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Circunstâncias atenuantes e agravantes

No documento Uma teoria do abuso da História. (páginas 33-37)

Além de justificativas legítimas, alguns tipos de fatores atenuantes podem surgir após a ocorrência do abuso. O primeiro deles é o arrependimento ex- presso daqueles que cometeram abuso, seja implicitamente (quando se arre- pendem e abandonam tentativas de abuso) ou explicitamente (quando, após a ocorrência do abuso, cooperam, confessam, desculpam-se publicamente, e/ ou corrigem o dano infligido). O segundo é uma avaliação da situação em que se encontram os que cometeram o abuso, em particular se a sanção imposta acarretou consequências excessivamente graves para eles. Finalmente, há dois

fatores relativos ao tempo. Restrições ao trabalho, estabelecidas por lei ou de outros modos, podem ser aplicadas quando a exposição do abuso acontece muitos anos ou décadas após os fatos ou quando as sanções são inúteis, caso de autores já mortos.

Três fatores relacionados à responsabilidade podem ter efeitos agravantes. O primeiro, quando aquele que comete o abuso é um historiador profissional. O segundo, quando há alguém manipulando outras pessoas para que cometam abusos. O último, quando há a repetição de irregularidades que conduz a uma série de abusos ou usos irresponsáveis da história.

Sanções

Sanções por abuso devem ser aplicadas de forma sábia e comedida, e de- vem almejar quatro objetivos: forçar ou estimular perpetradores de abuso a mudar suas condutas (se suas identidades forem conhecidas); impedir que outros os imitem; reparar danos causados às vítimas; e encorajar todos os historiadores a tomar medidas preventivas e contribuir para preservar a inte- gridade da historiografia. Os princípios para guiar essa operação são bem co- nhecidos. Sanções não devem causar mais dano que o abuso. Devem conside- rar os motivos, as justificativas e os fatores atenuantes e agravantes. Devem ser proporcionais ao grau de intencionalidade, ao risco de dano e ao dano efeti- vamente infligido. O ônus da reparação deve recair equitativamente entre os vários perpetradores, e os benefícios da reparação devem ser igualmente dis- tribuídos entre as diferentes vítimas. Sanções devem ser também aplicadas a tentativas de abuso, mas devem ser menos rigorosas que aquelas aplicadas aos abusos efetivamente cometidos: tentativas podem ser equiparadas aos abusos somente se for possível demonstrar que a intenção de enganar estava clara- mente presente. Finalmente, as sanções devem ser limitadas a um período e oferecer, se possível, alguma perspectiva após sua aplicação.

Na prática, esses princípios nem sempre são aplicados de forma estrita. Há três tipos de sanções: simbólica, profissional e legal. O primeiro tipo é o mais frequente. Sanções simbólicas são impostas por vítimas ou por terceiros. No primeiro cenário a identidade daqueles que cometeram abuso é apresen- tada a suas vítimas ou a terceiros, mas não ao público. O efeito disso sobre quem cometeu o abuso é imprevisível: sua perda de reputação pode encorajá-lo

tanto a expressar arrependimento quanto a cometer outros abusos de forma mais sutil. As vítimas tanto podem considerar a exposição seletiva frustrante quanto, alternativamente, ver nisso um instrumento para exercer pressão sobre aquele que cometeu o abuso e exigir reparação. O público, ignorando o abuso, poderá ainda sofrer danos por isso. Sanções simbólicas confidenciais, frequen- temente impostas sem um justo e completo exame dos fatos, servem a dois propósitos: satisfação da vítima pela confissão privada, desculpas, ou reparação por parte do perpetrador do abuso, consequentemente sem maculá-lo. Elas muitas vezes ocorrem como um acordo amigável fundamentado na ameaça de exposição. Sanções simbólicas públicas podem satisfazer as vítimas e advertir o público sobre o abuso e quem o cometeu. Tipicamente, elas tomam a forma de uma investigação que culmina na exposição e refutação do abuso em um jornal ou na internet, ou de uma discussão pública com o responsável pelo abuso. Esse cenário não raro é acompanhado pela exigência de retificação e por um pedido de desculpas.

