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O livro é constantemente marcado pela presença do conflito eu X mundo. As contradições permeiam a obra: o eu poético ora aparece recluso, fechado em si mesmo, ora se desnuda, aparece com ares mundanos. O fusionismo, característica barroca, se mostra desde o título: a tentativa de união entre claro e escuro, o encontro e o desencontro, a aceitação e a negação. Enigma: o incompreensível, de difícil explicação, o mistério. Estamos, assim, diante de um eu lírico de sentimentos indecifráveis, obscuros. Claro: ausência de mistério, clareza. Ou seja, a negação do enigma. Desse modo, tem-se um eu que procura solucionar os mistérios do mundo, resolvê-los, pois entende assim a função do poeta. No entanto, após a leitura da obra, percebe-se que o enigma permanece sem resolução. Em A Máquina do Mundo, pertencente à última parte do livro, o poeta recusa as respostas propostas, levando consigo as respostas ausentes.

A epígrafe: LÉS ÉVÉNEMENTS M’ENNUIENT “Os acontecimentos me entediam”: a frase, tomada de empréstimo a Paul Valéry, poeta simbolista, encontra-se como epígrafe do livro de poemas Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1951. Já aqui a postura desencantada de um eu lírico que precisa enfrentar a vida sem falseamentos, sem ilusões. O sujeito quer escancarar para si e para o mundo tudo o que a vida traz, buscando a essência das coisas. “Os acontecimentos me entediam”: é a resposta do sujeito cansado do aparente, do meramente visível. É a tentativa drummondiana de romper com a poesia engajada. Ao usar tal frase, o poeta confessa seu asco perante a história, já que essa é feita de acontecimentos. Porém, pode-se questionar se esse desgosto frente a vida é contra a História ou a própria história do poeta mineiro. Se é um desabafo para penetrar no mais íntimo do seu ser, para se proteger do caos mundano ou para encontrar uma esperança para a vida.

O leitor atento tem que perceber, no entanto, que Claro enigma também abriga uma série de poemas que parece desmentir a epígrafe tomada de Valéry. Trata-se, no caso, daquela série reunida numa seção nomeada “Selo de Minas”, que, com os versos de “Morte das casas de Ouro Preto”, “Museu da Inconfidência” ou “Os bens e o sangue”, registraram, a partir de diversos acontecimentos, algo muito específico: a percepção de feitos que, na história de Minas, antes de entediarem, terminaram provocando o espanto diante da frágil identidade entre o presente e o passado.

Recursos literários e de linguagem Formas clássicas: Uso do soneto; tercetos e versos dísticos; Intertextualidade com poetas clássicos e mitos greco-romanos; Influência da poesia classicista e simbolista.

Recursos modernistas: Uso do verso livre; Períodos longos e prosaicos; Metapoesia; metalinguagem; Influência do Surrealismo (universo onírico, imaginativo).

Análise das partes O livro está organizado em seis partes, nas quais vê-se reflexões sobre o “estar no mundo”. São ao todo 42 poemas.

Parte I:

Entre Lobo e Cão: É a mais extensa parte do livro. Lobo, animal predador, avesso ao convívio social, tal como o gauche de Drummond. Cão, o animal doméstico, amigo do homem. Aqui há a oscilação entre os dois extremos: a solidão e a companhia. Os substantivos comuns escritos com iniciais maiúsculas tornam-se próprios fazendo supor também uma relação com as constelações, inscritas na bandeira nacional, representativas dos estados nacionais.

1- Dissolução: a imagem da noite, a decomposição, a desagregação. Poema de tom crepuscular, no qual o eu lírico aceita passivamente a escuridão, a ação demolidora do tempo. Esse poema insere o leitor na temática filosófica, existencial que permanecerá ao longo da obra.

2- Remissão: Já no primeiro verso a presença da metalinguagem “Tua memória, pasto de poesia”. Poema em tom de luto, pessimismo. É a memória o único alimento da poesia, essa que aparece às vezes como inútil. O poeta perdoa-se, é a sua remissão o ato de escrever, nada mais.

3- A ingaia ciência: negação do conhecimento e inutilidade do mesmo. A madureza/conhecimento é um presente assustador, pois tira o sabor da vida, a ingenuidade, a inocência, a surpresa de viver. Poema de tom melancólico, desiludido.

4- Legado: um dos mais importantes poemas dessa parte. É a reflexão do eu no mundo. Que fatos merecem ser lembrados no porvir? Eis o questionamento desse poema. No poema “Legado”, pode-se perceber com evidência o que se quer dizer com “contribuição para a construção ou o reforço de uma identidade coletiva”, ou a presença de um elemento novo acrescentado ao edifício da chamada “mineiridade”. Nesse poema o poeta faz alusão a outro, o famoso “No meio do caminho” (Alguma poesia, 1930), escândalo da época e que, segundo Drummond, dividiu as pessoas em duas categorias mentais, ficando, nas palavras do Poeta, como um legado seu. No fecho de “Legado”, o Poeta, aludindo no último verso ao polêmico poema publicado 21 anos antes, dá resposta às perguntas iniciais sobre o que restaria de seu para a posteridade: Que lembrança darei ao país que me deu tudo o que lembro e sei, tudo quanto senti? (...) De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, Uma pedra que havia em meio do caminho.

