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2.2.3. Cultura como discurso! !100 !

3.4.1.2. Cinema e imagem dos países! !156 !

Dentre os diferentes assuntos tratados por Fiorella e Érico durante as interações de teletandem, podem-se destacar cinema, literatura, gastronomia, política e música. É frequente que os assuntos sejam discutidos em mais de uma sessão, ou mais vezes em uma mesma sessão sem, no entanto, que isso impeça a produção de novos sentidos. Ao contrário, a natureza contraditória do discurso pode ser percebida nos diferentes enunciados que compõem o material coletado.

Em outras palavras, dependendo do contexto no qual um tema é abordado pelos interagentes, este pode assumir sentidos diferentes daqueles assumidos em outros momentos

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da parceria, conforme será evidenciado adiante. Considerando, portanto, que os aspectos sociais são elementos constitutivos da enunciação, “Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política etc.).” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2004, p. 123).

Tomar tal perspectiva como elemento norteador para a análise de como a noção de cultura emerge na dinâmica das interações implica considerar não apenas os elementos linguísticos materializados nas transcrições, mas também o conjunto de elementos não linguísticos que dão indícios relevantes à interpretação. Assim, além de expressões faciais, postura corporal, engajamento na conversação com o parceiro, os “efeitos causados pelas enunciações” (tais como o efeito negativo das enunciações de Érico, acima, palavras fortes usadas em inglês, a visão de Érico de uma academia de ginástica e dos exercícios físicos) são exemplos do que é considerado na discussão dos dados de pesquisa.

Há de se considerar, ainda, a relação estabelecida entre os participantes e a pesquisadora, entre os interagentes nas sessões de teletandem e no grupo do qual fizeram parte (UE ou UB), bem como o contexto social (por exemplo, o momento político dos países aos quais os interagentes fazem referência) mais amplo no período em que os dados foram coletados. Tais elementos serão evocados e relacionados à análise de dados à medida que houver a necessidade de se fazer essa referência a eles.

Os excertos analisados da dupla Fiorella e Érico podem ser relacionados entre si pelo eixo temático “problemas sociais” do Brasil e da Argentina. Na interação do dia 09/04/2012, o que desencadeia a discussão é o episódio no qual Fiorella e Érico conversam sobre o filme brasileiro Estômago. No segundo, terceiro e quarto excertos, retirados da interação de 11/04/2012, o assunto desencadeador é política. No quinto excerto, da interação do dia 23/04/2012, o assunto cinema é retomado e desencadeia uma discussão sobre pirataria.

No excerto a seguir, Fiorella diz a Érico que assistiu ao filme brasileiro Estômago. Diante da reação de desaprovação do interagente brasileiro ao filme, Fiorella lhe explica por que o “adorou”.

F: oh wow I'm starving now. You know what? the other day we had a Brazilian event and I não eu 292!

tenho que falar português e nós timos um evento que nos fuimos ver uma um filme brasileiro chamado

Estômago. Você conhece?

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É: ah ((expressão e som de desaprovação)) você gostou? F: ((risos)) eu adorei eu adorei muito legal é muito forte 296!

É: sim

F: muito forte mas eu achei muito muito bom muito bom 298!

É: é esses filmes me mostram por que eu não gosto de filmes brasileiros F: você não gosta?

300!

É: não

F: mas eu achei os actores actores? 302!

É: sim atores

F: atores muito bom muito bom atores 304!

É: sim sim eles são mas, eu não sei, eu tenho a impressão que o filme brasileiro só retrata coisas ruins

306!

F: ah ((riso))

É: por exemplo se você assiste um filme norte-americano 308!

F: sim

É: eles não falam necessariamente sobre os problemas do país 310!

F: é

É: eles falam sobre robôs gigantes que destroem o mundo 312!

F: ah mas você gosta de ciência ficción? ((desviando o olhar, parecendo constrangida))

É: super heróis isso e os filmes brasileiros são sempre como o país é horrível como tem muito 314!

tráfico no Rio de Janeiro F: ((riso))

316!

É: como tem prostituição como as pessoas se matam e não sei às vezes você quer sentar e assistir um filme sobre coisas boas

318!

F: é é verdade é verdade

É: tem uns filmes brasileiros que eu adoro 320!

F: qual?

É: por exemp uh O auto da compadecida é o meu filme preferido brasileiro 322!

(Excerto 5-TT, Fiorella e Érico, 09/04/2012) !!!

