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Cidades em perspectiva

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Capítulo 1 CONEXÕES ENTRE MEDO, INSEGURANÇA E VIOLÊNCIA

1.5 Cidades, metropolização e segregação

1.5.1 Cidades em perspectiva

Antes de conceituar cidade surgem os seguintes questionamentos: O que é cidade? O que é urbano?

Talvez devêssemos introduzir aqui uma distinção entre a cidade, realidade presente, imediata, dado prático-sensível, arquitetônico – e por outro lado o “urbano”, realidade social composta de relações a serem concebidas, construídas ou reconstruídas pelo pensamento. (LEFEBVRE 1969, p. 49)

Porém, logo em seguida o autor defende que o uso distinto destes termos pode constituir perigo e ao usar os termos de forma distinta, justifica porque a preferência de um em detrimento a outro e, o cuidado de uso, tanto indistinto como de separação dos termos, deve ser imprescindível, assim,

as diferentes formas de entrada na sociedade urbana, as implicações e conseqüências dessas diferenças iniciais, fazem parte da problemática concernente ao fenômeno urbano ou “o urbano”. Esses termos são preferíveis à palavra “cidade”, que parece designar um objeto definido e definitivo, objeto dado para a ciência e objetivo imediato para a ação, enquanto a abordagem teórica reclama inicialmente uma crítica desse “objeto” e exige a noção mais complexa de um objetivo virtual ou possível. [...] O urbano (abreviação de “sociedade urbana”) define-se portanto não como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade iluminadora. O urbano é o possível, definido por uma direção, no fim do percurso que vai em direção a ele. (LEFEBVRE 1999, p. 28)

De acordo com Moysés (2008, p. 113-4) as definições de urbano e cidade são trazidas distintamente, porém com a ideia de que o urbano e cidade se complementam e não se opõem.

O urbano é um conceito que qualifica um modo de vida, que hoje atinge a maioria da sociedade brasileira. As atividades urbanas extrapolam os limites das cidades, como é possível verificar em várias atividades como o agronegócio, atividades turísticas, na utilização de áreas inundadas para a produção de energia elétrica. A relação campo/cidade, rural/urbano na atual dinâmica precisa ser relativizada, tendo em vista as diferenças socioespaciais das regiões brasileiras. A sociedade rural se recria e requalifica, traz novos conteúdos necessários para a construção de novos paradigmas. O urbano não é uma realidade acabada, mas um horizonte de transformações territoriais, sociais, políticas e econômicas que se difunde em fluxos materiais e imateriais. Campo e cidade, rural urbano não tem oposição, mas complementaridade. A cidade deve ser compreendida como forma espacial e lugar de concentração da produção, circulação, consumo de bens e serviços. A cidade, que concentra e difunde o urbano, é um centro de decisão política.

Ao conceituar cidade, tarefa que não é muito fácil, em um primeiro momento, pode-se pensar na cidade como um aglomerado de casas, comércios, escolas, hospitais, etc., edificados em quarteirões circundados por ruas arborizadas e pessoas tranquilas e amigáveis circulando por elas. Mas há quem diria que cidade é tudo isso, porém em uma quantidade infindável de imóveis acrescidos de torres e um vai e vem de pessoas e automóveis, numa confusão tal que se torna quase impossível qualquer relação social, onde os olhares das pessoas se cruzam por segundos e se desviam, sem ao menos se cumprimentarem, o individualismo se sobrepondo ao coletivo.

Percebe-se que a cidade é uma complexidade que vai além da tentativa de defini-la, pois como ressalta Rolnik (2004, p. 40-1),

[é] como se a cidade fosse um imenso quebra-cabeças, feito de peças diferenciadas, onde cada qual conhece seu lugar e se sente estrangeiro nos demais. É a este movimento de separação das classes sociais e funções no espaço urbano que os estudiosos da cidade chamam de segregação espacial.

A segregação espacial supõe como se a cidade fosse demarcada por cercas, fronteiras imaginárias, definindo o lugar de cada coisa e de cada um dos moradores. Sendo esta fronteira bastante divisível e visível, pois num mesmo espaço pode-se ver a favela ou a posse urbana de um lado, indicando a decadência social dos menos favorecidos e de outro os mais favorecidos, apontando toda a dominação financeira e riqueza material.

A origem das cidades teve uma linha do tempo, na qual foram divididas em cidades antigas, feudais, medievais e modernas. Seguindo essa linha tem-se a cidade política, mercantil, industrial.