5- Confissão: Desde os primeiros versos desse poema, o eu lírico confessa sua ação fria diante do outro. O único afeto que deixou escapar de si foi destinado a um “aquele pássaro – vinha azul e doido –/ que se esfacelou na asa do avião”. O intenso pessimismo é marcado pela recorrência de palavras negativas: não, nem, sem.

6 - Perguntas em forma de cavalo marinho: poema metalinguístico, o poeta questiona a forma, a métrica e o conteúdo do homem, seguindo-se a possibilidade de estarmos contidos em algo ou até mesmo se estamos de fato vivos.

7- Os animais do presépio: poema com forte tom bucólico, mas sem o elemento árcade do pastoralismo.

8 - Sonetilho do falso Fernando Pessoa: Temática da duplicidade. Presença de dois “eus”: um que vive no presente da escrita e outro que, “morto”, vive nas recordações da infância em Itabira.

9 - Um boi vê os homens: prosa poética: o olhar manso do boi gera a compaixão e a perplexidade diante do mundo do homem. O poeta segue assim a linha pessimista frente ao existencialismo humano.

10 - Memória: poema de conscientização da necessidade de amar tudo aquilo que se perde ou se vai no atrito do tempo. Somente as recordações ficarão e terão morada certa em nós.

11 - A tela contemplada: Poema metalinguístico. O poeta associa o poema às artes plásticas. Como num poema parnasiano, repleto de descritivismo.

12 - Ser: poema com forte presença biográfica, já que fala de um filho que seria homem no tempo presente, não houvesse a morte o tragado. Drummond teve um filho, Carlos Flávio, que morreu logo após nascer.

13 - Contemplação do branco: poema dividido em três partes. Um eu angustiado por não viver para contemplar a flor que brota num chão, talvez humanizado, no qual todos pisam.

14 - Sonho de um sonho: atmosfera onírica, um sonho dentro do outro (construção em abismo). Os sonhos, no entanto, se apresentam falsos, desiludidos, o pessimismo próprio do mundo.

15 - Cantiga de enganar: poema longo, de negação, de um mundo onde o poeta não se encontra. Poema de desabafo do eu oprimido para um interlocutor chamado de “meu bem”. A saída para a frustração é construir um mundo de palavras, de utopia. O “Mundo”, grafado com letra maiúscula no final do poema, representa o lugar ideal, produto do engano da “cantiga de enganar”. 16 - Oficina irritada: poema metalinguístico. O poema como produto do trabalho, como pregavam os parnasianos. O último verso traz a nomeação do livro “claro enigma”.

17 - Opaco: o leitor é colocado dentro da noite, mas o poeta não pode contemplá-la, já que o “edifício barra-me a vista”. A paisagem é urbana, com seus edifícios e motores.

18 - Aspiração: poema que encerra a primeira parte. Escrita de recusas, desencantado. Intertextualidade com o poeta tcheco Rilke, de vertente existencialista.

Parte II:

Notícias amorosas Parte dedicada à temática amorosa. Contudo, o amor descrito é o do desencontro, reflexões sobre o amor que é sinônimo do eu ˖ tu. Amores de contemplação e de sofrimento.

1 - Amar: amor como condição humana, da qual não se pode correr, mesmo em face daquilo que parece não seduzir “e amar o inóspito, o áspero/um vaso sem flor, um chão de ferro”.

2 - Entre o ser e as coisas: no cenário poético, o eu se divide entre a contemplação do mar e do amor. Logo, o amor que encanta também faz sofrer, restando a melancolia do fim do dia (mais uma cena de crepúsculo).

3 - Tarde de maio: poema prosaico: na presença de uma chuva que traz vida, o eu poético dialoga com a tarde de maio sobre o fracasso de um encontro amoroso. O amor como sinônimo de dor, de desgosto.

4 - Fraga e sombra: a noite aparece aqui como matéria para a arte. O amor, entre sombras e despenhadeiros, belo e paradoxal, é dor e beleza, que o mundo não entende.

5 - Canção para álbum de moça: poema única estrofe. O eu lírico divide sei bom dia a uma moça distante e espera uma resposta dela. No entanto, a moça permanece indiferente. O amor tímido está envolto em um estado de escuridão, prenunciado pela imagem da noite.

