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Comida precária, pratos vazios, cofres cheios: a questão do acesso, dos excessos e das privações excessos e das privações

6 CONTRADIÇÕES DA REALIDADE: INJUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL, FOME E ABUSOS CORPORATIVOS NA TERRA DA COMIDA-MERCADORIA

6.1 Comida precária, pratos vazios, cofres cheios: a questão do acesso, dos excessos e das privações excessos e das privações

As grandes corporações trouxeram as químicas para a Agricultura Industrial Química. E eles falavam sobre três instrumentos que consolidariam a cadeia alimentar: o primeiro era a Engenharia Genética como medida de controle; o segundo era patentear sementes, patentear a vida como medida de controle, declarando sementes como sendo propriedade privada! Tratando o semear de sementes naturais como um crime cometido pelos fazendeiros, como um roubo! E o terceiro: os tratados de livre comércio que deixariam as pessoas comuns, fazendeiros, granjeiros, sem a sua liberdade, para salvar a semente. O desenho da tecnologia do extermínio criou sementes estéreis para impor uma maior dependência da humanidade a algumas corporações.[...] Nós somos o que estamos fazendo com as sementes. [...] Criando uma nova colonização.

(Vandana Shiva, ativista pela justiça ambiental, no documentário “Prosperar: o que será necessário?”)

Em duas áreas cruciais: energia e alimentos, vemos a mesma elite de banqueiros e as grandes corporações tomando o controle.

(Excerto do documentário “Prosperar: o que será necessário?”)

É inútil forçar os ritmos da vida. A arte de viver consiste em aprender a dar o devido tempo às coisas.

Carlo Petrini, fundador do Slow Food

A injustiça ambiental no tocante à alimentação tem sua expressão extrema na negação da segurança alimentar80 a uma grande parcela da população mundial, principalmente pessoas habitantes de países em desenvolvimento, como ocorre no Brasil, e de forma marcante no continente africano e na Ásia, denunciando, mais uma vez, a desigualdade inerente ao “modelo” capitalista de desenvolvimento, onde a fome e a desnutrição convivem com toneladas de alimentos desperdiçados diariamente. É inegável a insustentabilidade de uma forma social que joga fora comida quando muitas pessoas sofrem fome. Antes de o Capital desenvolver-se como modo de produção dominante, a humanidade nunca produziu alimentos para descartá-los da forma como agora vem fazendo, condicionada pela lógica (“ilógica”

seria um termo mais apropriado) capitalista.

A alimentação enquanto necessidade essencial exige o acesso a uma quantidade e qualidade compatível com a manutenção da vida e do organismo saudável. Negar o acesso à comida, nestes dois aspectos da quantidade e da qualidade, é a situação mais degradante de violação, tanto ao direito de existir, quanto ao de viver com saúde.

Grandes fomes assolaram as civilizações no decorrer da História81, por diversas razões. Destacamos a questão da dependência em relação a alguns poucos gêneros alimentícios, os quais, se serem fortemente atacados por pragas podem gerar crises alimentares. Em nossa época, a tecnologia possibilitou uma produtividade de comida capaz de gerar excedentes para alimentar a todos, e, no entanto, a fome persiste, sendo expressa tanto na privação de comida, quanto numa nova roupagem, costurada pela superoferta de produtos alimentícios não nutritivos, que não alimentam (fome oculta82).

“A produção dos alimentos e a sua disponibilidade social têm obedecido a uma dinâmica milenar de desigualdades distributivas e de crises alimentares. As

80 Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis (Projeto de Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional - PL 6047/2005 - em tramitação no Congresso Nacional).

81 Um caso clássico foi o da crise na safra de batatas na Irlanda em 1845-47, que matou ao menos um milhão de pessoas e provocou intenso fluxo emigratório (CARNEIRO, 2003, p. 18).