As mazelas sociais que são frequentemente exploradas pelo cinema brasileiro podem ter no espectador, sobretudo para alguém que nunca teve contato com o país, o efeito de reforçar a imagem projetada pelos filmes. A própria escolha do filme Êstômago, ao qual Fiorella assistiu em um evento promovido pelo Programa de Português da UE, levou em conta a recomendação de que fossem exibidos filmes não tão conhecidos, com uma temática que se distanciasse dos estereótipos negativos sobre o Brasil.

Filmes como Cidade de Deus, Carandiru e Tropa de Elite, muito divulgados e vistos no exterior estavam descartados no evento da UE. Estômago é um filme forte, com uma narrativa dramática bem construída, sobre a questão do poder por meio da gastronomia. No entanto, muito embora retrate o universo carcerário, já que o protagonista foi preso por um crime só revelado no final, não se pode comparar esse enredo ao de filmes como Carandiru, muito mais agressivo ao mostrar uma história real ocorrida em um presídio de São Paulo em 1992.

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No excerto acima, a preferência de Érico por filmes de ficção científica, amplamente produzidos pelo cinema estadunidense, contrasta com sua crítica aos filmes brasileiros, os quais, para ele, “só retratam os problemas do Brasil”. Discursivamente a contraposição entre ambos evoca uma relação entre os países em questão: enquanto o Brasil vende em seus filmes a imagem das mazelas sociais, os EUA vendem a imagem dos “super-heróis e robôs que destroem o mundo.” Pelo modo como a interação se desenvolve, temos uma polarização entre o “bom” (cinema estadunidense) e o “ruim” (cinema brasileiro). Mais do que uma preferência por certos tipos de filme, estão em questão os discursos historicamente construídos sobre Brasil e EUA.

Ao analisarmos a interação, dialogamos com nossas próprias referências de cinema estadunidense e brasileiro. A partir do modo como Érico caracteriza os filmes, são evocados sentidos positivos, que remetem à esperança, à luta do bem contra o mal, do herói que salva o mundo, frequentemente retratados no gênero ficção científica. Tais sentidos, no entanto, podem não ser compartilhados por Fiorella, que, inclusive, demonstra uma expressão facial de certo constrangimento, desviando o olhar, quando pergunta ao parceiro se ele gosta do gênero (linha 313).

Frequentemente Fiorella e Érico conversavam sobre filmes e discutiam seus pontos de vista, como revela a narrativa postada por ela em seu portfólio no TelEduc:

Nós falhamos dum filme que ele assistiu com seus amigos no fim de semana. O filme chamava-se Não Tenha Medo do Obscuro. Eu assisti o trailer no YouTube e nós falhamos acerca do que ele e eu pensávamos do filme. O filme era um filme metade fantástico e metade realista, mas eu achei que era um pouco de terror também, embora ele disse que não é. Por esse trailer hoje eu aprendi a palavra "pesadelos". (Fiorella, PI, 26/03/2012).

Comparativamente à narrativa acima, é provável que, ao perguntar a Érico se ele conhecia o filme Estômago, Fiorella tivesse a expectativa de discutir o valor artístico do filme, uma vez que menciona os bons atores (linha 302) e a forte intensidade dramática (linhas 296, 298), características que a levaram a apreciá-lo. No entanto, a resposta de Érico, ao desaprovar não apenas o filme Estômago, mas os filmes brasileiros por só retratarem “coisas ruins”, deixa a parceira em uma posição mais de escuta, sem contra-argumentar sobre a qualidade do filme em questão.

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Na sequência da interação, Érico cita O auto da compadecida como seu filme brasileiro preferido e indica à parceira a minissérie Hoje é dia de Maria e o filme Lisbela e o Prisioneiro. Essas três obras têm em comum o universo da fantasia, o qual vai ao encontro do interesse de Érico pela literatura. Ao passo que o filme Estômago permanece no universo da realidade e retrata a condição humana de uma forma mais pesada, as obras indicadas por Érico à parceira caracterizam-se pela poesia/fantasia com a qual as histórias são contadas.

Temos, portanto, nesse excerto evidências de contraste não apenas numa questão de preferência por gêneros de filmes (realistas X fantásticos), mas no modo como metaforicamente Brasil e EUA são representados nos filmes. Um episódio no qual Fiorella questiona o parceiro sobre um filme que havia visto resulta na discriminação de problemas sociais cinematograficamente representados. As experiências individuais, as preferências, no caso específico desse excerto, são o ponto de partida, são aquilo que permeia a interação em teletandem e o que carrega sentidos para além de simplesmente uma opinião. Há no discurso de Érico sobre o filme não apenas sua própria percepção, mas outros discursos “impregnados”, conforme discutiremos nos demais excertos.