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Numa época em que a Itália ainda se recuperava do fascismo e da guerra, a aculturação norte-americana determinou alguns caminhos a serem seguidos. O audiovisual foi fortemente influenciado por novos padrões de estética e linguagem. Os espetáculos populares, como o teatro de variedades e os circos, passaram por um período de baixa, e a televisão, oportunamente, inseriu esses artistas em seus programas.

Com o surgimento da TV, a arte popular é redimensionada para os programas de variedades televisivos. Esse fato foi abordado em Ginger e Fred, em que o circo, os palhaços e o espetáculo são inseridos na lógica televisiva. A televisão passa a ser, cada vez mais, um meio muito difundido de comunicação. Em I Clowns, a busca das origens do circo na França traz as tradições da lona e dos palhaços, porém elas se mostram ultrapassadas diante da modernidade. Em I Clowns, Fellini fala do circo e dos palhaços para discutir o fim das tradições circenses e dos espetáculos populares e ainda, metaforicamente, relaciona os medos e os fascínios do povo italiano às heranças do fascismo.

Guidizio, em I Clowns, representa a inadequação revelada nos estados de loucura; é atormentado por lembranças aterrorizantes. Seus atos de insanidade ora simulam combates de bombas, ora de momentos de glória. Essa personagem, também clowesca, representa os conflitos da guerra e, por outro viés, traz à tona discussões importantes a respeito do medo e do fascínio provocado por algo desconhecido, mas que parece ser encantador.

No filme nem mesmo as crianças têm medo de Giudizio, elas saem pelas ruas compartilhando suas ações como puros atos de brincadeira. Em uma cena, o podre esfarrapado Giudizio chega à praça principal em frente ao Café Commercio, e torna-se alvo de bombardeios de gelo arremessados pelas pessoas que ali estão. De repente ele pára e lhe surge uma aparente consciência, corre ao encontro de um monte improvisado de gelo, fixa a bandeira monárquica da Itália, faz continência e, imitando uma corneta com as mãos, cantarola o toque de recolher. Todos param e, em silêncio, assistem à cena.

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Essa personagem é clown augusto que em meio ao ridículo e ao grotesco, possui ainda sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços. O cotidiano representado nessas figuras caricatas que carregam as angústias e aflições de um povo, de uma nação, delimitam um estilo. Em I Clowns, os palhaços são respeitosamente colocados em uma instância de legitimidade da consciência humana. O espetáculo circense, o circo e o palhaço denunciam o lado tosco e ao mesmo tempo consciente da sociedade. Nesse sentido, o cinema de Fellini também trata de questões decorrentes do período de conflito, porém se estrutura muito mais pelo espetáculo e pela personagem do que pela história em si.

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3. 2 Ginger e Fred e o espetáculo televisivo

Em Ginger e Fred, a televisão mostra esse mundo clown em um espetáculo eletrônico que se assemelha aos teatros mambembes e circenses pelas suas atrações, bizarrices e peculiaridades. As cenas do filme são preenchidas por imagens e sons televisivos, denunciando o espetáculo que sai da tela da TV e esparramam-se pelos espaços fílmicos com autonomia e propriedade. Na era eletrônica da modernidade, a TV incorpora várias linguagens e devora outras. O especial de Natal do programa “Com Vocês” reúne eventos e figuras importantes da história, artistas, bizarrices de circo e coisas insólitas. A dupla de dançarinos, Pippo e Amélia é convidada pela produção do programa para apresentar o mesmo número de sapateado realizado havia mais de 20 anos. Relembrando a magia, fascínio e encantamento que o cinema hollywoodiano exercia nos italianos, Fellini promove uma interessante relação entre o espetáculo teatral no passado e no presente, evidenciando o empobrecimento da arte popular via televisão.

