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Comarcas culturais e entre-lugares

Os códigos perdem seu estatuto de pureza e pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro Santo e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento híbrido reina. (SANTIAGO,2000)

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A maneira pela qual se dá a relação do homem com seu meio, portanto, traz consigo o fardo de uma história que remonta à época do descobrimento e de uma geografia que transcende limites políticos. Os estudos acerca da literatura latino- americana, como vimos, jamais chegaram a adquirir uma verdadeira unidade, mas como um recorte teórico faz-se necessário, destacamos dois dos teóricos que influenciaram o pensamento de Rama no que diz respeito à tentativa de compreensão do continente latino-americano através da divisão por regiões. Em 1925 o dominicano Pedro Henriquez Ureña já discutia a diversidade interior do continente120, quando afirmava que os hispano-americanos constituíam grupos regionais diversos e que as diferenças geográficas transferiam-se para a literatura.

Para Ureña, cada país ou grupo de países possuía traços particulares apesar de compartilharem a mesma língua e influência europeia (o Brasil ainda não era alvo de seu estudo), e portanto deveriam ser estudados sempre tendo em vista estas diferenças. Décadas mais tarde, o antropólogo Darcy Ribeiro121 fixou-se nos processos de mestiçagem transculturadora, e sua divisão da América Latina em povos testemunho, povos novos e povos transplantados vem ao encontro do entendimento de Ángel Rama sobre outro termo importante em nosso estudo: as comarcas culturais.

Darcy Ribeiro entendia que os povos testemunho seriam aqueles resultantes do impacto da expansão europeia sobre as altas civilizações americanas, como ocorrido nos Andes, enquanto os povos novos resultariam da fusão de europeus com indígenas e africanos, tal qual no Brasil. Os povos transplantados, assim, seriam aqueles manifestadamente europeus e teriam atingido um grau de desenvolvimento econômico e social mais alto que os demais povos latino- americanos, como no exemplo do Uruguai e da Argentina. Nestes países, os mestiços (frutos da mistura dos espanhóis com nativos) já haviam conquistado e dominado os vales e o pampa e os ocupado com gado e homens. Os primeiros núcleos urbanos já haviam sido erigidos e os indígenas estavam encurralados em lugares desertos quando as correntes migratórias vindas da Europa passaram a suplantar e a suceder a obra dos mestiços. Estes, mais identificados com seus

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UREÑA, 1989.

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poucos pais europeus do que com suas múltiplas mães indígenas, assumiriam com o passar do tempo tipos como o gaúcho.

O gaúcho, nascido nos amplos espaços pastoris, teve como influência dominante a campanha, local onde já estava adaptado e conhecia as técnicas de subsistência, as formas de organização social, a visão de mundo e os hábitos. Na nova ordenação social rio-platense do século XVIII, contudo, coube a ele nada mais do que a subordinação aos donos da terra, patrões durante a época de paz e caudilhos na época de batalha. Mesmo sua importância como força de trabalho básica acabou por ser substituída pelo imigrante europeu, proveniente das imensas ondas migratórias que alcançaram a América Latina. Quando as oportunidades de trabalho e ascensão social passaram então a ser dadas aos imigrantes, o gaúcho, que originalmente desempenhava um papel claro na sociedade através de seu trabalho com o gado, foi relegado para a margem e sua imagem associada à selvageria e à barbárie.

O que ficou em seu lugar com o passar dos anos foi apenas uma nostalgia que surge de tempos em tempos como culto de inspiração patriótica e de afirmação tradicionalista. Este calor nativista chama ainda mais a atenção por demonstrar, segundo Ribeiro, a alienação típica daqueles que precisam adotar avós estranhos para se reconhecerem e aceitarem. Afinal, o celebrado gaúcho nada mais é do que a vítima do processo histórico que deu nascimento aos povos do Prata. Dentre estes povos incluímos o estado do Rio Grande do Sul, uma vez que as fronteiras nacionais ainda não estavam bem definidas nos séculos XVII e XVIII, e grande parte do estado sabidamente compartilhou e compartilha seu processo de formação política e social com o Uruguai e a Argentina, sendo impossível realizar uma leitura totalmente apartada dos mesmos. É neste ponto que o pensamento de Darcy Ribeiro conflui para o de Rama.

Para o crítico uruguaio as semelhanças históricas e geográficas do Uruguai, da Argentina e do Rio Grande do Sul, possuidores de elementos étnicos e tradições populares análogas, indicam a possibilidade de falar-se de uma comarca dos pampas122. Estas comarcas não seriam somente naturais mas também culturais, seriam locais onde se compartilham elementos tão poderosos que transcendem as fronteiras políticas e geográficas, conferindo unidade àquela tradição e literatura.

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Entender uma comarca através de sua literatura leva-nos a entender melhor o próprio mundo de hoje, já que a parte é indissociável do todo.

Faz-se necessário porém, antes de tudo, ir além dos nacionalismos e buscar o intermezzo entre o global e o local, o que Silviano Santiago identifica como “entre- lugar”. Desta forma melhor são abordadas as estratégias de resistência aos processos de segregação e exclusão característicos da globalização, repleta de tensões entre as tendências homogeneizadoras e comerciais, por um lado, e a valorização da arte como uma instância para renovar as diferenças simbólicas, por outro.

Horacio Quiroga e Sergio Faraco podem ser vistos, portanto, como dois escritores extremamente representativos de momentos subsequentes na história das fronteiras latino-americanas. Suas trajetórias estão separadas por várias décadas, mas interligam-se no que diz respeito ao tratamento da fronteira e de seus habitantes. Os conflitos na existência do gaúcho pampiano e do missioneiro argentino assemelham-se e aproximam-se, como vimos na análise destes contos em que a sobrevivência só é possível quando o homem aproxima-se de seu lado mais animal, instintivo, e passa a enxergar-se como coadjuvante em um ambiente indômito.