6 - Rapto: poema que demonstra “outra forma de amor”; amor homoerótico. Representa o mergulho da águia sobre sua presa. O poema pode se referir ao mito grego do rapto de Ganimedes pela águia de Zeus, desejoso de possuir o rapaz.

7 - Campo de flores: poema do amor maduro. O amor descrito “talhado em penumbra”, luz e escuridão se fundem diante desse amor maduro, repleto de esperanças, tal como a imagem das flores.

Parte III:

O menino e os homens Aqui, o que permeia a escrita Drummondiana são os poemas memorialísticos: é a lembrança de entes falecidos, amigos e irmãos. Permanece o tom pessimista, negativo.

1 - A um varão que acaba de nascer: o poema traz a imagem de um menino que nasce e de um amigo que morre. A vida e a morte, duas faces antagônicas da vida. Aquele que vem ao mundo é Pedro, a quem o eu lírico chama de irmão.

2 - O chamado: poema dedicado à Manuel Bandeira. Referências à Pasárgada, por exemplo, marcam esse apontamento. O eu poético, observador, vê o poeta caminhar. Há um rápido diálogo entre os dois, quando o eu lírico questiona para aonde vai o poeta e Bandeira responde: “Ao meu destino”.

3 - Quintana’s bar: poema prosaico, no qual o eu lírico encontra Mário Quintana num bar. Há uma teia de aranha sendo desenhada, a qual pode remeter ao próprio trabalho literário, profissão dos dois autores. Há referência intertextual através da citação de autores famoso.

4 - Aniversário: aniversário de morte e não de nascimento. É a lembrança da morte de Mário de Andrade, poeta com quem Drummond trocou cartas durante bom tempo.

Parte IV:

Selo de Minas Parte autobiográfica. Traça o percurso pelos caminhos mineiros, especialmente a Minas do período colonial. Duas temáticas predominantes: Minas e família Drummond.

1 - Evocação Mariana: o poema é uma memoração de um rito religioso, com a descrição da cidade mineira Mariana.

2 - Estampa de Vila Rica: poema dividido em cinco partes, numeradas por algarismos romanos. Parte I: Carmo: representa o desejo de preservar os elementos da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Parte II: São Francisco: o poeta se deslumbra frente a beleza das obras de Aleijadinho e Mestre Athayde, representantes da arte barroca da época. Parte III: Mercês de cima: contraste entre o profano e o sagrado, o sensual e o espiritual, isso na imagem da prostituta posta em frente a igreja. Parte IV: Hotel Toffolo: necessidade de saciar a fome interior, referência à antropofagia. Parte V: tentativa de reconstruir, por meio da memória, o passado da cidade de Ouro Preto, palco de cenas tão importantes para a história nacional.

3 - Morte nas casas de Ouro Preto: lamento sobre a destruição que o tempo e os fenômenos naturais operam sobre as casas (monumentos e valores) de Ouro Preto. A chuva aqui traz a ruína, a demolição das casas é uma metáfora da própria história. Há uma referência à poética de Claudio Manoel da Costa no verso: “Sobre a ponte, sobre a pedra/sobre a cambraia de Nize” (Nize, musa inspiradora do poeta árcade).

4 - Canto negro: mostra o tempo de infância, tempo escravocrata, em que fora amamentado pelas negras. O eu lírico se encontra com vários “pretos” que marcaram sua trajetória.

Os bens e o sangue: dividido em oito partes, o poema mistura narração e poesia, para falar da decadência financeira da família. Poema explicitamente autobiográfico, pois relata uma patilha de bens realmente ocorrida em 1847. O título remete à riqueza e dor. Tem-se um sujeito preso à um passado familiar maldito, o que ecoará em toda a sua vida de poeta esquerdo, gauche.

Parte V:

Lábios cerrados Parte que trata da memória da família Drummond. Cerrar os lábios é sinônimo de silêncio, mudez. É o silêncio da memória, especialmente nas lembranças do pai. Há também uma reflexão sobre o tempo e a aceitação da morte. 1 - Convívio: poema prosaico. Discorre sobre a memória: aqueles que se foram, mas que sobrevivem nas lembranças. A presença/ausência dos mortos.

2 - Permanência: também em tom prosaico, segue o mesmo tema do anterior: os mortos que sobrevivem na lembrança dos vivos. 3 - Perguntas: o eu lírico pergunta a seu fantasma q razão de estar um preso ao outro. O presente preso ao passado.

4 - Carta: o poeta deseja escrever uma carta, em tom confessional, dizendo que ama, que deseja rever o destinatário... Mas o tempo passa e o eu lírico ainda espera resposta.

5 - Encontro: o sujeito lírico se encontra com o pai já morto, o ente que se perdeu na vida, mas que foi resgatado no sonho pela imaginação.

