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O Cinema Novo no Brasil surgiu como um movimento político-cultural em 1952, no I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e no I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro. Ganhou forma diante da vontade de não aceitar o cinema industrial e de abandonar a submissão cultural brasileira. Acreditava-se que o cinema tinha um papel fundamental na transformação social (RAMOS, 1987, p. 302). Era preciso debater sobre a cultura do Brasil no âmbito do subdesenvolvimento, denunciando o escândalo da injustiça social e da miséria econômica. Soma-se a isso, a evolução da linguagem do cinema

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brasileiro, desenvolvendo novas formas de narração, de filmagem, de produção (BERNARDET, 1978, p. 125-139).

Foi nos últimos anos da década de 1950 que o cinema propôs uma nova construção estética, simbólica e discursiva em quase toda a América Latina. Como aponta Paranaguá (2003, p.39), a nova fase foi influenciada pelo documentarismo britânico, liderado por John Grierson e caracterizado pela preocupação com a conscientização social, e o neo-realismo italiano10, representado por Cesare Zavattini. A essas influências podem ser acrescentadas outras, como as propostas de Jori Ivens e o cinema-direto americano e o de Jean Rouch e Edgar Morin.

Em artigo publicado em 1966, David Neves explicou o interesse dos brasileiros pelas novidades que vinham da França, nomeando o cinema-verdade como cinema-direto, como queria Mário Ruspoli:

No Brasil, o interesse pelo cinema-direto teve maior ênfase na medida em que eram precários tanto nosso parque de equipamentos como a economia de produção de nossos filmes. Nos grupos em que fervilhava o interesse pela renovação do panorama cinematográfico brasileiro, o novo tipo de cinema sempre despertou certa curiosidade. Duas eram as fontes de informação que traziam as notícias do extraordinário progresso alcançado pelos processos de filmagem e gravação: a revista francesa Cahiers du Cinéma, com a ―revelação‖ de Jean Rouch, e a revista americana American Cinematographer, através de suas reportagens e seus anúncios.[...] Oficialmente, o ingresso do cinema-direto, a conscientização de sua existência específica, foi-se dando pouco a pouco. Não tenho dados cronológicos, mas acredito que o primeiro filme feito sob essa característica apresentada no Brasil tenha sido o Chronique d‘un Été, de Rouch & Edgar Morin, numa semana oficial do cinema francês promovida pela Unifrance Film, por volta do início de 1962. Só os aficcionados tiveram a oportunidade de ver o filme sôbre o qual já haviam lido e relido os comentários importados. Algum tempo antes conhecera-se o Amérique Insollte e os Marines, de François Reichenbach. [...] Após a visão de Chronique d‘un Été, as tendências, muito naturalmente começaram a se repartir. Depois de Chronique d‘un Été, o cinema-direto consolidou-se nas capitais da cultura, sendo que ficou em evidência o nome dos cineastas americanos Robert Drew, Richard Leacock e os irmãos Albert e David Maysles que trabalhavam cobertos por uma leve cortina de discrição (NEVES, 2002).

10 Fernando Birri, Rudá Andrade, Gabriel García Márquez, Julio García Espinosa e Tomás Gutiérrez Aléa,

entre outros, trazem para a América Latina o modelo neo-realista do Centro Sperimentale di Cinematografia di Roma.

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Também chegavam ao Brasil os artigos da Cahiers du Cinema nos quais críticos e cineastas franceses questionavam o cinema clássico francês e propunham mudanças no sistema de produção. Influenciados pelo expressionismo alemão, pelo realismo do movimento documentarista britânico e pelo neo-realismo italiano, cineastas como Truffaut, Jean Luc Godard, Claude Chabrol e Eric Rohmer expressavam sua visão de mundo, por meio da recorrência de temas, das formas e dos conteúdos. Surgiu a Nouvelle Vague11, e, junto com ela, o cinema de autor e a ideia de que a chave para a compreensão de um filme está na própria filmografia do realizador.

Esse era um momento em que a intelectualidade latino-americana12 se defrontava com questões como colonização versus descolonização e alienação versus desalienação. Essas questões foram objeto de discussão de Paulo Emílio Salles Gomes, em 1960, e viriam a ser retomadas, no Brasil, em 1965, em artigo pelo cineasta Glauber Rocha, com ―Estética da Fome‖ (ROCHA, 2003). Na América Latina, esse novo olhar foi apresentado na forma de manifestos para a construção de um novo cinema.

O que Glauber Rocha viria a propor em seus manifestos seria uma estética violenta, que exprimisse a miséria dos povos do Terceiro Mundo. O argumento era a necessidade de a América Latina superar sua condição de colônia e responder:

Eis fundamentalmente a situação das artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos verbais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte, mas contaminam sobretudo o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista. A América Latina, inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador; e, além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes. O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma

11 Manevy (2007) propõe que a Nouvelle Vague viveu duas fases distintas: a literatura crítica de 1947 a 1959 e

a produção de filmes de 1959 a 1968.

