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Capítulo 5 – A dominação masculina e as relações de Getúlio

5.1. As relações de poder

5.1.1. Com o Chefe

Qual a relação de Getúlio com seu Chefe? Já vimos que esta relação é determinada econômica e politicamente. Relação de submissão, não resta dúvida, determinada ora pela dominação patrimonialista-patriarcal, ora pela burocrática. Mas

não apenas isto: as outras relações de Getúlio – com a mulher assassinada e com o prisioneiro – revelam um outro tipo de relação entre Getúlio e Acrísio: uma relação de identificação.

No diagrama, a linha tracejada que separa os dois funciona como espelho. Depreende-se a relação identificatória na medida em que Getúlio age com desmedida violência sobre sua mulher e sobre o prisioneiro. Ele reproduz, em outros termos, a violência que sofre. A violência que ele sofreu – a infância miserável, a alienação política, social e econômica – é traduzida em violência física contra o prisioneiro e a mulher assassinada.

Logo no início do romance, Getúlio cita a brilhantina do Chefe com admiração e confessa o desejo de comprar o mesmo produto que Acrísio usa:

Mandioca. Interessante, é venenosa mas nunca vi ninguém morrer de mandioca, agora todo mundo sabe que é venenosa. Matar de veneno é porcaria. Conheci um cabo que bebeu tatu e se vomitou todo. Morreu feio, lançando arroxeado na cama. O terceiro que morreu na catinga não me lembro o nome. Um com a cara de peru assoberbado, um vermelho. Teve morte demorada. Bicho valente, reagiu de facão, de maneiras que tivemos de encher logo o couro dele. Assim mesmo, a bochecha de Alípio tomou um corte medonho e ficou escancarada como duas folhas soltas. Ferida feia. Preciso comprar brilhantina assim que chegar numa cidade de gente. Quando vou à paisana, o quepe não está para assentar as grenhas. Alípio queria falar mas não podia, só assoprava com descontrole de vento. Donde se vê que a sede da fala também é parte na bochecha. Pouco sangue, só o bastante para lambuzar mais ou menos o pescoço. Aquilo como duas bandeiras, uma desencontrando da outra. Compro uma brilhantina cheirosa e mando aparar as costeletas. Alípio ainda acertou as tripas do udenista com a baioneta três ou quatro vezes. Maioria dos udenistas custam de morrer, se prende no ar como camaleão. Não ser as mulheres, que morre como qualquer, udenista, pessedista, queremista, intregalista ou comunista. Também não sei muito de mulher. A gota serena, a bexiga da peste. Dá de gancho. Tem quem tome a Saúde da Mulher, para purgar a reima. Sei não. Arde. Até de noite essa poeira vai entrando e suja a camisa de amarelo. Amaro só anda ripado pela estrada, mas com esse caminho de carroça não se pode fazer mais. Vosmecê garanto que não tem pressa. Compro Quina Petróleo Oriental, como o Chefe usa e sai todo busuntado, passeando na Rua João Pessoa, de roupa branca e um lenço

no bolso e dando aquelas paradas para conversar e explicar a situação e depois sentando para tomar cerveja e comer queijo com um molho preto em cima. Para mim o Chefe campa as mulheres da miuçalha toda, quando quer. É entrar naquela sala e sair galada. Para mim é isso. (SG, 15-16)

O discurso “misturado” de Getúlio, em aparente associação-livre, estabelece relações inusitadas: a doença venérea, a morte por envenenamento, o despedaçamento do corpo, a morte da mulher e dos adversários políticos e a brilhantina do Chefe. É como se houvesse uma relação, talvez inconsciente, que ligasse todos estes elementos.

A identificação com o Chefe, marcada pelo desejo de usar o mesmo produto de beleza que ele, é entrecortada por um discurso de violência desmedida: o corpo despedaçado (as bochechas soltas de Alípio) e a doença venérea da mulher, ameaças permanentes contra as quais Getúlio se acautela. Lembremos que é sobre a doença venérea a primeira frase do romance, o primeiro “preceito” de Getúlio: “A gota serena é assim, não é fixe. Deixar, se transforma-se em gancho e se degenera em outras mazelas, de sorte que é se precatar contra mulheres de viagem. Primeiro preceito.” (SG, 9).1

O trecho parece sugerir uma conexão entre submissão, sexualidade e morte. O fascínio com que Getúlio descreve Acrísio está ligado ao poder de sedução que ele exerce sobre as mulheres – e, talvez, sobre o próprio sargento: “Para mim o Chefe campa as mulheres da miuçalha toda, quando quer. É entrar naquela sala e sair galada.”. Os verbos “campar” e “galar” denotam dominação, mais do que simples conquista sexual. Neste sentido, o Chefe parece ser metáfora do Estado que ratifica e reforça “as prescrições e proscrições do patriarcado privado com as de um patriarcado público”2. A 1 O que Getúlio quer designar com “gota serena”? Provavelmente uma doença venérea, mas não se sabe

qual. Nem mesmo sua degeneração, o “gancho”, tem significado claro. Gota serena é uma expressão comum no nordeste que denota uma espécie de raiva ou excesso: “macho da gota serena”, “fome da gota serena”. Gota serena ainda pode ser um outro nome para a doença de Leber, doença óptica familiar primária que ocorre em adultos, sendo mais comum em indivíduos do sexo masculino. A doença causa a perda transitória da visão, geralmente à noite. Sabe-se que a gonorréia é também denominada “gota militar”, haveria alguma relação com gota serena?