6 - A mesa: poema longo, de uma única estrofe. Assim como Encontro, é uma homenagem ao pai morto. O poeta planeja uma festa para o pai, em que todos os parentes de uma mesa, comemorariam os noventa anos do velho pai. Vê-se a descrição da família patriarcal mineira, onde a mãe é emudecida. O poema termina com o fim da cena imaginária: o vazio da alma, presente só a lembrança.

Parte VI:

A Máquina do mundo Parte final da obra, fala sobre o homem e seu estar no mundo. As interrogações de toda a obra estão aqui presentes, sendo oferecidas as soluções, as quais o poeta recusa: afinal, são os questionamentos que movem a vida. 1 - A máquina do mundo: Um dos maiores poemas de Carlos Drummond de Andrade é "A Máquina do Mundo". A ideia de que o mundo era uma máquina esteve em voga desde a Antiguidade até a Renascença. No poema de Drummond, a máquina do mundo abre-se para o poeta em determinado momento, oferecendo-lhe uma "total explicação da vida". Quando isso ocorre, ele, que por longo tempo havia buscado exatamente essa explicação, enigmaticamente a desdenha. Por quê? O poeta não só não acredita mais na possibilidade de tal explicação como não mais a deseja. Se, na Idade Média, a máquina do mundo ainda parecia capaz de se abrir, é porque era tida como finita e fechada. Camões, na Renascença, no canto X, ainda a descreve como um rotundo globo cercado por Deus. Se o poeta desdenha "colher a coisa oferta/que se abria gratuita" a seu engenho, é que a razão já lhe mostrou que a aceitação de uma "total explicação do mundo" não pode ser senão o mergulho em mais uma ilusão, que inevitavelmente lhe custará mais uma desilusão. É, pois, com ironia que chama de "gratuita" a "coisa oferta", no momento mesmo em que explica havê-la desdenhado, "incurioso e lasso". Segundo ele, um dom tão dúbio e tardio -não apenas em relação à idade individual do poeta, mas, principalmente, em relação à época moderna do mundo- já não lhe era "apetecível, antes despiciendo". Sem abrir mão da sua liberdade e ironia, avaliando o que perdeu ao abandonar o mundo fechado, o poeta segue o seu caminho "de mãos pensas" ou, como se lê no poema "Legado", "a vagar taciturno entre o talvez e o se".

2 - Relógio do rosário: esse poema se liga diretamente ao anterior. O relógio da igreja remete ao tempo e o olho do poeta, a consciência. É o choro do mundo misturado ao seu próprio choro. São as dores de existir e de amar em suas diversas vertentes: o social, a memória, a morte, a condição humana.

http://letrabydani.blogspot.com.br/2012/10/carlos-drummond-de-andrade-nasceu.html SELEÇÃO DE POEMAS

A INGAIA CIÊNCIA

A madureza, essa terrível prenda

que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, todo sabor gratuito de oferenda

sob a glacialidade de uma estela, a madureza vê, posto que a venda interrompa a surpresa da janela, o círculo vazio, onde se estenda, e que o mundo converte numa cela. A madureza sabe o preço exato dos amores, dos ócios, dos quebrantos, e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato, o agudo olhar, a mão, livre de encantos, se destroem no sonho da existência. UM BOI VÊ OS HOMENS

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes

não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,

até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.

Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.

Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha,

e que secura e que reentrâncias e que

impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Têm, talvez,

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem perdoar a agitação incômoda e o translúcido

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, [ciúme

(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo como pedras aflitas e queimam a erva e a água,

c difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade". OFICINA IRRITADA

Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreender. AMAR

Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
 e uma ave de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita. O CHAMADO

Na rua escura o velho poeta (lume de minha mocidade) já não criava, simples criatura exposta aos ventos da cidade. Ao vê-lo curvo e desgarrado na caótica noite urbana, o que senti, não alegria, era, talvez, carência humana. E pergunto ao poeta, pergunto-lhe (numa esperança que não digo) para onde vai — a que angra serena, a que Pasárgada, a que abrigo? A palavra oscila no espaço

um momento. Eis que, sibilino, entre as aparências sem rumo, responde o poeta: Ao meu destino. E foi-se para onde a intuição, o amor, o risco desejado o chamavam, sem que ninguém pressentisse, em torno, o chamado. EVOCAÇÃO MARIANA

A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes. Havia poucas flores. Eram flores de horta. Sob a luz fraca, na sombra esculpida (quais as imagens e quais os fiéis?) ficávamos.

Do padre cansado o murmúrio de reza subia às tábuas do forro,

batia no púlpito seco,

entranhava-se na onda, minúscula e forte, de incenso, perdia-se.

Não, não se perdia...

Desatava-se do coro a música deliciosa

(que esperas ouvir à hora da morte, ou depois da morte, nas campinas do ar) e dessa música surgiam meninas – a alvura mesma –

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