemporaneidade.

Compreender a ambiguidade das periferias permite que se recupere o conceito de tática apresentado anteriormente, para demonstrar que as dinâmicas sociais nas periferias são negociáveis e muitas vezes não se caracterizam por estabelecer um conflito com o poder instituído (centro), mas agem na espreita, na ausência de poder, ressemantizando significados construídos sobre a periferia, fora do marco que estabelece um a priori do mundo.

Nesse sentido, é possível compreender o pouco sucesso das políticas públicas para a juventude das periferias, uma vez que se sustentam em referenciais do mundo do poder institucionalizado, ao passo que a experiência de ser jovem é ambígua e matizada pela vivência

da periferia, o que favorece um modelo de sociabilidade que se afasta do ideário tradicional de integração social via trabalho e educação.