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Capítulo 2. TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO INSTITUCIONAL:

2.1 Clínica psicanalítica no contexto institucional

A psicanálise no contexto institucional brasileiro encontra em sua prática muitos desafios. No âmbito da saúde mental, terreno do presente estudo, vale destacar que seu caráter plural e heterogêneo pode trazer dificuldades de inserção e, por vezes, excede aspectos peculiares da psicanálise. Todavia, podemos pensar e indagar se essa é realmente uma dificuldade específica da psicanálise ou, simplesmente, uma característica do campo da saúde mental. Afinal, parece incidir em todas as disciplinas de conhecimento que, ao se depararem com um outro contexto, realizam o esforço em estabelecer um compromisso entre suas especificidades e as diretrizes e princípios da atenção psicossocial.

Diante dessa indagação, discutiremos as peculiaridades do trabalho da clínica psicanalítica nas instituições de saúde mental brasileiras, advindas do paradigma reformista,

conforme as perspectivas dos trabalhos pesquisados. Para realização desse empreendimento nos apoiaremos, principalmente, nas produções acadêmicas dos psicanalistas, resultados de suas experiências nesse contexto, e nos textos de Freud e Lacan que servem de apoio para tais reflexões.

Monteiro e Queiroz (2006), ao tratar da prática psicanalítica em instituição de saúde mental, delineiam que essa inserção é possível e que o trabalho analítico pode ser estendido/ampliado a outros contextos, desde que não se percam de vista os seus fundamentos. Trata-se de uma extensão do campo de atuação da psicanálise, preservando as indicações de Freud e os ensinamentos de Jaques Lacan. Desse modo, os autores destacam que o psicanalista pode e deve ser convocado para operar em outros espaços institucionais sem que, para isso, tenha que se desviar da ética psicanalítica. Ainda a esse respeito, os autores elencam que o trabalho do analista nesses espaços deve ser pautado por uma prática que possibilite trazer à cena institucional o que dela está excluído, dar espaço para que emerja o sujeito do desejo, que muitas vezes é negado ou fica à margemda terapêutica na assistência em saúde mental.

Nessa perspectiva, elegemos como condição príncipe da prática analítica na instituição um analista cúmplice com a imprevisibilidade do real, deixando-se guiar pela via da contingência. Assim, é preciso estar atento ao inusitado, ao que não é possível de ser coletivizado pela equipe ou assimilado pelo sujeito. Se o analista é um a mais no contexto institucional, é, por outro lado, aquele que suporta o intratável, o resto não eliminável da hiância que constitui a divisão inaugural do sujeito (MONTEIRO; QUEIROZ, 2006, p. 118).

Em seu texto Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, Freud (1919/1996a) já anuncia uma inserção da terapia analítica a outros contextos, como as populações menos favorecidas.

Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres [...] Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos a isso. Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições [...] No entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa (FREUD, 1919/1996a, pp. 91-92).

No texto Explicações, Aplicações e Orientações, Freud (1933/1996) faz alguns esclarecimentos sobre aplicações da psicanálise. Denuncia um grande número de pesquisadores que estudam a psicanálise com a finalidade, única, de aplicá-la em seus setores especializados, para assumir o estatuto de pioneiro, sem nenhum cuidado em preservar suas recomendações e fundamentos. Nesse ponto ele se mostra cético, embora também relata sobre possibilidades de futuros trabalhos da nova geração de analistas com outras áreas do conhecimento, destacando o trabalho de Anna Freud no campo da educação. “[...] para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da análise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração” (p.88).

Embora Freud (1919/1996a) já anunciasse a possibilidade de inserção da psicanálise a outros contextos, foi com Jaques Lacan e seu retorno a Freud que a prática ganhou força e substancialidade. No texto Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan (1967/2003) trata da formação do analista e sobre aspectos que conferem a determinada prática o teor psicanalítico. É nesse contexto que ele se refere à psicanálise em extensão e intensão: “a psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática [...]” (LACAN, 1967/2003, p. 251). Desse modo, a prática analítica em extensão é sustentada pela psicanálise em intensão, ou seja, a análise didática e o desejo do analista; assim, compreende-se que é somente com este elo10 que pode existir, de forma efetiva, a prática analítica em instituições e na cultura.