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libertação possível estará sempre em função de uma nova dependência (ROCHA, 2003, p. 63-64).

Glauber Rocha tinha também a intenção de constituir um cinema conjugado ao processo cultural local, engajado na realidade do subdesenvolvimento de forma crítica e que traduzisse as especificidades histórico-sociais de um país do Terceiro Mundo. Em texto de 1962, ele publica a sua posição:

Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa. Para nós [do Cinema Novo] a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil! (ROCHA, 1981, p. 17)

Na mesma linha, Fernando Birri13 esclarece o seu posicionamento político, que muitos documentaristas viriam escolher em toda a América Latina:

El subdesarrollo es un dado de hecho en Latinoamérica, Argentina incluida. Es un dado económico, estadístico. [...] Sus causas son también conocidas: colonialismo, de afuera y de adentro. El cine de estos países participa de las características generales de esa superestructura, de esa sociedad, y la expresa, con todas sus deformaciones. De una imagen falsa de esa sociedad, de eso pueblo, escamotea al pueblo: no da una imagen de ese pueblo. De ahí que darla sea un primer paso positivo: función del documental. ¿Cómo da esa imagen el cine documental? La da como la realidad es y no puedo darla de otra manera. (Ésta es la función revolucionaria del documental social en Latinoamérica). [...] Consecuencia — e motivación — del documental social: conocimiento, conciencia, toma de conciencia de la realidad. Problematización. Cambio: de la subvida a la vida. Conclusión: ponerse frente a la realidad con una cámara y documentarla, documentar el subdesarrollo. El cine que se haga cómplice de eso subdesarrollo es subcine (2003, p. 456).

Diante de todas essas influências, surgia um novo de estilo de fazer documentário no Brasil. Ele primava pela temática social, beneficiando-se das inovações tecnológicas que haviam surgido na área cinematográfica: uma câmera leve, acoplada a um gravador, permitindo a sincronia de imagem e som. Os filmes produzidos por esses cineastas denunciavam a miséria em um país subdesenvolvido e criticavam o neocolonialismo

13 O cineasta argentino Fernando Birri apresentou seus filmes Tire dié e Los inundados em 1963, numa série

de palestras que fez em São Paulo. Ele afirmava que os filmes realizados nos países latino-americanos tinham uma função revolucionária de testemunhar a realidade social.

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imposto pelos países desenvolvidos. Mas os filmes não lotavam as salas de cinema. Assim, contraditoriamente, os cineastas dependiam da estrutura econômica dominante para produzir seus filmes.

No âmbito do documentarismo brasileiro, posso citar como precursores desse novo cinema Arraial do cabo (Paulo Cézar Saraceni, 1959) e Aruanda (Linduarte Noronha, 1960). O primeiro, rodado inteiramente em locações externas, retrata a vida social de uma comunidade de pescadores dispersada pela instalação de uma indústria. O segundo foi filmado no município de Santa Luzia do Sabagi, Paraíba, e aborda a formação do quilombo da Serra do Talhado, no interior do Estado, e a vida rural nessa comunidade.

Outros quatro documentários importantes reunidos no longa Brasil verdade, exibido em 1968, ilustraram os desejos dos documentaristas do Cinema Novo. Produzidos entre agosto de 1964 e março de 1965, por Thomaz Farkas14, são eles: Nossa escola de samba, de Manuel Horácio Gimenez, sobre a organização de escola de samba no desfile de carnaval do Rio de Janeiro; Os subterrâneos do futebol, de Maurice Capovilla, sobre o futebol em 1964, mostrando a ascensão e o declínio de craques e sua relação com o público; Viramundo, de Geraldo Sarno, que conta a saga dos trabalhadores de origem nordestina quando chegam a São Paulo; e Memórias do cangaço, de Paulo Gil Soares, sobre a trajetória e morte de cangaceiros nas últimas campanhas. Esse último já estava em fase de produção quando Farkas convidou Soares para participar do grupo. Os temas foram escolhidos pelos realizadores, todos com objetivo de retratar o homem brasileiro.

Considero, assim como D‘Almeida (2004) e Lucas (2005), que esses documentários são uma confluência entre as produções de Farkas, no Brasil, e Fernando Birri, na Argentina. Os filmes pretendiam dialogar com as classes dirigentes, apontando os problemas que afligiam a população ao confrontar as teses oficiais. O projeto teve sua origem na visita dos argentinos Birri, Edgardo Pallero, Manuel Horácio Gimenez e Dolly Pusi – todos da Escola de Santa Fé – ao Brasil em 1963, a convite de Paulo Emílio Salles Gomes, para apresentar a experiência argentina na área de documentários (PARANAGUÁ,

14 Thomaz Farkas, fotógrafo e proprietário da Fotóptica, loja de artigos ópticos e fotográficos, em São Paulo,

passou a produzir documentários a partir da década de 1960. Sobre a sua produção no período, ver D‘Almeida (2004) e Lucas (2005).