82 Aquela que se instaura quando, embora haja a ingestão regular de alimentos, comumente em grandes quantidades e ricos em calorias (energéticos), a natureza nutricionalmente empobrecida da comida hoje disponível – como muitos industrializados e as comidas do gênero junk e fast food – conduz o organismo a ansiar por nutrientes, a fim de suprir suas funções vitais.

fomes assolam o passado e o presente da humanidade” (CARNEIRO, 2003, p. 23).

No entanto, surpreende a sua persistência em uma sociedade capaz de produzir alimentos para além do tamanho de suas populações. Se o flagelo da fome continua condenando muitos seres humanos a uma vida miserável e a perecer lenta e de forma agonizante, é porque o poder assumiu uma nova forma centralizadora, baseada na aristocracia do dinheiro, cuja grandeza acumulativa e reprodutora vem produzindo relações de ordem político-econômica que têm sido responsáveis por disparidades extremas nas condições de vida, incluindo a distribuição e o acesso à comida.

Para Carneiro (2003, p. 24), “fome não é apenas a sensação universal que todos possuímos antes de comer, melhor chamada apetite, mas o estado crônico de carências nutricionais que podem levar à morte por inanição ou às doenças da desnutrição”. É a esta última forma de fome, que viola os direitos essenciais e éticos à vida e à saúde, que nos move a procurar compreender que tipo de relações de ordem social têm sido responsáveis por sua continuidade na História da humanidade.

O fato é que a fome, ao invés de ser prontamente enfrentada em nossa sociedade, transformou-se em tabu, em algo que as pessoas preferem não falar, com receio de expor tal constrangimento de uma sociedade, que, ao se dizer democrática contradiz-se, reproduzindo relações extremamente danosas do ponto de vista dos direitos humanos.

Na contemporaneidade, devido à superação nos limites antes existentes à produção e divulgação do conhecimento, este tema vem sendo tratado de forma mais aberta, até mesmo pela grande mídia, que não cansa de mostrar os flagelados da fome em imagens chocantes de crianças moribundas da África ou da Ásia, para todo o mundo ver. E, no entanto, questionamos o fato de o choque ser, também, uma estratégia de naturalização frente a um problema social que tem por causa a continuidade das relações do status quo. O super-saturamento intencional destas imagens acaba por gerar insensibilidade e inação. Ou seja, é desejável, quando não traz nenhuma consequência prática.

Em termos relativos, e não absolutos,

existem provavelmente mais pessoas famintas hoje no mundo do que em qualquer outra época anterior. Tal evidência é ainda mais gritante diante do cálculo da produção contemporânea de alimentos, que alcançou um volume

recorde na história humana. O suprimento global de alimentos é atualmente suficiente o bastante para alimentar mais do que a totalidade da população mundial com base numa dieta semivegetariana, mas suficiente apenas para alimentar metade da população mundial se for estendida para todos a mesma dieta atual dos países desenvolvidos. As consequências do que se caracteriza como “dieta de países desenvolvidos” no crescentemente interdependente sistema alimentar global atinge o conjunto do planeta, devido ao impacto ambiental provocado pela destruição das florestas tropicais na América Latina para dar lugar às pastagens e às plantações de forragem necessárias para aumentar o consumo ocidental, e especialmente norte-americano, de bifes (CARNEIRO, 2003, p. 26-27).

Com base nessa assertiva podemos inferir que a fome hoje persiste não devido à incapacidade de se produzir alimentos, mas em razão das desigualdades distributivas, que têm negado o seu acesso. A fome resulta, assim, da extrema pobreza, e não da falta de alimentos na região em causa. Vemos também que a dieta farta e variada de alguns, cujas condições de vida são favoráveis, demanda uma série de recursos e processos ambientais, gerando impactos, os quais, no geral, são sentidos justamente pelos mais pobres.

A fome contemporânea não se limita à fome causada pelos cataclismas naturais que destroem colheitas. É na distribuição que se concentra o problema do abastecimento alimentar contemporâneo, dado que os índices de produção crescem avolumando uma quantidade nunca antes vista de estoques disponíveis nos países ricos (CARNEIRO, 2003, p. 37).