Sanções profissionais são impostas por uma associação de historiadores profissionais ou pela instituição acadêmica à qual o autor do abuso pertence. Elas variam desde a retirada de circulação da publicação abusiva e de uma exigência de retificação em futuros escritos, até reprimendas ou suspensão por períodos curtos ou longos. A punição legal é imposta pela lei ou por um juiz. Consiste no confisco de direitos autorais de cópias que tenham infringido direitos de outro trabalho, mandatos de retenção de publicações, e exigências de retificação na imprensa, em edições futuras de um livro, ou em número posterior do periódico em que o texto problemático tenha sido publicado. Outras medidas judiciais incluem penalidades e indenizações por danos, além de processos criminais e a prisão dos autores dos abusos, seus superiores e cúmplices.

Quase todas as sanções listadas provocam controvérsias entre historiado- res profissionais. Algumas lembram períodos de obscuridade em que historia- dores responsáveis, e não perpetradores de abuso da história, foram obrigados a negar publicamente suas teses ou trabalhos. Mas essas sanções são mais duras que aquelas já listadas. Medidas como a destituição abusiva de graus acadêmi- cos ou credenciais, recusa de promoção, rebaixamento de cargos, demissões, aposentadorias forçadas e listas negras reverberam formas de represália contra historiadores honestos sob regimes ditatoriais. Tudo isso resulta num dilema;

por um lado, ninguém quer que abusos da história ou usos irresponsáveis em larga escala fiquem impunes, especialmente porque a indulgência com “agentes do esquecimento, trituradores de documentos, assassinos da memória, revi- sores de enciclopédias, conspiradores de silêncio” 45 é um convite à repetição;

por outro lado, quase todos os tipos de sanção e quase todo procedimento de julgamento parece reverberar os ecos vergonhosos de injustificadas repressões a historiadores no passado e encontram, desse modo, hesitação ou resistência. Esse dilema é o que eu designo como a cilada dos juízes corretos.

Prevenção

Os abusos podem ser enfrentados preventivamente em pelo menos quatro níveis. Em primeiro lugar a prevenção do abuso é estimulada por meio da formação de um hábito de trabalho cuidadoso e honesto, especialmente no reconhecimento de débitos intelectuais em notas e referências e na distinção clara entre citações e paráfrases.

Um segundo nível é a promoção de um processo de conscientização rea- lizado explicitamente mediante o ensino de questões éticas para historiadores, até mesmo ensinando sobre abusos da história no passado (De Baets, 2009, cap. 6). Ao mesmo tempo, é importante combater a incredulidade em muitos círculos acadêmicos. Há muitos clichês em circulação, como: “Eu não conheço nenhum caso de abuso, portanto sua ocorrência é baixa; se ocorressem, eu saberia; no passado havia mais abuso do que hoje; eles acontecem, mas não aqui; aludir ao abuso mancha a reputação do nosso departamento”. Tais clichês obstruem a vigilância e a prevenção.

O terceiro nível é o das salvaguardas institucionais. A propensão ao abuso diminui quando a liberdade acadêmica e a autonomia institucional são respei- tadas; a seleção, o acesso e a divulgação de informação são bem regulados; um método crítico e objetivo é ensinado; estão estabelecidos um clima de revisão por pares imparcial e livre e o debate pluralista sobre o passado.

O quarto nível é o estabelecimento de padrões, pelo desenvolvimento de normas constituintes de códigos de ética profissional. Tais códigos devem cla- ramente defender que todos os historiadores têm a responsabilidade de se opor ao abuso da história. Em nível global, o Comitê Internacional de Ciências Históricas (International Committee of Historical Sciences) é a organização

tutelar da profissão. Em 1926, quando foi “criado para promover as ciências históricas mediante a cooperação internacional”, o Comitê esboçou uma Cons- tituição, cujo Artigo 1o expressava sua razão de ser.46 Nesse artigo acrescentou-

-se uma frase sobre direitos e responsabilidades dos historiadores, em 1992. E em 2005 a Assembleia Geral do Comitê decidiu por unanimidade alterar mais uma vez o Artigo 1o, complementando-o com a cláusula de que “se opõe ao

uso abusivo da história”. A razão imediata para a inserção dessa cláusula foi a situação precária da escrita da história sob o governo do Partido Bharatiya Janata na Índia, entre 1998 e 2004.47 A mudança foi extremamente importante,

na medida em que finalmente um organismo de historiadores universalmente reconhecido compreendeu o abuso da história, a despeito da variedade de si- tuações que ele engloba, como um conceito por si próprio.48

No documento Uma teoria do abuso da História. (páginas 33-37)

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