Mont-Mór (2006, p. 40), fala que “na Antiguidade, a cidade política organizava, dominava, protegia, administrava, explorava um território, com os camponeses, os habitantes dos vilarejos, os pastores, etc”.

A cidade política no decorrer do tempo continua lutando pelo espaço, mesmo quando entre as pessoas aparece a necessidade de trocas de mercadorias, o embrião para o surgimento da cidade mercantil, na qual segundo Lefebvre,

a cidade política resiste com toda a sua força, com toda a sua coesão; ela sente-se, sabe-se ameaçada pelo mercado, pela mercadoria, pelos comerciantes, por sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, movente por definição: o dinheiro). Inumeráveis fatos testemunham a existência, ao lado da Atenas política, tanto da cidade comercial, o Pireu, quanto às interdições em vão repetidas à disposição de mercadorias na ágora, espaço livre, espaço do encontro político. (1999, p. 22)

Na Europa, logo após a cidade mercantil, instaura-se a cidade industrial. A urbanização brasileira acontece de fato com a entrada da indústria no Brasil, quando surge a cidade industrial centrada no capitalismo. Inicialmente, as indústrias instalam-se fora das cidades e mais tarde aproximam-se fixando nos arredores das cidades, criando então novas centralidades.

Conforme Mont-Mór em relação ao Brasil há uma inversão nos acontecimentos,

a cidade industrial surgiu no Brasil a partir de duas vertentes principais, não necessariamente excludentes entre si: a primeira, a transformação da cidade política, tradicional sede do aparelho burocrático de Estado e espaço de comando das oligarquias rurais ligadas à economia agroexportadora, em

cidade mercantil, marcada pela presença do capital exportador e/ou concentração de comércio e serviços centrais de apoio às atividades produtivas rurais em centro de produção industrial; a segunda, a criação e/ou captura de pequenas cidades como espaços de produção mono- industrial por grandes indústrias. Apenas essas cidades industriais, grandes, médias ou pequenas (mono-industriais) reuniam as condições exigidas pelo capitalismo industrial, onde o Estado regulava as relações entre capital e trabalho, fazia investimentos em infra-estrutura, garantia os meios de consumo coletivo, enfim, criava as condições gerais de produção para a indústria. Essas condições de produção estavam restritas ao que Milton Santos (1994) chamou arquipélago urbano, evidenciando o caráter fragmentário e desarticulado da sociedade urbana brasileira. Nesse contexto, a cidade industrial era peça central da dinâmica capitalista articulando-se com cidades comerciais e centros urbanos que canalizavam a produção para sua área de influência e controle. Era também nessas cidades, e apenas nelas, que se concentravam as possibilidades de acesso às facilidades da vida moderna, à cidadania, à urbanidade e à modernidade.

Lefebvre (1999, p. 27) baliza o eixo que descreve o processo pelo qual a cidade passou em forma de esquema:

Cidade política & Cidade comercial & Cidade industrial & Zona crítica ' 0 ---& 100% Inflexão do agrário Para o urbano ' Implosão-explosão (concentração urbana,

êxodo rural, extensão do tecido urbano, subordinação

completa do agrário ao urbano)

É no período denominado zona crítica por Lefebvre (1999, p. 27) que “a industrialização, potência dominante e coativa, converte-se em realidade dominada no curso de uma crise profunda, às custas de uma enorme confusão, na qual o passado e o possível, o melhor e o pior se misturam”.

Surge com base nessa zona crítica a ideia de cidade ideal, onde não haveria conflitos, contradições e problemas sociais. As crises “urbanas” atribuídas normalmente ao aumento de população, ao inchaço urbano, leva à ilegalidade e à aparente desordem. Esta ilegalidade são as favelas, as invasões, a desordem, o caos, as regularizações que não acontecem e os surge bairros que surgem da noite para o dia com leis e normas próprias.

Os defensores da cidade ideal afirmam que a violência é oriunda dos pobres e do lugar onde vivem, porém a atual globalização econômica e principalmente o poder do tráfico de drogas e armas são grandes desestabilizadores sociais e formadores de segregações.

Enfim, a cidade se molda a partir das relações sociais, caracteriza-se de acordo com o sistema socioeconômico existente. A cidade surge onde se valoriza as trocas, a impessoalidade está presente e a violência brota como um dos principais problemas advindos das segregações, convivendo num mesmo espaço.

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