2

Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4.ed. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 105.

moral do patriarcado é exatamente o que encontramos nas outras relações do sargento: a mulher será morta porque Getúlio suspeita de que ela o traiu; o prisioneiro a todo instante será ameaçado de castração e denominado homossexual. A dominação masculina parece ser o elo comum dos três laços: o Chefe é o homem a ser imitado; para defender sua masculinidade, o sargento assassina a mulher; e, para humilhar, a masculinidade do prisioneiro é sempre colocada em xeque.

A metáfora que melhor descreve a relação entre o sargento e Acrísio é a do pássaro preto: “Dei a ele um passo preto que eu mesmo ceguei, nessa data, que até hoje ele tinha, se não desse para um amigo que visita ele de vez em quando, e que eu não gosto.” (SG, 26). Seria Getúlio este “passo preto” cego? É o que supõe Miyazaki (1996): “o pássaro cego que agora canta melhor para agrado do outro pode metaforizar a submissão de Getúlio”1. Miyazaki argumenta ainda que se trata de uma cena simbólica

de castração, o que nos levaria de volta ao tema da dominação masculina.

Do fascínio à servidão, a distância é pequena, como ensina Freud2. Um indício é

o que faz Getúlio, por exemplo, quando queima o jornal que “aporrinhava o Chefe”:

(...) não era como quando fomos quebrar o jornal comunista. Essa quebra ninguém mandou, mas o jornal aporrinhava o Chefe, de sorte que um dia foi queimado e faltou água para os bombeiros. Não sobrou nada e tinha um comunista chorando na porta. (SG, 18)

Imaginar o que o outro deseja e tentar realizar o seu desejo não é só para os enamorados, mas também para os submissos. Mais do que isto: a submissão de Getúlio

1 Miyazaki, Tieko Yamagushi. Um tema em três tempos: João Ubaldo Ribeiro, João Guimarães Rosa,

José Lins do Rego. São Paulo: UNESP, 1996, p. 49. A análise psicanalítica do livro, realizada por Miyazaki, é interessante, mas deixa de lado os aspectos sociais desta submissão, cujos efeitos psíquicos, obviamente, não recusamos. Se há masoquismo em Getúlio, por exemplo, é uma questão importante, mas que deverá ser compreendida juntamente com as bases sociais que permitem o aparecimento de tal disposição psíquica.

2 Cf. Freud, S. Psicologia de grupo e análise do ego. In. ___. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII.

passa pela identificação. Ele diz, por exemplo: “Para eu ser eu direito, tem que ser com o chefe, porque senão eu era outra coisa, mas eu sou eu e não posso ser outra coisa.” (SG, 94). A frase revela com clareza a ambivalência de Getúlio: por um lado, ele está absolutamente identificado ao Chefe, o “ser direito” depende de Acrísio; por outro, ao reconhecer que o Chefe não mais o apóia, ele se fecha na posição narcísica marcada pelo curto-circuito do “eu sou eu”.

Um outro ponto importante na relação de Getúlio e Acrísio se dá graças à técnica narrativa que João Ubaldo escolhe para fazer aparecer o Chefe. De Acrísio só temos notícia por informantes. Sua ordem inicial, impulso da ação de Getúlio, acontece antes que o romance se inicie. Sua contra-ordem não é dada diretamente por ele, mas por seus soldados. Esta ausência-presente tem um efeito narrativo poderoso: torna ainda mais saliente a dominação, pois não é necessária a coação física sobre Getúlio para que ele obedeça. A ausência física do chefe evidencia sua presença internalizada em Getúlio.

A ausência de Acrísio também enfatiza a natureza simbólica da dominação, pois o fundamento da violência simbólica reside “não nas consciências mistificadas que bastaria esclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem”1. Ou seja, não é preciso que Acrísio esteja perto de Getúlio para dominá-

lo. Bourdieu ainda adverte que reconhecer o caráter simbólico do poder permite problematizar a hipótese de que o dominado escolhe adotar práticas submissas ou que “se deleita” com os tratamentos perversos que lhes são infligidos, “devido a uma espécie de masoquismo constitutivo de sua natureza”. A questão é mais complexa:

(...) é preciso assinalar não só que as tendências à “submissão”, dadas por vezes como pretexto para “culpar a vítima”, são resultantes das estruturas objetivas, como também que essas estruturas só devem sua

1

eficácia aos mecanismos que elas desencadeiam e que contribuem para sua reprodução. O poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que lhe são subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem como poder. (...) essa construção prática, longe de ser um ato intelectual consciente, livre, deliberado de um “sujeito” isolado, é, ela própria, resultante de um poder, inscrito duradouramente no corpo dos dominados sob forma de esquemas de percepção e de disposições (a admirar, respeitar, amar etc.) que o tornam sensível a certas manifestações simbólicas do poder.1

As estruturas de poder, sobre as quais falamos nos capítulos anteriores, são o que garante a inscrição, na mente e no corpo do dominado, o desejo de servir. Não é o caso de culpar a vítima, mas de entender a relação dialética entre as estruturas sociais de dominação e o desejo do dominado.

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