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4. O EROTISMO EM CONTOS DE CLARICE LISPECTOR E DE LYGIA

4.1 Clarice Lispector

As narrativas analisadas neste estudo foram “Felicidade Clandestina” e “As Águas do Mundo”, ambas publicadas na coletânea Felicidade Clandestina (1998a). Os dois contos mencionados manifestam significativas correspondências em relação à estrutura narrativa e ao teor que permeia os textos, conjuntura que se esclarece não exclusivamente pelo fato de os contos terem sido escritos pela mesma autora, mas também devido à circunstância de os dois textos estarem agregados em uma mesma antologia.

Nessa coletânea, conforme já mencionado anteriormente, as narrativas, devido ao estilo segmentário dos textos, rompem as fronteiras entre os gêneros e são classificadas ora em crônicas, ora em contos. Segundo Zilberman (1998), além desse estilo, o fato de as narrativas desestruturarem o vínculo entre autor (soberano) e leitor (receptor passivo) faz com que essas obras sejam consideradas como um instrumento de transgressão.

Em relação às vozes narrativas que anunciam os textos analisados, podemos observar que, enquanto o conto “Felicidade Clandestina”, por meio da memória, é relatado em primeira pessoa, por uma protagonista criança, a obra “As Águas do Mundo” apresenta um narrador heterodiegético e onisciente, embora em um determinado momento da obra surja uma voz que se apresenta em discurso indireto livre, conforme verificamos a seguir: “Não está caminhando sobre as águas - ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas - mas ninguém lhe tira

isso: caminhar dentro das águas.” (LISPECTOR, 1998a, p. 92, grifo nosso).

Outra similitude entre as narrativas relaciona-se ao fato de que, em ambas, foram eleitas mulheres para protagonizar as histórias, conquanto em fases diferentes: em “Felicidade Clandestina”, a personagem principal é, pois, uma criança; em “As Águas do Mundo”, a protagonista é uma mulher em fase adulta. Essa escolha quanto às protagonistas não pode ser desprezada.

Sem olvidar dos escassos escritos que a autora redigiu acerca de protagonistas masculinos, Fitz (1984) enfatiza a função primordial do desejo feminino e da sexualidade na organização da linguagem composta pela escritora e, por conseguinte, na apresentação das personagens e da identidade dessas. Além desses intuitos, por intermédio da linguagem e das ações das personagens, a literatura pode colaborar como sinalizadora da tentativa da mulher pela igualdade de gêneros.

Ademais, nas obras mencionadas, as protagonistas são anônimas, simbolizando um grupo mais amplo de mulheres que, a partir de uma experiência com o erótico, passam por processos de autoconhecimento e de emancipação.

A protagonista em “As águas do mundo” é uma mulher ininteligível, assim como o mar. Todavia, diferentemente desse, a mulher está sozinha e incompleta: “Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização.” (LISPECTOR, 1998a, p. 91). Essa personagem manifesta, ao longo da narrativa, uma profunda inquietação, vivenciando uma experiência com o desconhecido, que está presente exteriormente e no íntimo da personagem. Tais sentimentos também são expressos pela protagonista de “Felicidade Clandestina”, que anseia a busca do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, para atingir uma plenitude. Dessa forma,

Essa busca psíquica nos alude a Bataille (1987, p. 10), que afirma ser a procura erótica diferente da atividade puramente sexual por ser “uma procura psicológica independente do fim natural encontrado na reprodução”.

Tal procura psicológica, permeada por erotismo, é concretizada pela epifania, presente nas duas narrativas analisadas. Nos dois contos, verificamos uma temática que, a princípio, giraria em torno de episódios banais, mas que, no decurso do enredo, provoca nas personagens reflexões no tocante à existência.

É interessante notarmos também que, nas duas obras, o corpo constitui elemento de relevância para a concretização do enredo e para a fusão erótica das protagonistas com o objeto/ser de desejo: a união da garota com o livro e da mulher com o mar. É através do corpo que as personagens têm a oportunidade de passar por experiências sensíveis e de autoconhecimento.

Em “As Águas do Mundo”, percebemos que está presente, inclusive, o que Elódia Xavier (2007) designa de “corpo liberado”, isto é, fluido, liberto de esquemas predeterminados, repressores e coercitivos. No princípio da narrativa, o corpo da protagonista, corpo de mulher, corpo da escassez, portava-se com sofreguidão. Esse corpo, depois do contato profundo com o mar e com o erótico, em placidez, já não é mais vazio e exíguo; ela “Agora está toda igual a si mesma.” (LISPECTOR, 1998a, p. 91). O erotismo possibilitou à personagem libertação de sua carência enquanto mulher e enquanto ser humano e coadjuvou no seu processo de formação de identidade e de autoconhecimento. A protagonista “Agora sabe o que quer” (Idem, p. 92).

O contato da menina com o objeto de desejo, o livro, no conto “Felicidade Clandestina”, suscita um erotismo acentuado na narrativa, expresso por meio da linguagem, relevante para a representação do desejo. Processo semelhante ocorre em “As Águas do Mundo”, após a protagonista se entregar ao banho de mar. São utilizados - de acordo com a análise realizada no segundo capítulo deste estudo -, nos dois contos, diversos vocábulos relacionados ao erótico, ao corpo e à sexualidade.

A fusão das personagens com o objeto ou com o ser de desejo também nos remete a Bataille (1987, p. 27, grifo do autor): “O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde à interioridade do desejo.”. O desejo das protagonistas em relação a algo está vinculado à recusa do fechamento do ser em si

mesmo. Essa recusa leva o indivíduo a se despertar para o erotismo por meio de uma prática que, embora íntima e interior, possui como alicerce a busca do outro como modo de instalar uma nova forma de inserção no mundo.

Percebemos que existe, por parte das personagens, uma vontade de prorrogação no que se refere ao deleite obtido após essa busca. Em “As águas do Mundo”, a mulher, sem ansiedade, continua o mergulho e usufrui dele, conforme constatamos em: “Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão, pois não precisa mais.” (LISPECTOR, 1998a, p. 92, grifo nosso). No conto “Felicidade Clandestina”, essa prorrogação é elevada ao grau máximo, nos momentos em que a garota finge não possuir o livro desejado, no intuito de se deliciar com o êxito.

No conto “Felicidade Clandestina” surge - de acordo com o já mencionado - a representação da felicidade e de contato com o erótico como situações ilegítimas e furtivas, expressas principalmente no momento em que o livro se configura em amante. Essa ilicitude ocorre também no conto “As Águas do Mundo”, após o encontro da mulher com o mar, união vista como um risco: “E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.” (Idem, grifos nossos).

Ocorre, em “Felicidade Clandestina” - conforme já analisado -, um processo de erotização infantil, já que o contato com o erótico provoca transformações na protagonista, que, de criança, passa a ser representada como uma “rainha delicada”, uma “mulher com o seu amante” (Ibidem, p. 11). Já em “As Águas do Mundo”, o erotismo acarreta à personagem um processo de autoconhecimento e de busca de identidade. Entretanto, observamos que, em ambas as narrativas, após a proximidade da menina com o livro e da mulher com o mar, ocorre um processo de transcendência das protagonistas em relação a si mesmas, no sentido de suplantar a descontinuidade da essência humana e de conferir completude às personagens.

Observamos, portanto, que o erotismo integra as duas narrativas clariceanas e revela características do universo da mulher e a maneira pela qual se configura a sexualidade feminina. Ademais, o processo de busca da identidade feminina, nessas obras, passa necessariamente pelos caminhos do erótico.