Machado e Chatelard (2012) argumentam que Lacan desloca a questão crucial para o âmbito do desejo do analista e de sua implicação ao específico da psicanálise. Assim, o analista passa a operar de um lugar que não é dependente da configuração do espaço físico, mas de um lugar enquanto função, de um discurso. Essa discussão se deu, principalmente, pelas críticas que Lacan direcionou às rígidas regras estabelecidas pela IPA e pela concepção de alguns analistas que argumentavam que existiam condições necessárias para uma legitimidade e bom andamento da prática analítica. Ainda segundo esses autores, Lacan, a partir de então, “retira a psicanálise do âmbito da regra para situá-la na esfera da ética” (p.457). Ele rompe com o modelo padronizado, caracterizado, principalmente pelo setting terapêutico, e cria um novo modo de conceber a prática

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da psicanálise, no qual o psicanalista deve operar a partir de um modo particular, ou seja, pautado no discurso analítico.

Ainda a respeito do setting analítico, Elia (2000), citado nas produções11, ao tratar da extensão social da psicanálise, realiza duras críticas à concepção dita por ele como imaginária, de que há pré-requisitos para que uma análise possa ocorrer. Em seu texto, o autor problematiza o lugar essencial que o consultório particular teve na prática analítica durante o seu primeiro século de existência (seu texto é datado de 2000). Seu argumento deu-se na direção de que a psicanálise, um saber que mudou as formas de pensar e tratar o sujeito moderno, não pode se restringir a critérios e padrões engessados. Em sua crítica, vai ainda mais fundo, destacando que essa ideia de essencialidade do setting é responsável pelo caráter elitista da psicanálise, compactuando com a noção de que essa é restrita a uma parcela da população mais favorecida que tem acesso ao consultório particular. Ou seja, chegou-se à crença, errônea, de que os princípios clínicos e éticos da psicanálise requerem certos critérios socioeconômicos, e até mesmo intelectuais, para que o trabalho analítico ocorra.

Foi com Lacan e seu conceito de Dispositivo Analítico que esta prática padronizada foi questionada e superada. Como já mencionado anteriormente, ele concebe um novo lugar ao trabalho analítico, inserindo-o em uma lógica estrutural, da discursividade, retirando, assim, o caráter essencial do espaço físico representado pelo consultório particular.

O resgate da problemática sobre o setting analítico se torna importante, pois, por muito tempo, foi motivo de muitas discussões internas na psicanálise e, certamente, uma das principais razões do ceticismo e da resistência, por parte de alguns analistas, da inserção e do avanço da psicanálise a outros espaços da sociedade. A partir das concepções aqui apresentadas, podemos inferir que a psicanálise não restringe sua prática ao consultório particular e a pré-requisitos bastante limitados, o que acarretaria dizer que estaria fora de seu âmbito de alcance quadros psicopatológicos que não se enquadrassem nessa modalidade de clínica do consultório particular.

Ainda nessa linha de pensamento, Lacan (1967-1968/2006) pontua que a função do analista “não é algo natural, de que ela não existe por si só no que tange a atribuir-lhe seu status,

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Luciano da Fonseca Elia é membro-consultor do Fórum Interinstitucional de Saúde Mental Infanto-juvenil da Assessoria de Saúde Mental da secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro. É Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, desde 1999, realiza pesquisa com ênfase em: clínica psicanalítica nas instituições públicas de saúde mental, tendo vários trabalhos publicados sobre a temática. Fonte, currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1400543114694350.