Contemplamos, pois, a face mais cruel da injustiça ambiental que assola os desfavorecidos, aos quais se nega o acesso à comida. A alimentação é necessidade sine qua non, e, logo, um direito humano. Como tal deve ser tratado. A despeito disso, na perspectiva da globalização, as leis de mercado assumem o comando do que é de direito às populações. Essa condição - em que a vida econômica é comandada pelos interesses empresariais, e os Estados são meros executores das intenções expansionistas (territoriais e econômicas) daquelas - faz-nos situar a crise alimentar como um problema de acessibilidade, e não de disponibilidade de alimentos.

As tecnologias hoje disponíveis permitem produzir comida acima do âmbito numérico da população mundial. No entanto, a mercantilização e especulação dos alimentos, bem como de todo o seu processo produtivo, tendo por base a agricultura industrial, engendrou e vem agravando a insegurança alimentar, contradizendo a abundância de alimentos com a fome.

A especulação dos alimentos virou o mais promissor negócio das grandes corporações agroindustriais. Tendo a alimentação como demanda essencial, o controle do acesso à comida é via infalível de controle global pelas transnacionais do setor alimentício. Sustentadas por cadeias produtivas socioambientalmente não sustentáveis, estas corporações seguem, com ganas de acumular riquezas nas mãos dos países industrializados.

No cenário expansivo da especulação alimentar, são as normas comerciais que determinam a dinâmica da oferta e procura de alimentos. Por intermédio de leis comerciais, criam-se condições absolutamente desfavoráveis aos pequenos produtores. No âmbito do consumo, forja-se uma série de “necessidades” que podem ser explicadas somente no nível do desejo (domínio bastante explorado pela indústria da comida-mercadoria).

As políticas agrícolas globais, praticadas no marco da agricultura industrial ou agronegócio são inteiramente dirigidas a atender às leis de mercado, enquanto uma grande parcela da população mundial sofre os efeitos danosos da injustiça alimentar (uma manifestação da injustiça ambiental) ao serem submetidas a uma dieta sem qualidade, à comida envenenada por resíduos de defensivos agrícolas e aditivos alimentares não inócuos à saúde, e quase um bilhão de pessoas, de acordo com relatório público da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sobre a fome no mundo83, de 2013, 842 milhões de pessoas são flageladas pela fome crônica.

Entendemos, pois, que a agricultura industrial, atrelada às relações do capital, não tem condições de alimentar todas as pessoas do planeta e isso não tem haver com quantidade de comida produzida, mas com a natureza mesma das relações nas quais se sustenta. A fome é um subproduto de relações de poder excludentes na distribuição de alimentos. Aliás, tendo em vista o seu caráter de necessidade prioritária à vida e à saúde humana, a alimentação tem se convertido em poderosa arma de dominação e manipulação de uns países sobre outros.

A alimentação possui, além da dimensão biológica, as dimensões social, cultural e econômica, que em cada momento e processo histórico apresentam certas peculiaridades. A modernidade trouxe a Revolução Industrial e depois a

83 Disponível em: http://www.publico.pt/ficheiros/detalhe/relatorio-da-fao-sobre-fome-no-mundo-20131001-161340. Acesso em 27 jun. 2014.

globalização, fazendo com que a comida passasse a mobilizar uma extensa e dinâmica cadeia produtiva que abarca o controle da agricultura, da indústria, do comércio, do setor de transportes, além de influenciar a urbanização, produzindo impactos socioambientais em todas essas instâncias.

Para Carneiro (2003), a alimentação vem acompanhando de perto a história econômica das sociedades, e, mais que isso, é ela própria o fenômeno fundador da economia, tendo em vista que a necessidade material de consumir alimentos mobilizou a primeira forma de produção. A geração de alimentos pelas forças produtivas, para além de sua necessidade imediata de consumo “constitui o primeiro excedente social; assim, o papel do alimento localiza-se no fulcro da produção e da reprodução de uma sociedade, no nível definido por Marx como infraestrutural”

(CARNEIRO, 2003, p. 17).