O programa “Com Vocês” contém pequenas esquetes de talk-show, entrevistas com pessoas conhecidas da população: autoridades, artistas e até mesmo mafiosos; de reality-show, a realidade do cotidiano, como casos de família ou relacionamentos amorosos; de freak-show, a supremacia do grotesco, do horrendo e do inusitado, como a banda de sopro mais velha da Itália na qual somando a idade dos componentes, chega a 620 anos; ou, ainda, a dona-de-casa que ficou um mês sem ver televisão e quase não sobreviveu. No programa, várias atrações distintas e independentes criam um hibridismo preenchido por figuras estranhas que se arriscam em manobras ridículas para realizar o sonho de participar de um programa de TV.

É salutar avaliar o fascínio e o poder que a televisão tem perante as pessoas, podendo incutir nelas novos costumes, valores e hábitos. O filme propõe um olhar mais atento à sociedade de consumo e ao capitalismo desenfreado decorrente desse período de transformações.

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Os espetáculos de variedades, mambembes e circenses estão presentes em Ginger e Fred, onde palhaços e artistas populares são inseridos em um mundo eletrônico através do programa “Com Vocês”. A efetivação dessa concepção popular deveria ser nobre, no entanto o programa trata esses artistas com desdém e oportunismo. A primeira cena do filme, quando Amélia chega à estação de trem em Roma, no meio de uma multidão, confusa e ao mesmo tempo maravilhada demonstra certa estranheza; uma mulher acostumada à vida pacata provinciana está agora no meio do caos urbano. O que faria Amélia sair de sua cidade e aceitar participar de um especial de Natal em um programa de TV, ainda mais com Pippo, seu companheiro de dança separados havia mais de vinte anos? Por que desenterrar Ginger? A explicação é apenas uma: o fascínio que a TV exerce sobre ela.

As dicotomias urbanas capitalistas, baseadas principalmente na desigualdade social, são percebidas por Amélia quando, dentro da van da TV, ela vê, de um lado, muitos desocupados, vendedores e ambulantes, subempregados e pedintes; de outro, sedutores outdoors com produtos dos mais variados, revelando uma grande persuasão ao consumismo. O grande apelo visual e sonoro dos produtos não condiz com as imagens das ruas periféricas de Roma, uma cidade vazia e triste. Os outdoors colocados estrategicamente nesses lugares servem para preencher o vazio arquitetônico e tampar a feiúra e desolação da periferia mostrada no filme.

O furgão da emissora da televisão vai buscar as personagens do programa em vários pontos da cidade. Essas personagens são pessoas que, de alguma forma, podem demonstrar algo surpreendente ou incomum aos telespectadores. Quando Ginger percebe que no mesmo programa que dançará o tip-tap terá também um velho almirante e um travesti, ela não compreende que tipo de programa pode ser esse. A diversidade o torna superficial e fake, angustiante e irônico, tosco e grotesco. Como em um só programa se podia misturar coisas tão distintas e aparentemente sem relação?

Essa forma de espetáculo televisual investe na rapidez, no excesso e na superficialidade. Cria-se uma outra estética que banaliza e mistura os sentimentos e emoções. Por conta da estranha grade do programa, percebe-se que as atrações

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são inseridas de forma aleatória, provocando no telespectador uma espécie de histeria coletiva: descarga de risos intercalada a choros; momentos de admiração intercalados a momentos de piedade, pena, compaixão e até mesmo terror.

Quais os tipos de pessoas que são escolhidos para se tornarem personagens desses espetáculos televisivos? Impressionar, chocar, emocionar... Pessoas são também personagens. A representação busca na figura do ser comum a figura de uma personagem. É assim que se faz nos reality-shows: descobrir quais as personas (máscaras) que habitam aquele seres e quais delas podem interessar as outras pessoas e outras personas. Essas “qualidades” das personagens não precisam ser algo complexo, visto que assim exigiriam maior demanda de raciocínio e de contextualização do telespectador, o que não seria interessante a esses tipos de programa.

