• Nenhum resultado encontrado

Segundo Fragoso e Florentino, na virada do século XVIII para o XIX o Sudeste-Sul escravista assistiu ao “domínio do capital mercantil e, pois, a hegemonia de uma nova elite econômica [...] constituída pela comunidade de comerciantes de grosso trato residente na praça mercantil do Rio de Janeiro”66. Pelos portos cariocas saíam as riquezas do Brasil-colônia e chegavam escravos vindos da África. Tratava-se de um centro de comércio mundial, que articulava e punha em funcionamento os mecanismos de expansão do escravismo nas Américas.

Fragoso e Florentino apresentam o dado de que “entre 1808 e 1830, 74% [dos navios negreiros] pertenciam a negociantes do Rio de Janeiro”67. A rota de Angola a Rio de Janeiro foi responsável por tristes capítulos da diáspora negra. De acordo com as publicações de chegadas de navios nos jornais da época , registra-se o desembarque de 490 mil africanos somente entre 1811 e 183068. Diante de tal volume, concentrado em menos de duas décadas, observa-se que no início do século XIX tanto o escravismo americano quanto as rotas de tráfico negreiro já se encontravam completamente consolidadas e se expandindo como nunca. Nessa época os comerciantes, como agentes que faziam girar a roda da economia e das finanças, foram constituindo-se “o núcleo hegemônico da hierarquia colonial”69.

Esses comerciantes de grosso trato, como são chamados pelos autores, representando famílias como “Gomes Barroso, Carneiro Leão, Velho da Silva, Pereira de Almeida e de Elias Antônio Lopes”70 atuavam nos pontos nevrálgicos da economia colonial: “seus membros eram ao mesmo tempo grandes importadores e exportadores, traficantes e seguradores, entre outros papéis”71.

Observa-se nessa época uma grande concentração dos negócios mais rentáveis nas mãos de poucos comerciantes72, explicado pelo “alto investimento inicial requerido pelo comércio exterior”73, especialmente para a importação de africanos. Dentre os 279

66 Fragoso & Florentino, op. cit. p. 84-5. 67 Ibidem p. 196. 68 Ibidem p. 192-3. 69 Ibidem p. 189. 70 Ibidem p. 199. 71 Ibidem p. 199. 72 Ibidem p. 196. 73 Ibidem p. 196.

traficantes mapeados no Rio de Janeiro, os 16 maiores foram responsáveis por 47% dos desembarques74.

Em uma economia baseada no comércio exterior, os seguros marítimos movimentavam vultosos volumes de dinheiro e constituíam fortes instituições financeiras que viabilizavam o tráfico negreiro como investimento ao minimizar-lhe os riscos de prejuízo. Assim como o tráfico, também os seguros eram controlados, na sua maioria, por empresas do Rio de Janeiro:

“com relação ao sistema segurador marítimo, sabe-se que durante o período joanino sete companhias atuavam na praça do Rio, das quais apenas uma constituída por capital inglês. Os seguros referentes ao comércio negreiro estavam fundamentalmente em mãos dessas companhias de capital nativo, cuja força e credibilidade podem ser demonstradas pelo fato de que também seguravam operações de comerciantes ingleses, traficantes cubanos que atuavam na rota Angola-Havana, traficantes angolanos e moçambicanos e mesmo negociantes suecos”75.

A alta concentração da riqueza e dos negócios nos comerciantes cariocas conferia a esse estrato uma posição privilegiada na economia do Atlântico Sul. Havia no Brasil-colônia

“um grupo muito restrito de negociantes no interior de uma hierarquia mercantil por si mesma concentrada: os agentes mercantis ligados às trocas internacionais. […] Sua hegemonia se exercia inicialmente pela possibilidade que esses comerciantes tinham de controlar aspectos fundamentais da atividade mercantil, como os navios, os sistemas de seguros e a própria constituição dos estoques de bens a serem intercambiados”76.