É notório que a alimentação ocupa uma posição bastante importante para a economia, considerando que a demanda por alimentos é universal. A indústria apropriou-se dessa particularidade da comida (ser um bem que todos precisamos, todos os dias da vida) e vem manipulando nossos desejos para que nossa vontade real pela comida-alimento seja substituída pela comida-mercadoria, sobre a qual tem total controle.

Monopolizar os mercados e criar ícones poderosos em torno da comida ofertada é uma forma eficaz de controlar unilateralmente o que as pessoas consomem. Essa é a estratégia adotada pelas transnacionais agroalimentares a fim de reunir poder e riquezas. Ao contrário, a diversidade possibilita a autorregulação dos sistemas, sem o domínio de algo externo. Como na natureza, onde o diverso é princípio base da saúde dos ecossistemas, nos aspectos da vida em sociedade o mesmo princípio tem efeito semelhante. Cultivar a diversidade protege a humanidade dos conflitos provenientes da uniformidade do pensamento e ações, que podem descambar em fanatismo. É na diversidade que há movimento: o mover necessário à superação das contradições que se apresentam no decorrer da história das relações humanas em sociedade e com a natureza.

Uma imagem de domínio público revela o poder expansionista das maiores empresas do ramo alimentar e a quantidade de “marcas” que delas derivam. São as mesmas que encontramos nos supermercados. As mesmas que têm condicionado fortemente a nossa dieta. Essas grandes transnacionais da alimentação

encontram-se reunidas pelo controle corporativo, monopolizante, centrado na concentração de poder e riquezas. Constituem “famílias”, que prezam pelo nome e lutam para assegurar seu poderio hereditário de capital.

Figura 29. As gigantes do ramo alimentício e suas derivações em marcas de produtos.

Fonte: internet

O olhar crítico às relações que sustentam a cadeia convencional da comida desvela um aspecto ainda mais sombrio do que a estratégia de controle exercido sobre os consumidores a partir da oferta maciça de produtos alimentícios nos supermercados. A enfermidade dessas relações cria contradições desumanizadoras na determinação do acesso à comida, sua privação, e os excessos em seu consumo. Tal cadeia alimentar, não sustentável, impõe o sofrimento da fome real a milhares de seres humanos e toxicidade a tantos outros, ao mesmo tempo em que condena outros milhares à fome oculta, expressa no sobreconsumo de alimentos ricos em calorias, mas pobres em nutrientes.

Dois estudiosos dessa temática, Jean Ziegler e Raj Patel, vêm ao encontro do que discutimos, na exposição que fazem das contradições da produção de alimentos hegemônica. Conduzem-nos a compreender os movimentos que as têm mantido.

Patel estuda a contradição: “A humanidade produz atualmente mais alimentos que em toda a sua história, no entanto uma cifra superior a dez por cento da população padece de fome” (2008, p. 11). Frente a esta contradição, expressa na coexistência paradoxal entre a sobreprodução de comida e a fome no mundo - revelando uma lógica perversa que caracteriza a escassez de alimento não como um problema de disponibilidade, mas como uma questão de distribuição e acesso - Patel analisa uma outra contradição da ordem hegemônico-globalizada de produção de alimentos: “a fome destas 800 milhões de pessoas ocorre simultaneamente a outro recorde histórico: mil milhões de seres humanos hoje em dia apresentam sobrepeso” (2008, p. 11).

Para o autor, a fome e a epidemia de obesidade e de problemas relacionados à nutrição inadequada, as quais, na contemporaneidade, afetam a uma parcela significativa de pessoas no mundo, são faces de uma mesma moeda:

Os obesos e os famintos estão vinculados entre si por cadeias produtivas que conduzem os alimentos desde o campo até a nossa mesa. Guiadas por sua obsessão por benefícios, as grandes corporações que nos vendem comida delimitam e condicionam nossa forma de comer e nossa maneira de pensar sobre a comida (PATEL, 2008, p. 11).