É fácil saber por que os programas de auditório se tornaram uma febre mundial. É um bom negócio para as emissoras, gasta-se pouco, lucra-se muito. Trabalha-se sempre com a mesma luz, as mesmas câmeras, o mesmo estúdio pré- montado e, em geral, o mesmo apresentador que é o contratado da casa emissora. O público desses programas de auditório, na maioria das vezes, não é remunerado e estão lá pelo fascínio de participar, de alguma forma, da maravilhosa televisão. No talk-show, a emissora costuma celebrar ela própria, vendendo sua imagem através dos artistas da casa. Os mais consagrados do canal aparecem no programa e são entrevistados, oferecendo aos telespectadores a falsa impressão de conhecerem pessoalmente suas estrelas preferidas. Fórmula simples de se fazer dinheiro: pouco custo e muita audiência, o que atrai bons patrocinadores. Bingo! Isso é o programa de auditório. O freak-show vem para arrematar com aberrações, excentricidades, problemas genéticos e até mesmo com a velhice, que poderá ser tratada como algo excepcional.

A entrevista tendenciosa também é uma forma de preencher a programação. Assim, e logo no início do filme, a repórter da TV faz várias perguntas a Amélia, trazendo ao filme elementos da vida da personagem. Essa abordagem é uma das formas exploradas pelo repórter para chegar mais perto da persona que mais interessa ao programa em questão. No filme, a repórter da van da emissora de

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televisão está mais preocupada com aquilo que trará algum tipo de excentricidade ao programa, algo com que as pessoas possam se assustar ou se emocionar, talvez uma história de amor com um final feliz ou algo paranormal. Amélia, no entanto, ingenuamente, tenta falar de sua importância como ex-bailarina do teatro de variedades, fato que em nada chama a atenção dos produtores e diretores do programa.

O filme discute, de um lado, o abalo sócio-cultural e estético que a televisão imprimiu na Itália a partir de 1950, não como um fato isolado, mas como uma continuação de um processo; e, de outro lado, como os espetáculos teatrais: variedades, mambembe, circense, seriam incluídos nessa outra estética.

Reviver a dupla, o casal Amélia Bonetti, e Pippo Botticellla é, de certa forma, trazer a discussão para um âmbito passado-presente: o tempo, as realizações, as mudanças na representação das artes teatrais e a rapidez com que as coisas se modificam na era das mídias eletrônicas. Mais que nostalgia, o filme propõe um pensar no passado / presente e no novo papel do espetáculo dentro do contexto do audiovisual contemporâneo.

Como seria reformulado o espaço e o tempo de cada mídia, das pessoas, dos espetáculos, do público, dos telespectadores? Como os espetáculos achariam, em meio às mídias eletrônicas, uma forma de sobreviver e como estariam sendo transformados? A exemplo da dupla que veio do teatro de variedades, outros personagens do filme também migraram para a TV. No programa está Totò, grande comediante napolitano do cinema italiano que, representando ele mesmo, acompanha a dupla nessa jornada de apresentação.

A dissociação entre os propósitos presentes e passados são enfatizados no filme. Amélia e Pippo tentam se encaixar na estética da televisão e sofrem ao perceber os objetivos do programa. Logo no início da dança, ocorre um blackout, e eles, no escuro, têm um momento de lucidez e resolvem sair discretamente do palco, ao perceberem o quão ridículo poderia ser aquela situação. Entretanto, logo as luzes se acendem e não há mais tempo para desistir; assim, apressadamente e despreparados, começam a dançar. Fred se atrapalha e cai durante a apresentação. Essa queda representa, metaforicamente, a decadência física de Pippo e a

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inadequação dos espetáculos populares no tempo e espaço televisivos. O apresentador do programa pede palmas de incentivo à platéia e, neste momento, o que fora um aclamado número de tip-tap no passado agora é motivo de chacota, vergonha e piedade da platéia. Essa super-exposição pela qual a dupla passou, desvela a falta de cuidado do programa com as questões humanas, pois, na verdade, o que importa é o show e suas atrações. A situação é constrangedora; logo após a dança, ainda meio zonzos, se surpreendem com a rápida entrada do Almirante condecorado na guerra, doente, idoso e esclerosado. Ele, o almirante, é o próximo número a se apresentar. Na saída do palco, Totò os recepciona, consolando-os.

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