O aspecto estrutural com que se revestia o vínculo entre a colônia e a metrópole fazia com que em torno do comércio exterior se organizasse a economia escravista. Como uma forma econômica que envolvia diversos continentes e deles dependia para sua continuidade e para a realização dos lucros, era no comércio que se davam os nexos de seu funcionamento e, por conseguinte, eram os grandes comerciantes que ditavam a dinâmica da economia e da sociedade colonial. Nesse sentido, Fragoso e Florentino colocam-nos como agentes da colonização metropolitana:

74 Fragoso & Florentino, op. cit. p. 193. 75 Ibidem p. 197.

“os clássicos de nossa historiografia ensinam que a reiteração da economia colonial dependia da realização externa de parte de seus produtos, do mesmo modo que a própria produção era caudatária da importação de manufaturas e de escravos. Desse modo, não estamos frente a um comércio exterior qualquer, mas sim diante de um sistema de trocas imprescindível (e, em grande medida definidor) ao funcionamento da estrutura econômica. Torna-se, portanto, mais ou menos óbvia a permanente existência de setores de comércio que, ao demandarem altos investimentos iniciais, excluíam a participação da maioria dos agentes mercantis. Daí resultava que do topo da hierarquia fizesse parte de uma elite mercantil fortemente ligada ao mercado exterior – i.e., capaz de controlar os setores comerciais dos quais dependia a reprodução social. A ‘dependência’ que muitos ressaltam era, por conseguinte, menos uma imposição do que um atributo requerido. Na verdade, a dependência passava a redefinir-se enquanto

espaço da acumulação interna”77.

Dessa maneira, os comerciantes que controlavam o comércio externo, além de constituírem-se como o extrato mais rico da sociedade colonial, se beneficiavam com a situação de dependência em relação à metrópole. Também eles eram beneficiários do escravismo, não somente na condição de traficantes de escravos, mas como negociadores dos produtos elaborados com a mão-de-obra escrava. O comércio, intermediando todas as fases da produção, desde a aquisição da mão-de-obra, da matéria prima, dos insumos, até a venda ao exterior, passando ainda pelo financiamento ainda da produção, acabava por extrair do senhor de escravos a mais valia que este havia conseguido pela exploração do trabalho compulsório. Como nos afirma Fragoso e Florentino,

“a constituição da elite colonial esteve centrada em uma estratégia de acumulação baseada na apropriação, pela esfera mercantil, do excedente gerado na agricultura”78.

Tal constatação nos leva a repensar a categoria de capitalismo mercantil utilizada por Fragoso e Florentino, que foi apropriada a partir de uma leitura de Fernando Novais79.

77 Fragoso & Florentino, op. cit. p. 199 78 Ibidem p. 189

79 “a constituição da economia colonial somente pode ser apreendida no interior do sistema colonial mercantilista, isto é, em suas conexões com o que [Novais] denomina ‘capitalismo comercial’” (Ibidem p.121).

Apesar da centralidade econômica dos grandes comerciantes, e do “predomínio das formas mercantis de acumulação”80, a riqueza apropriada pelo comércio vinha das plantações escravistas, do trabalho escravo. O comércio que se operava nas rotas transatlânticas e intercoloniais não podem ser compreendidos sem se considerar essa base econômica que utilizava o trabalho escravo. Falar, assim, em capitalismo comercial não pode obscurecer que, apesar da preponderância dos setores mercantis na ordem econômica, era a produção em grande escala e com trabalho compulsório que fazia essa economia crescer.

Vimos neste capítulo a hegemonia social e econômica dos grandes comerciantes na capital carioca, corolário necessário da centralidade e vitalidade do comércio na colonização brasileira, examinados no capítulo precedente. Não podemos perder de vista, no entanto, que a sustentação desta posição e das riquezas não advinha do comércio per se, mas da massa negra trabalhadora e escrava, que produzia os artigos comerciados. Nesta condição de produtor, os próprios escravos tornavam-se os objetos altamente valorizados e lucrativos deste comércio.

Documentos relacionados