seus hábitos, suas referências e, justamente, seu lugar no mundo” (LACAN, 1967-1968/2006, p.13). Desse modo, entendemos que a prática da psicanálise não é algo fixo e preestabelecido e que, embora tenha suas especificidades, não se deve tratá-la como uma prática engessada em padronizações, assim como o próprio Freud deixou claro durante toda sua vasta obra. A exemplo,

em seu texto “O início do tratamento”, Freud (1913/2010) compara o tratamento analítico a um

jogo de xadrez e suas infinitas variedades de jogada, pontuando sobre “a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes resistem à mecanização da técnica” (FREUD, 1913/2010, p.125). Essas pontuações acerca da prática analítica são dignas de nota, na medida em que tratamos da inserção de analistas, a partir da década de 90, aqui no Brasil, em instituições de saúde dentro da perspectiva das políticas públicas. Estes psicanalistas foram chamados a dialogar com os novos dispositivos de saúde mental advindos da Reforma Psiquiátrica. Daí a importância dessa concepção, pois o analista deve sempre se pautar no “fazer permanente” junto à instituição e seus usuários.

Lima e Paravidini (2011) desenvolvem um artigo sobre a possibilidade de transmissão da ética psicanalítica ao contexto institucional. Apontam que tal trabalho só é possível a partir do momento em que as intervenções estejam pautadas no campo da ética e os agentes de cuidado passem a atuar a partir da condição da castração, da incompletude, da falta, de não todo saber. Isso nos permite a reflexão, empreendida pela ética analítica, de que existem fenômenos psíquicos (incluso o de caráter social) que fogem do alcance do ideal do bem supremo; assim, não existe o fechamento da Gestalt. Desse modo, torna-se importante uma problematização nesses espaços de que esta completude almejada, pelas políticas de saúde, esvaziam-se ao se deparar com o impossível, com o inesperado, com o real em jogo no tratamento, com o não-lógico. Portanto, segundo os autores, todas as intervenções empreendidas nesses espaços, ancorados pelo discurso analítico, devem “operar como o que atualiza a castração do Outro interventor, descompletando o saber médico-psicológico (universitário)” (p. 425).

Em seus textos, Freud (1912/1913/1914/1915: 2010) já dava margem a esta formalização ética da prática em psicanálise. Em seus artigos sobre técnica, ele lança mão (e isso deixa claro) de recomendações àqueles que exercem psicanálise e, não regras. Sua preocupação pautava-se na construção de uma técnica singular de investigação/tratamento das manifestações psíquicas que

se contrapunha, de forma lúcida, a qualquer tipo de mecanização da prática. “A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica” (FREUD, 1913/1996, p. 191).

Os autores Lima e Paravidin propõem ainda como modelo de transmissão da ética analítica a clínica do cartel, criado por Lacan, e – tendo na figura do mais um – o agente que, a partir de seu desejo, ajudará no andamento do grupo e provocará a elaboração de um trabalho. Aqui, em nosso contexto, podemos entendê-lo como uma peça importante no trabalho em equipe. Sua presença ou mesmo ausência implicará em fazer circular o saber, uma tentativa de quebra na lógica de um discurso de mestria e do saber absoluto comum nos espaços de saúde ancorados na hierarquia de poder. O mais um, portanto, teria função de transmitir a dimensão da falta e questionar essa concepção de saber todo, saber completo que se sustenta numa tecnicização da prática dos profissionais.

A partir do esboçado, podemos afirmar que o diálogo psicanálise-instituição é uma prática pensada desde Freud (1919/1996a), quando este apontou, no congresso realizado na cidade de Budapeste, possibilidades futuras da inserção de sua teoria-praxis a outros espaços sociais. Nosso trabalho, aqui proposto, é assinalar sobre as formulações teóricas dos analistas que apostaram e apostam nesse diálogo nos últimos quinze anos, 2000-2014, trazendo, assim, importantes apontamentos tanto às instituições públicas de saúde quanto à própria psicanálise.