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Quando me propus realizar esta pesquisa, vislumbrei, dentre outras coisas, compreender melhor como a Shoah, que considero a expressão máxima – talvez não absoluta – do mal humano até este ponto de nossa história, pôde um acontecer; ou, melhor dizendo, que condições materiais, sociais e políticas e que predisposições psicológicas propiciaram a um determinado grupo de seres humanos a execução do plano macabro de exterminar uma quantidade enorme de outros seres humanos. Utilizo sobremaneira a palavra “humano” porque me parece tratar-se de algo intrínseco ao homem como uma espécie, não apenas a um determinado povo no qual foi possível verificar tal fenômeno. Diversas foram as situações na história da humanidade em que grupos foram dominados ou dizimados por outros. Mais ainda, verificamos classes dentro de uma mesma sociedade submetendo outras a seu arbítrio. Essa violência universal está imbricada nas ações e, principalmente, nos discursos de ódio. Temos visto, ultimamente, espantosas manifestações de intolerância e de arrogância aqui mesmo em nosso país, supostamente um “país de todos”: a interminável violência contra as mulheres, agressões e assassinatos a homossexuais, remoção forçada de comunidades pobres nos centros urbanos e de indígenas das suas reservas, repressão brutal a manifestantes nas ruas, “justiça” paralela com linchamentos, perseguições e tortura, até mesmo declarações de apoio ao retorno de uma ditadura militar. Há algo de sistemático na violência que a faz encontrar por toda parte um substrato humano capaz de hospedá-la. Quando menos se espera, ali está novamente o mal tolerado, aceito, alastrado, instituído e estatizado, cerceando a liberdade e controlando a vida de todos.

As políticas de memória cultural vêm sendo realizadas, principalmente após o fim da Segunda Guerra e após a queda dos regimes comunistas, como uma tentativa institucional de manter acesa na consciência coletiva a lembrança sobre fatos históricos violentos, com o utópico e esperançoso fim de que não se repitam. No entanto, observa-se que em algumas situações o Estado prefere esquivar-se, tal como vem ocorrendo na dificuldade em se estabelecer a Comissão da Verdade no Brasil, mesmo quando na presidência está uma mulher que foi torturada no período ditatorial. Há muitos interesses invisíveis e poderosos em jogo. E, mesmo quando a

política existe com certa eficiência, surge uma resistência reacionária forte, de indivíduos ou grupos que ignoram ou negam a existência da violência instituída no passado, certamente não de forma desinteressada. Parece, portanto, que essa violência guarda em si também um poder de conservação, que não a deixa extinguir. Entretanto, por mais que pareça em vão, é necessário que as iniciativas de rememoração do passado histórico traumático sejam mantidas e se renovem, pelo menos para resistir ao fascismo que está sempre à espreita.

Pois esse foi o interesse que despertou a minha atenção para a obra e a figura de Günter Grass. Após uma prazerosa leitura descompromissada do livro de contos Meu século, procurei conhecer mais sobre o autor cujo estilo literário tanto me agradou. Sabendo tratar-se de um autor alemão do pós-guerra procurei logo seu livro mais renomado: O tambor. Tal leitura me deixou em uma espécie de êxtase lúgubre; parecia que a figura divertida e bizarra de Oskar Matzerath havia me explicado de maneira extremamente didática todo o fascínio e todo o horror do nazismo. Nas ações progressivamente mais agressivas dos indivíduos comuns eu identificava equivalentes ao meu redor. Vemos, aqui, uma série de suspensão de direitos, tão absurdas quanto as situações surreais do livro. Esse fenômeno de envolvimento entre literatura e realidade histórica me motivou a trabalhar o romance como tema de monografia da graduação. Ao saber da correlação tremenda entre biografia do autor e ficção, busquei também sua então recente autobiografia Nas peles da Cebola, que me satisfez ao decifrar diversas das chaves criadas na ficção a partir das memórias pessoais do autor. Ao abordar, por sugestão de meu orientador, o tópico da memória nessas obras, ao qual vinculei automaticamente sua relação com a historiografia, pude realizar uma pesquisa ainda superficial, que, entretanto, me deixou ainda mais curioso pelo assunto. Decidi então, no projeto de mestrado, expandir para toda a Trilogia de

