A problemática da efetividade dos direitos sociais não obstante as questões anteriormente levantadas possui a barreira de doutrinas retrógradas acerca da competência do Estado para efetuar prestações positivas, sendo, dentre estas, o argumento da Cláusula da Reserva do Possível a principal oposição à pretensa eficácia social.
É fato notório que o Estado não poderia atender as demandas de todos os indivíduos sem que houvesse um limite em suas possibilidades orçamentárias. Segundo Sarlet, passou-se a sustentar que:
a colocação dos direitos sociais a prestações sob o que se denominou de uma “reserva do possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o poder de disposição por parte do destinatário da norma. (SARLET, 2009, p. 265)
Assim, estaria a efetividade intrinsecamente relacionada aos recursos disponíveis, os quais se tornaram verdadeiros limites fáticos, além de necessitar o estado de uma capacidade de dispor sobre esses recursos (SARLET, 2009).
Dessa forma, a Cláusula da Reserva do Possível, torna-se uma defesa de cunho processual, em que o Estado alega insuficiência de recursos ou incapacidade para dispor dos mesmos, abrindo espaço para uma grande negativa infundada das prestações devidas.
Tal doutrina possui embasamento internacional, porém o uso dela no Brasil se faz indiscriminadamente como forma de burlar a garantia aos Direitos Sociais, conforme preleciona Andreas Krell acerca da má adaptação interpretativa brasileira:
Essa teoria, na verdade, representa uma adaptação de um tópos da jurisprudência constitucional alemã (Der Vorbehalt des Moglichen), que entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos. Ao mesmo tempo, a decisão sobre a disponibilidade dos mesmos estaria localizada no campo discricionário das decisões
governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos.(KRELL, 2002, p. 52)
Vale salientar também a relação entre a escassez relativa de recursos e as escolhas de gerência dos investimentos em determinada área, consoante Ana Paula de Barcellos, de modo que áreas serão preteridas à outras conforme juízo do gestor público (BARCELLOS, 2008). A referida autora ainda aduz que:
A questão é extremamente complexa, pois exige o estabelecimento de prioridades e de critérios de escolha caso a caso, que poderão variar no tempo e no espaço, de acordo com as necessidades sociais mais prementes: porque aplicar os recursos na despoluição da Baía de Guanabara e não na pesquisa científica sobre doenças tropicais, ou na expansão na rede de ensino médio? Além de decidir em que gastar, é preciso saber também quanto deverá ser investido em cada uma das áreas escolhidas, já que as alternativas envolvem não apenas o binômio investir/não investir, mas também investir menos ou mais, de modo a tornar viável o atendimento de um maior número de necessidades. (BARCELOS, 2008, p. 265)
Desse modo, deve-se compreender que a reserva do possível não deverá ser alegada quando houver apenas uma maquiagem de escassez, decorrente da ostensiva inobservância das prioridades constitucionais, não devendo os direitos sociais ficar à margem de uma questão de cunho político.
Com a precariedade do sistema público de saúde mental, assim como a insuficiência no fornecimento de medicamentos têm os indivíduos buscado com êxito a tutela desses direitos através de provimentos judiciais liminares, fenômeno que veio a ser conhecido como a Judicialização da Saúde.
Essa Judicialização, porém esbarra amplamente na cláusula de reserva do possível, não representando a solução para a problemática da efetivação dos direitos sociais ligados à saúde de modo geral.
Ainda dentro da análise na cláusula em comento, saliente-se que é possível encontrar na jurisprudência a existência de responsabilidade solidária na Saúde, visto serem os tratamentos e medicamentos um custo a ser atribuído ao Estado e à União, segundo divisão administrativa do SUS – Sistema Único de Saúde, porém o ideal seria a criação de um fundo de compensação financeira de modo que o ente público que suportou o ônus de atribuição a outro viesse posteriormente a ser ressarcido por quem foi indevidamente beneficiado em sua omissão.
Desse modo, compreende-se a referida cláusula como um instrumento legítimo trazido pela doutrina e adotado pela jurisprudência internacional, porém com
má adaptação à realidade pátria, visto representar não a impossibilidade real e justificada de não prestação material quando houver escassez de recursos, mas torna-se frequentemente um meio de fugir das prioridades constitucionais, por meio de decisões políticas não razoáveis e que maculam a efetividade das normas sociais relativas à saúde mental.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica claro que a problemática da saúde mental no Brasil não decorre apenas de uma omissão legislativa, visto ter o movimento antimanicomial conseguido alavancar a vigente Lei da Reforma Psiquiátrica. Apesar de esta ter sido um relevante avanço nas prerrogativas que garantem o respeito à dignidade e cidadania do portador de transtorno mental, ainda assim apresenta lacunas a serem preenchidas.
Além disso, restou visível que sem embargos da questão legislativa, um grande entrave aos objetivos da referida lei é a questão da efetividade, que está englobada pela problemática dos direitos sociais de maneira ampla, pois estes apresentam em todo o mundo e na história da consolidação das dimensões de direitos fundamentais, uma grave oposição, pautada muitas vezes em doutrinas que se repetem em lugares diversos, a fim de eximir o Estado de seu dever inerente de garantir as prestações positivas que lhe são competentes.
Ainda assim, é primordial salientar a tentativa pátria de possibilitar essa eficácia social através de mecanismos garantidores na lei 10.206/01, porém, estes, além de serem insuficientes, esbarram na ausência de políticas públicas eficientes para a promoção da finalidade normativa.
Dessa forma, está o cerne do problema intrinsecamente ligado às demandas do Executivo, denotando um caráter de viés político, a ser assegurada através, dentre outros meios, da participação social democrática na construção de políticas públicas que atendam os anseios para o qual se destinam, bem como da atuação do Ministério Público nos interesses individuais e coletivos relacionados aos portadores de transtorno mental e à promoção da saúde.
Assim, podemos auferir que, buscar à garantia da dignidade do doente mental, significa bem mais que um gesto de altruísmo ou uma “carga” social a ser aceita pelo Estado, mas sim, compreender que o modo como uma sociedade trata os seus hipossuficientes, os doentes mentais no estudo em comento, revela-se como um grande
balizador de suas instituições democráticas, do grau de desenvolvimento dos direitos fundamentais e principalmente, do grau de elevação espiritual dos indivíduos que a compõem.
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