Com a globalização da dieta industrializada e serializada, que fornece fartura de comida nutricionalmente defasada e energeticamente vistosa a um custo mais acessível do que se pagaria para adquirir alimentos de melhor qualidade, é a grande população e os mais vulneráveis que padecem com a injustiça alimentar e ambiental impressa pelo metabolismo em plena energia e saúde das corporações do setor agroalimentar.

Enquanto consumidores, somos encorajados a pensar que um sistema econômico baseado na escolha individual nos salvará dos males comuns da fome e da obesidade. No entanto, é precisamente a liberdade de escolha que originou estes males. Aqueles que podem dirigir-se ao supermercado ficam frente à possibilidade de escolher entre cinquenta marcas de cereais açucarados, meia dúzia de tipos de leite com sabor a giz, estantes de pão tão saturados de produtos químicos que nunca apodrecerão e estantes repletas de produtos cujo ingrediente principal é o açúcar (PATEL, 2008, p.

14-15 - grifo do autor).

Apesar do que nos incutem nossas escolhas alimentares não são livres. A imensa oferta de comida-mercadoria existente nos supermercados (principal local de acesso à alimentação para o morador das cidades) está repleta de aditivos danosos e ingredientes pouco nobres do ponto de vista da saúde. Isso por que: “as corporações que produzem alimentos têm todos os incentivos para vender comida submetida a um processamento que a torna mais rentável, embora menos nutritiva”

(PATEL, 2008, p. 15). A oferta de comida não industrializada, fresca e nutritiva é escassa, pouco acessível ao consumidor, ou então alternativa, comercializada em espaços específicos, como lojas de produtos naturais, feiras ecológicas e de produtores locais, por exemplo, e por esta razão é, muitas vezes, ignorada.

Temos compreendido que as escolhas alimentares possuem limitações naturais e culturais, da ordem do que está disponível na natureza ou temos técnicas conhecidas para produzir, e estamos dispostos a ingerir. Porém, “incluso a isso, um pouco de publicidade pode convencer-nos a expandir o alcance de nossas opções”

(PATEL, 2008, p. 15). E quando estas opções alimentares encontram-se socialmente naturalizadas, principalmente quando afetam uma geração desde o seu nascimento, como está hoje ocorrendo com as crianças que já nascem em pleno contato com a dieta industrializada, torna-se muito difícil removê-las do ideário representativo.

A contradição da coexistência de famintos e obesos não é “normal”. Mas tendemos a normalizá-la, por que os alimentos disponíveis nos supermercados não contém a história de sua produção registrada nos rótulos. Assombrados por prateleiras repletas, naturalizamos a fartura como global, e a fome como situação autoinfligida. No entanto, os afetados pela fome e pela obesidade e outras disfunções de base dietética só poderiam ser moralmente condenados com justiça caso fossem realmente eles próprios a produzir sua condição, ou a eleger sua comida.

Muitas pessoas representam a comida industrializada dos supermercados como inócua à saúde. Ignoram seu real caráter: a natureza de mercadoria. E assim, atestam sem saber, seu próprio adoecimento. A doença é carro-chefe dos lucros da medicina convencional de caráter remediativo e da indústria farmacêutica. Ou será que podemos nos permitir a ingenuidade de pensar que ninguém enriquece com o

nosso adoecimento, e lucra com a venda dos inúmeros aditivos químicos que poluem os alimentos industrializados?

Sobre os aditivos alimentares, “quem determina se fazem mais bem que mal?”, assim como, “quem garante que haja energia barata e em abundância para transportar e combinar ingredientes que procedem de todos os rincões do mundo?”

(PATEL, 2008, p. 18). Tais questionamentos fazem parte da produção crítica da consciência em torno de compreender com maior complexidade o fenômeno da alimentação, necessária para que possamos engendrar uma nova forma de produzir, distribuir e consumir alimentos, condizente com o princípio da sustentabilidade.

