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Goldenberg (2004) associou a visão de Max Weber a de Geertz (1989) e provavelmente o tenha feito com o próprio texto de Geertz:

O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1989, p. 15).

Para Geertz (1989), em antropologia, “o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento” (GEERTZ, 1989, p. 15).O autor não definiu o empreendimento da etnografia apenas como técnicas e processos determinados como “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante”. Mas, sim, que “o que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma “descrição densa”, tomando emprestada a noção de Gilbert Ryle” (GEERTZ, 1989, p. 15).

Geertz (1989) tomou emprestada a noção de “descrição densa” presente em ensaios de Ryle e relatou o caso das “piscadelas” para sua compreensão:

Vamos considerar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente o olho direito. Num deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois sozinhos, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela, ou, na verdade se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora não retratável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda (GEERTZ, 1989, p. 16).

Neste primeiro momento, Geertz (1989) salientou que o piscador estaria se comunicando, e o fazia de uma forma precisa e especial, diferentemente do que tinha o tique nervoso. Dessa maneira apresentou a primeira distinção de Ryle:

O piscador executou duas ações – contrair a pálpebra e piscar – enquanto que o que tem o tique nervoso apenas executou uma – contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar (GEERTZ, 1989, p. 16).

Geertz (1989) continuou a sua análise da “descrição densa” de Ryle narrando uma segunda situação em que haveria um terceiro garoto que piscaria contraindo a pálpebra da mesma forma do que os outros dois garotos, mas dessa o garoto não estaria piscando e tampouco teria um tique nervoso. Estaria sim, imitando alguém que tentaria piscar. Nesse caso, considerou o autor, existiria da mesma forma um código estabelecido, porém não seria uma conspiração, mas uma ridicularização.

Além disso, aprofundou essa análise – o imitador, em dúvida sobre sua capacidade de fazer mímica, poderia ainda ensaiar diante do espelho. O fato de estar ensaiando distinguiria o ato de imitar, quanto de piscar ou de ter um tique nervoso. O autor imaginou ainda mais situações para este ato de contrair a pálpebra: “o piscador original poderia, por exemplo, estar apenas fingindo, para levar os outros a pensarem que havia uma conspiração, quando de fato nada havia, e nesse caso, nossas descrições do que o imitador está imitando e o ensaiador ensaiando mudam completamente” (GEERTZ, 1989, p. 17).

Tendo em vista as complexidades sublinhadas por Geertz (1989) para o ato de contrair a pálpebra, que para ele podem ser infindáveis, percebem-se diferentes interpretações. Para que se compreenda esse ponto de vista por oposição, enfatiza que “para a câmera, um behaviorista radical ou um crente em sentenças protocolares, o que ficaria registrado é que ele está contraindo rapidamente a pálpebra direita, como os dois outros” (GEERTZ, 1989, p. 17).

Enfim, concluindo o caso das “piscadelas”, Geertz (1989) discriminou a “descrição superficial” e “descrição densa” inseridas no debate proposto por Ryle, para que se possa compreender o objeto da etnografia:

O caso é que, entre o que Ryle chama de “descrição superficial” do que o ensaiador (imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) está fazendo (“contraindo rapidamente sua pálpebra direita”) e a “descrição densa” do que ele está fazendo (“praticando a farsa de um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a pensar que existe uma conspiração em andamento”) está o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas de significantes em termos das quais tiques nervosos,as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam[...] não importa o que alguém fizesse ou não com sua própria pálpebra (GEERTZ, 1989, p. 17).

Geertz (1989), então, concluiu que a etnografia é uma descrição densa, cabendo ao etnógrafo perceber essas estruturas de significado, compreendê-las e apresentá-las. Para ele,

o que o etnógrafo enfrenta, de fato não – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coleta de dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ, 1989, p. 20).

Um preceito estruturante dessa teoria interpretativa é o de que a cultura é considerada “um contexto, algo dentro do qual eles (os signos interpretáveis ou símbolos) podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, 1989, p. 24). Por esta razão, o autor considerou que o trabalho do etnógrafo é

como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p. 20).

Tendo em vista os conceitos analisados acima, conclui-se que a cultura pode, portanto, ser “descrita densamente” ou “lida” como um texto, pelo etnógrafo. Para efetuar essa leitura o cientista social enfrenta essa multiplicidade de estruturas conceptuais em “todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar linhas de propriedade, fazer senso doméstico...escrever seu diário” (GEERTZ, 1989, p. 20).

Nesse sentido, pode-se inferir o caráter interpretativo da cultura, de sua teoria, e as “descrições densas” como interpretações do etnógrafo, conforme considerou Geertz (1989):

[...] os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” – o sentido original de fictio não que sejam falsas, não fatuais ou apenas experimentos de pensamento (GEERTZ, 1989, p. 25).

Outro preceito estruturante para a teoria interpretativa em busca dos significados de Geertz (1989) foi o fato de que, conforme o autor,

nada mais necessário para compreender o que á a interpretação antropológica, e em que grau ela é uma interpretação, do que a compreensão exata do que ela se propõe dizer– ou não se propõe – de que nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos (GEERTZ, 1989, p. 24).