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2003, p. 44). Todos acabaram por conhecer Farkas, e dessa visita, surgiu o convite para a ida de Maurice Capovilla e Vladimir Herzog a Santa Fé. Com o golpe no Brasil, Birri foi para Europa. Farkas, então, reuniu-se com Pallero, Capovilla e Herzog e, juntos, formalizaram a ideia de um novo projeto documental sobre o Brasil. A eles se juntaram outros estreantes em direção: Geraldo Sarno – recém-chegado da Bahia, um dos fundadores do Centro Popular de Cultura (CPC) de Salvador, que havia estagiado durante um ano no Instituto Cubano de Artes Cinematográficas –, e o também baiano Paulo Gil Soares – co- roteirista, assistente de direção, cenógrafo e figurinista de Deus e o diabo na terra do sol (1964)- , além do argentino Manuel Horácio Gimenez. Das conversas iniciais, participou também Leon Hisrzman.

Após a experiência de Brasil Verdade, alguns desses cineastas voltam a se encontrar em um novo projeto com Farkas, em 1968. Dessa vez, para continuar o trabalho que Geraldo Sarno vinha realizando com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo, um projeto sobre a cultura popular no Nordeste. Assim, foram produzidos 19 documentários15. Segundo os diretores, todas as filmagens teriam sido voltadas para o entendimento, o conhecimento e o debate da realidade brasileira. O anseio foi expresso por meio do registro das transformações que as manifestações de cultura popular estariam sofrendo devido à substituição de valores ―tradicionais‖ por outros ―modernos‖, resultado da urbanização e da industrialização das cidades litorâneas. Foi nesse processo de transformação acelerado da sociedade que os cineastas encontraram algumas contradições. Para eles, os meios de comunicação de massa promoviam o intercâmbio entre as culturas ―moderna‖ e ―tradicional‖, mas tal transformação poderia provocar o fim desta última.

15 Cada um traz a abordagem de um tema único: a literatura oral, em A cantoria e Jornal do sertão, de

Geraldo Sarno; a religiosidade popular, em Padre Cícero, de Sarno, e em Frei Damião: trombeta dos aflitos,

martelo dos hereges, de Paulo Gil Soares; o artesanato, em A mão do homem, de Soares; Os Imaginários e Vitalino/Lampião, de Sarno; a economia, em Erva bruxa e A morte do boi, de Soares; O engenho, Casa de farinha e Região: Cariri, de Sarno; o sertanejo, em A beste e O rastejador, de Sérgio Muniz, e A vaquejada e O homem de couro, de Soares; e o cotidiano na fazenda, em Jaramataia, de Soares. As exceções ficam por

conta de Visão de Juazeiro, de Eduardo Escorel, e Viva Cariri!, de Sarno, que apresentam uma síntese de toda a temática do projeto, relacionando economia, cultura e religiosidade popular.

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Em 1971, os documentários foram apresentados comercialmente pela revista Novidades Fotóptica, sob a denominação A Condição Brasileira. Em 1972, cinco deles - Padre Cícero, Casa de farinha, Rastejador, Jaramataia e Erva bruxa - foram reunidos em um longa metragem de 90 minutos, sob o nome Herança do Nordeste.

Se na década de 1960 o cinema fez um inventário das questões sociais e promoveu a busca da descoberta do ―verdadeiro Brasil‖, na década de 1970 o regime político, a economia com base no desenvolvimento acelerado, o arrocho salarial e a consolidação da indústria cultural — com a expansão da TV— se transformaram em obstáculos para a viabilização de projetos no cinema. Como se não bastasse, houve o sufocamento das questões ideológicas com a censura cassando ou adiando a apresentação de filmes como o longa-metragem O país de São Saruê (1966/1971), de Vladimir Carvalho, que participara da produção de Aruanda; Em nome da Segurança Nacional (1984), de Renato Tapajós; e Liberdade de imprensa (1967), de João Batista de Andrade16. É nesse novo cenário audiovisual que surgiu um mercado com foco no vídeo e na televisão. A nova configuração dos meios de comunicação, de certa forma, empurrou os cineastas para uma nova realidade audiovisual obrigando alguns deles a redefinirem seus rumos cinematográficos. Um desses caminhos foi a televisão. Suas experiências cinematográficas seriam testadas em novelas e documentários, e os embates técnicos e temáticos que o veículo de massa provocaria nas obras desses cineastas influenciariam a produção televisiva nas décadas de 1970 a 1980.

No próximo subitem, discuto a utilização do som direto e a revolução tecnológica que possibilitou o trabalho no programa Globo-Shell Especial.

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