O caráter arbitrariamente poderoso da comida-mercadoria oculta as relações desencadeadas em sua cadeia produtiva. Seu preço e a forma como é apresentada nas prateleiras dos supermercados não refletem o que foi transformado e degradado no trajeto produtivo. As injustiças não constam nos rótulos. Estes rótulos não refletem a condição degradante do trabalho alienado, a dependência dos agricultores às imposições das grandes corporações do agronegócio e dos negócios altamente lucrativos da indústria alimentícia, e as relações desvantajosas de comércio que os submetem, e aos países periféricos ao centro de poder e decisões.

A alternativa sustentável ao modelo produtivo que metaboliza injustiças como subproduto é a agricultura agroecológica, pautada em uma base saudável de relações: respeito à natureza, trabalho criativo e comércio justo. Um modelo, alternativo ao vigente, de produzir, transformar, distribuir e consumir alimentos deve ancorar-se nos princípios de sustentabilidade e saudabilidade. Sua compreensão, enquanto necessidade urgente de nossa sociedade tem como ponto de partida a emancipação dos sentidos humanos, de forma que possamos desejar conhecer a realidade, e compreendê-la criticamente, não como aparece, mas como de fato é, em sua forma e conteúdo específicos de relações.

Precisamos entender que “as mesmas forças que configuram as opções dos agricultores também chegam aos repletos expositores dos supermercados” (PATEL, 2008, p. 18). Não há, assim, espaço para compreensões fragmentadas da realidade se desejamos transformar a ordem globalizada de relações que sustenta a comida-veneno, uma comida tóxica em todos os níveis de sua produção, desde o campo até a mesa.

“A abundância relativa das estantes, os aparentemente baixos preços ao caixa e a quase constante disponibilidade de alimentos são nossa compensação. [...]

a comodidade mantém-nos anestesiados enquanto consumidores” (PATEL, 2008, p.

18). Admitir isso é aceitar a provocação que nos convida a repensar e modificar nossos próprios hábitos alimentares, e não somente esperar que outra produção de alimentos surja como em passe de mágica, sem que nossa contribuição dê parte.

A ganância por lucros acumula-se sobre a comida-mercadoria durante o seu trajeto do campo à mesa. Ao agricultor, cabe sempre a menor parcela da renda. Os produtos primários não têm preço justo, e os custos de produção beiram ou, de fato, são compatíveis com o endividamento, aos quais se somam limitações de ordem natural (como o clima) e a degradação dos solos devido às técnicas predatórias da agricultura industrial. Essa cadeia produtiva de alimentos tanto não é socialmente justa quanto não consegue ser saudável, nem inócua do ponto de vista ambiental e da saúde. Qual o sentido de mantê-la?

Não há ética, justiça ou sustentabilidade no fracasso existencial dos agricultores, na doença dos consumidores, na degradação do ambiente, no desperdício de comida que demandou direta e indiretamente água, energia e outros insumos para ser produzida, em razão das leis de mercado.

Ou devemos simplesmente aceitar que há justiça na sumária eliminação de toneladas de grãos quando a sua comercialização não é rentável, ou que é justo o descarte de frutas e verduras quando seu tamanho, forma ou aspecto não atingem o padrão exigido pelo mercado? Ou que cereais sejam destruídos por que tiveram uma boa safra, e esse “excesso” irá despencar os preços no mercado? Essa lógica é uma completa insanidade (que nasce da extrema lucidez metabólica do capital em manter-se são), um absurdo histórico, que jamais poderá ser compatível com os princípios reais de sustentabilidade. É aceitável descartar comida apta para consumo quando inúmeras pessoas sofrem fome crônica e é a própria fome um produto da injustiça distributiva desse modelo produtivo?

Para citar um exemplo de tal insanidade, ilustramos a condição do Níger, segundo país mais pobre do planeta, conforme o Indicador de Desenvolvimento Humano (IDH):

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