O fato das formulações dos sistemas ou camadas de signos ou símbolos dependerem dos atos dos sujeitos, os quais estuda o etnógrafo, caracterizam a visão da sociologia

compreensiva debatida por Goldenberg (2004), em que demonstrou, também, a influência weberiana na antropologia interpretativa de Geertz (1989), assim como ele mesmo admitiu. Dentro desse contexto, a afirmação de Geertz (1989) sobre o comportamento faz-se relevante:

Deve-se atentar para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação. Elas se encontram também, certamente, em várias espécies de artefatos e vários estados de consciência [...] Quaisquer que sejam, ou onde quer que esteja, esses sistemas de símbolos “em seus próprios termos”, ganhamos acesso empírico a eles inspecionando os acontecimentos e não arrumando entidades abstratas em padrões unificados (GEERTZ, 1989, p. 27).

Portanto, para que se compreendam os significados, deve-se buscar compreender a ação social do sujeito. Essa premissa, também estruturante para a teoria interpretativa, justifica a utilização da pesquisa qualitativa nesse tipo de abordagem. Enfim, antes de se ingressar na análise da pesquisa qualitativa é relevante fazer a conclusão sobre as principais características de um texto etnográfico. Para Geertz (1989),

[...] há três características da descrição etnográfica: ela é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso sociale a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis. [...] Há ainda, em aditamento, uma quarta característica de tal descrição, pelo menos como eu a pratico: ela é microscópica (GEERTZ, 1989, p. 31).

A quarta característica, em que o autor considerou como “microscópica”, induz a que se possa fazer uma relação com a técnica da pesquisa qualitativa, principalmente com a sua consideração a respeito de que “o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos” (GEERTZ, 1989, p. 31).

Tendo em vista o arcabouço teórico analisado, a presente pesquisa será de inspiração etnográfica, valendo-se do conceito de “descrição densa” proposto por Geertz (1989). Para a pesquisa buscar resolver os problemas “de verificação” que podem ser gerados, conforme Geertz (1989), para diferenciar um melhor relato etnográfico de um pior, “a questão determinante para qualquer exemplo dado [...] é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas” (GEERTZ, 1989, p. 26).

Conforme afirmou Geertz (1989), uma boa descrição etnográfica deve distinguir em sua análise as piscadelas dos tiques nervosos. Em outras palavras, deve buscar compreender os significados desses comportamentos, se há diferenciação ou não, analisar os motivos que levaram os indivíduos a agir/pensar de um modo específico e não de outro, em determinado tempo, não sendo possível dissociá-la do seu contexto:

Se a interpretação antropológica está construindo uma leitura do que acontece, então divorciá-la do que acontece – do que, nessa ocasião ou naquele lugar, pessoas específicas dizem, o que elas fazem, o que é feito a elas, a partir de todo o vasto negócio do mundo - é divorciá-la das suas aplicações e torná-la vazia. Uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar (GEERTZ, 1989, p. 28).

Para que a presente pesquisa conseguisse atingir os seus objetivos ou, como afirmou Geertz (1989), para que se pudesse chegar ao cerne do que se propõe, sem separá-lo do que acontece, será utilizada a pesquisa qualitativa.

Para Goldenberg (2004, p. 48), “os dados da pesquisa qualitativa objetivam uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social”. Para a autora, os métodos qualitativos, ao contrário dos quantitativos, “enfatizam as particularidades de um fenômeno em termos de significado para o grupo pesquisado. É como um mergulho em profundidade dentro de um grupo “bom para pensar” questões relevantes para o tema estudado” (GOLDENBERG, 2004, p.50). Portanto, “a representatividade dos dados na pesquisa qualitativa nas ciências sociais está relacionado à sua capacidade de possibilitar a compreensão do significado e a ‘descrição densa’ dos fenômenos estudados em seus contextos e não à sua expressividade numérica”. (GOLDENBERG, 2004, p.50).

Dito de outro modo, o que a autora referiu foi que, na pesquisa qualitativa, a quantidade dos dados é substituída pela intensidade dos dados, ou seja, pela “imersão profunda” referida anteriormente. Algumas técnicas podem ser empregadas, segundo Goldenberg (2004), para atingir aos níveis de compreensão desejados: as entrevistas em profundidade e as análises de diferentes fontes que podem ser cruzadas.

No caso desta dissertação, seguindo as premissas técnicas analisadas da pesquisa qualitativa, foram realizadas entrevistas em profundidade com informantes. Além disso, para que se possa ‘diferenciar as piscadelas dos tiques nervosos’, desenvolveu-se um referencial teórico sobre identidade cultural, com aprofundamento nas questões das identidades como forma de organização social e a teoria interacionista de Fredrick Barth (1998). Para permitir um mergulho mais profundo no estudo dos fenômenos identitários em Caxias do Sul, desenvolveu-se uma análise diacrítica com o auxílio de um panorama sobre a identidade cultural em diferentes momentos da história da cidade: o surgimento de etnicidades nas colônias de imigração estrangeira no Rio Grande do Sul, por Seyferth (2013), e a valorização da italianidade em Caxias do Sul, por Mocellin (2008). Foi elaborada também a análise da italianidade em eventos como a Festa da Uva e a relação da memória com a identidade.

Enfim, para atingir os objetivos da pesquisa e investigar os significados da diversidade nos desfiles da Festa da Uva, buscou-se compreender a complexidade do conceito de identidade, elaborar um panorama sobre a identidade cultural em Caxias do Sul e relacionando-a com a Festa da Uva, o que permitiu uma análise diacrítica da identidade. Além disso, fazer entrevistas com participantes do desfile de 2014, e, por fim, analisar essas entrevistas e desenvolver a discussão tendo como fio condutor o desfile da Festa da Uva de 2014, inserido no tema “Na Alegria da Diversidade”.