Danzig meu objeto de estudo; não bastasse isso, acrescentei o elemento que viria potencializar a

tensão do assunto: a hipótese de abordar a autobiografia de Grass pelo viés de testemunho. Ao me debruçar sobre o trabalho de pesquisa, notei que o tema havia saído de controle – todas as direções me atraíam, todo tópico me parecia essencial. Com Gato e rato, quis me afundar na culpa de Pilenz para resgatar o grande Mahlke. A complexidade tremenda de Anos de Cão expandiu em minha mente uma constelação de dados a serem analisados. Foi então que percebi a armadilha que me havia preparado: encontrei-me absorto na órbita de meu objeto de estudo, cuja

gravidade me puxava cada vez mais para sua atmosfera. Era-me difícil tomar uma distância necessária para estipular os parâmetros de análise. Mais uma vez, tudo era digno de investigação e tudo se excedia. Procurei recompor-me para coletar as informações a fim de proceder à minha análise; mantive-me o mais próximo possível da proposta original e, ainda assim, o assunto transbordava. Definitivamente, os volumes bíblicos que tinha em mãos constituíam um material abundante que não parava de crescer. Após isso, a busca por críticas a Grass no Brasil se mostrou relativamente satisfatória, mas ainda insuficiente: além de Mazzari, não foram muitos os pesquisadores que se aventuraram profundamente na obra do autor de Danzig. Ao pisar na Alemanha, no entanto, dei-me conta de uma face completamente diferente do assunto: professores e colegas demonstravam-se cansados de discutir Grass; sua imagem pública já se encontrava bastante desgastada com as insistentes polêmicas; sua obra, já analisada pela academia à exaustão, embora nunca esgotada. A linha de pesquisa sobre Nachkriegsliteratur já não desfrutava mais de tanto prestígio; parecia até que os acadêmicos alemães já tinham, de fato, dominado o passado e superado o trauma. No papel de admirador da obra, visitei alguns locais de interesse, numa espécie de turismo literário seguindo o rastro do autor: em Gdańsk, pude sentir o ar suburbano das ruas de Langfuhr, vi o prédio do Correio Polonês com as marcas de mãos no muro e alguns jovens em frente ao liceu Conradinum; em Lübeck, a exposição de peças de arte na antiga casa de Grass; em Berlin, a franca e simplória satisfação de notar que eu habitava também o bairro de Friedenau, a meros três blocos da Niederstraße, onde Grass viveu por anos com sua família. Auschwitz, por outro lado, trouxe-me de volta à lembrança o objetivo disso tudo: não esquecer.

Retornando ao trabalho, vi a necessidade de recortar cada vez mais a abrangência do tema: evitei aprofundar-me em muitos temas, como os detalhes da vida do autor que coincidem com a ficção; a representação dos eventos históricos mais notáveis que podemos encontrar na

Trilogia; as vítimas que não puderam ter a palavra; o período otimista da era nazista e seu

decorrente choque de realidade com a derrota e a morte do Führer; os aspectos que aproximam a autobiografia de um Bildungsroman; o engajamento político do autor; os espaços de recordação (a topografia da memória); os elementos fantásticos, místicos, blasfemos e grotescos; o poder das

artes e das palavras contra o esquecimento. Cada um desses assuntos daria, por si só, um vasto material de pesquisa, que pode ser ainda explorado no futuro.

Ainda assim, meses depois, ao fim deste trabalho, minha sensação é de incompletude: por um lado, não desejava excluir mais tópicos, a fim de não correr o risco de perder a visão geral da relação entre obra e realidade, entre ficção e autobiografia, e da atuação do autor a fim de influenciar no valor de sua produção e na memória cultural alemã; por outro lado, cada parte mereceria um aprofundamento maior, mas que em conjunto deixaria a dissertação ainda mais extensa do que já se apresenta. É o momento, pois, de se interromper a redação. A pesquisa continuará depois disso, neste tópico ou em outro, para que se continue a compreender o papel e a posição da literatura neste mundo que parece apenas renovar a feição da barbárie. Conforme expressou Grass ao fim de sua palestra “Schreiben nach Auschwitz”, “(...) nenhum fim pode ser prometido para o ‘escrever após Auschwitz’, a menos que a espécie humana desista de si”183 (GRASS, 1990, p. 43). Enquanto o homem não desistir de si, não desistiremos da arte.

183 No original: “(...) dem Schreiben nach Auschwitz kann kein Ende versprochen werden, es sei denn, das Menschengeschlecht gäbe sich auf.” (GRASS, 1990, p. 43)

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