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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE OU ―NÃO COMERÁS O TEU PRÓXIMO‖

Àqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não sejam superiores em força física, aqueles são, por natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. E é justo e útil que sejam servos, e vemos isso sancionado pela própria lei divina. Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. (SEPULVEDA, apud: LAPLANTINE,2003, p. 26)

A palavra civilização etimologicamente vem do latim. O substantivo civitas estava relacionado à condição de cidadão, de morador da cidade, ao conjunto de moradores de uma cidade como também a sede de um governo. Em um dos seus desdobramentos o termo ele também será usado para designar a alma nobre e elevada. Ainda encontramos as palavras civilis que está relacionada aos direitos do cidadão. Os termos estão desde a antiguidade clássica servindo de indício para destacar quem pertence, ou que tem direitos dentro de um grupo.

É preciso lembrar que para a Roma Antiga nem todos os habitantes da cidade eram cidadãos, automaticamente a palavra não servia apenas para destacar quem estava ou não dentro dos territórios da cidade, mas quem deveria ser excluído da participação de certos eventos da vida pública e do exercício político. Já o termo civilização, produto do ato de civilizar, de tornar indivíduos parte de um grupo com condutas morais e éticas peculiares e

sob uma forma única de governo é algo consideravelmente recente no universo linguístico europeu.

No século XVI, civilizado já é utilizado. Lê-se em Sepulveda em 1550 que para a colonização, para o domínio extensivo sobre o Novo Mundo ser ou não ser civilizado era a questão. Mediante as respostas dadas era possível concretizar, avançar na colonização sem outros questionamentos morais, éticos e religiosos. Rousseau utiliza a palavra civil como elemento de repartição da sociedade, de diferenciação entre os indivíduos, de dominação e de exploração seguindo o gradiente de significação que até então não conhecia usos ligados a inclusão e sim de uma diferenciação excludente. A propriedade é para ele o termo mais próximo da condição mundo civilizado.

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‗Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!‘‖. (ROUSSEAU, 1997. p. 87.)

Saindo da reflexão etimológica e se atendo as implicações de uso, cabe aqui algumas questões para prosseguir com as análises: O que vem a ser a civilização pretensa pelo romantismo brasileiro no século XIX? O que caracteriza uma sociedade civilizada? As mesmas estão sobre uma relação de pertencimento, ou não, ou a civilidade é medida em termos objetivos? Que papel assume a figura do índio frente a referencia de civilidade?

É preciso notar que ideia europeia de civilização faz parte de um conjunto de discursos que circularam pela Europa atrelados ao desenvolvimento da ideia de cultura e da formação dos estados nacionais. ―Ela se torna motivo de exaltação para todos aqueles que respondem ao seu apelo; ou, inversamente, fundamenta uma condenação: tudo que não é a civilização tudo que lhe resiste, tudo que a ameaça, fará figura de monstro ou de mal absoluto.‖ (STAROBINSKI, 2001, p. 33). E é no advento da Era Moderna que seu uso será cada vez mais utilizado.

Segundo Nobert Elias (2001), a civilização resultou do entrelace de vários acontecimentos que produziram em dado momento esboços de civilidade. Antes a ideia de civilização partia de um conjunto de regras de etiqueta para diferenciar os países europeus por

seu grau de requinte, a palavra civilização vai apreender sentidos bem mais complexos e ser utilizada como recurso de legitimação da dominação dos povos que habitavam os territórios recém-conquistados com as grandes navegações.

Porém cabe ressaltar que o impacto produzido pelo contato do homem europeu e as comunidades ameríndias tencionou processos de significação ainda hoje intermináveis. Se as identidades, como demonstra Said (1990), sofreram a ação efetiva da polarização entre oriente e ocidente pelo conjunto de discurso que cristalizavam a alteridade, pode-se concluir que de certa forma, esta polarização afeta os países da América Latina pelo exotismo, pelo horror, pela atração que o olhar europeu se debruçou sobre estes povos. E que por substituição pode- se dizer que um dia a América também foi oriente. Deslumbrados ou horrorizados as apreensões do choque das grandes navegações dispuseram fronteiras tênues por onde os dois mundos passaram a transitar.

Quem era mesmo os bárbaros? Os índios com seus rituais antropofágicos que matavam de forma ritualística e cheia de pompa aqueles que trariam a difusão de qualidades a sua gente? O sacrificado era introjetado na memória e no corpo dos que faziam parte do comensal. Ou seriam os europeus, que ao dizimar nações indígenas inteiras rejeitava qualquer contribuição para suas culturas, ou mesmo a participação no mundo que era erigido sob os corpos dos conquistados? Ao que parece, a civilização necessitava de circunstâncias e propriedades não possuídas pelos povos ameríndios. O discurso que se manteve hegemônico e que a civilidade era incoerente a estes povos. O que dizer das nações e dos países que nasceram deste choque entre os dois mundos?

Diz que quer ser christão e não comer carne humana, nem ter mais de uma mulher e outras cousas; sómente que há de ir a guerra, e os que captivar, vendel-os e servir-se delles, porque estes desta terra comem-se uns aos outros, digo os contrarios. E‘ gente que nenhum conhecimento tem de Deus (NÓBREGA, 1988, p.72)11.

De certo o canibalismo foi o principal argumento para a conquista e extermínio dos povos ameríndios. Nóbrega (1988) ressalta o costume como propriedade que anula qualquer tipo de conversão. Bestas tropicais que fim teriam os indígenas senão a expurgação de suas vidas? Seres sem alma passaram pelos ditames da violência colonial na figura de colonizadores que em matéria de civilidade deixaram toda fé e amor ao próximo sucumbir à espada em riste na empreitada contra as tribos indígenas que habitavam todo o continente

americano. Alguns que se salvaram ou deixaram o litoral e foram em busca do interior ou foram cativados com benevolência a ponto de figurarem como sombras na sociedade.

O processo civilizador foi ao longo do tempo estruturando um ethos europeu a partir de símbolos e códigos de conduta moral partilhados pelos indivíduos que faziam parte de um gruo social. (Elias, 1994, p. 48). Daí o que contribuía para o reconhecimento e a diferenciação entre países do Velho Mundo vem constituir uma das categorias principais de reconhecimento de uma alteridade e da necessidade de interferência dos civilizados sobre os bárbaros:

O que significa dizer que o serviço ou a defesa da civilização poderão, eventualmente, legitimar o recurso à violência. O anticivilizado, o bárbaro devem ser postos fora de condição de prejudicar, se não podem ser educados ou com vertidos. (STAROBINSKI, 2001, p. 33).

É pois desta violência que se processou e se processam vários dispositivos que legitimam a incapacidade da população, ou de grande parte dela, de gerir seus destinos de usar de seu livre arbítrio , de promover suas necessidades. São estes discurso que fendem abismos que mesmo ficcionais distanciam as ex-colônias de alto grau de civilidade só possível pela assimilação da imagem do colonizador como fez os Estados Unidos ao dominar a aparição da imagem do negro e do índio desde os registros escritos até a atuação em suas aventuras da conquista do Oeste.