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3 NECESSIDADE DE UMA DOUTRINA SOBRE A UTILIZAÇÃO DE

3.3. MODELO DE PRECEDENTES PARA OS TRIBUNAIS

3.3.4 Como as cortes superiores devem tratar seus próprios

Uma vez que se reconheça o caráter formalmente vinculante de determinados precedentes, a existência de identidade da questão jurídica do caso a ser analisado com a ratio decidendi do precedente implica, em tese, a necessidade de sua aplicação. Contudo, como foi visto anteriormente, haverá casos em que a exigência

de desenvolvimento – ou mesmo correção – do direito não demandará a simples

distinção, mas sim a própria revogação do precedente.

Esta revogação, embora permitida, deve ser encarada como um ato

excepcional346. Isto se explica pelo fato de que alterações constantes de

jurisprudência – assim como as decisões contraditórias – acabam fragilizando o

próprio sistema de precedentes. Como referido antes, a força normativa do precedente deriva da possibilidade de cortes inferiores e dos aplicadores do direito em geral poderem confiar nas decisões dos tribunais superiores, tomando-as como

um padrão jurídico a ser seguido347. Na medida em que a própria corte não respeita

seus precedentes, a tendência é de enfraquecimento da força normativa de suas

próprias decisões e, mais grave, de desacreditamento da corte como um todo348.

Como afirma Waldron, uma visão condizente com o Estado de Direito implica a exigência de que o juiz subsequente trate a decisão precedente com a devida consideração; é preciso que seja dado tempo para que o precedente seja

internalizado pela sociedade349. A realidade brasileira, mesmo das cortes superiores,

ainda está bastante distante deste ideal. As mudanças de jurisprudência são feitas de forma rápida, o que, muitas vezes, é indício de que a própria decisão precedente fora tomada de forma açodada. Igualmente, é comum que simples mudanças de

345

Esta problemática foi muito bem enfrentada pelo voto vencido do Ministro Teori Zavaski. 346

PECZENIK, op. cit., p. 471. 347

Neste sentido, sobre a relação entre coerência material e segurança jurídica, ver Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre Permanência, Mudança e Realização no Direito

Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 335-336).

348

WALDRON, op. cit., p. 12. 349

composição ou meras discordâncias pessoais sobre a matéria acabem sendo considerados suficientes para a alteração de precedentes já sedimentados.

Como se tem insistido, essa postura de relativização da força normativa horizontal acaba impactando diretamente na força normativa vertical do

precedente350. Por outro lado, a cultura dos precedentes que vem crescendo no País

tende a alterar esta percepção, especialmente em razão dos já citados mecanismos processuais que colocam o julgador na posição de um quase legislador.

Em síntese, para que um sistema de precedentes vinculantes seja efetivo, a sua revogação deve ser vista como um ato excepcional, somente justificando-se nas hipóteses anteriormente mencionadas quando da análise do instituto no sistema de common law. Além disso, quando efetivamente seja o caso de alteração, existem mecanismos para mitigar eventuais efeitos nefastos gerados pela quebra da confiança. Como referido anteriormente, nos Estados Unidos, como forma de atenuar a violação ao princípio da confiança, as cortes em determinadas situações optam por proceder ao prospective overruling.

Dito processo sustenta-se quando existe uma confiança justificável depositada na doutrina estabelecida pelo precedente. Ainda, o valor de proteger tal confiança deve superar os benefícios de se impor a nova orientação de forma

retrospectiva351.

Embora, no Brasil, somente exista previsão legislativa expressa de

modulação dos efeitos no controle concentrado de constitucionalidade352, por

ocasião do julgamento do HC nº 109.956/PR, o STF aplicou o novo entendimento

sobre a matéria – inadmissibilidade de impetração de Habeas Corpus quando

previsto recurso expresso na legislação – apenas para aqueles impetrados após a

publicação da decisão. A ideia foi justamente resguardar a segurança jurídica e a

350

Como sustentado anteriormente, dada a realidade atual brasileira, é até mesmo saudável que determinadas matérias tenham um tempo (razoável) de maturação. A utilização dos mecanismos de uniformização, com amplo debate entre os membros da corte, pode contribuir para que se chegue a uma decisão mais bem fundamentada e coerente com a ordem jurídica.

351

EISENBERG, op. cit., p. 129 e seguintes. 352

O STF, embora considere possível a modulação dos efeitos no controle incidental de constitucionalidade, tem entendimento no sentido de que tal faculdade seria reservada ao plenário (AI 681730 AgR/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma do STJ, 14-12-2007).

confiança depositada pelos operadores do direito nos precedentes anteriores

através da apreciação de ofício daqueles já impetrados353.

A tutela da confiança, no caso de alteração de jurisprudência, exige que se

analise, portanto, a aptidão da decisão modificada em gerar confiança354. De acordo

com Humberto Ávila, devem ser avaliados os fatores relativos à “vinculatividade e pretensão de permanência; finalidade orientadora; inserção em uma cadeia de

entendimento uniforme e capacidade de generalização”355

. Trata-se de critérios que devem ser analisados de forma conjunta, sendo, portanto, “elementos indicativos,

mas não necessários, nem suficientes”356

.

As questões relativas à tutela da confiança e à modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade são extremamente complexas, e fogem ao objetivo deste trabalho um maior aprofundamento sobre o tema. Dado o escopo do presente estudo, é suficiente a conclusão de que a importância da ferramenta, em um sistema no qual os precedentes apresentam força normativa, reside em tutelar a confiança neles depositada. O procedimento, como bem anotou Eisenberg, deve ser visto de forma excepcional e sopesado com as vantagens advindas da adoção do

novo posicionamento de forma retrospectiva357, o que, no Brasil segue sendo a regra

geral.

353

HC nº 109.956/PR, Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma do STF, 07-08-2012. A questão, no entanto, é bastante excepcional e não parece existir no STF uma tendência geral de modulação dos efeitos em caso de alteração de jurisprudência. A Primeira Seção do STJ, no julgamento do ERESP 738.689/PR, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 22.10.2007, por seu turno, firmou a orientação de que "salvo nas hipóteses excepcionais previstas no art. 27 da Lei 9.868/99, é

incabível ao Judiciário, sob pena de usurpação da atividade legislativa, promover a 'modulação temporal' de suas decisões, para o efeito de dar eficácia prospectiva a preceitos normativos reconhecidamente revogados".

354

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre Permanência, Mudança e Realização no Direito

Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 482 e seguintes.

355

Idem, ibidem. 356

Idem, ibidem. 357

EISENBERG, op. cit., p. 129 e seguintes. O Professor norte-americano, com razão, aponta para os problemas de coerência sistêmica e para as complexidades adicionais que poderão resultar do processo de prospective overruling. A permanência de decisões contraditórias e a falta de certeza do momento em que será revogado o precedente podem acabar trazendo maiores dificuldades no que tange à previsibildiade do direito. Tal fato reforça a concepção de que a postergação dos efeitos revocatórios deverá levar em conta aspectos concretos relativos à efetiva confiança (justificada) depositada pelas partes, o que implica a necessidade de uma regulação pormenorizada dos diferentes períodos e graus de confiança. Neste mesmo sentido, refere Benjamin Cardozo que “existe, sem dúvida, necessidade de examinar se os homens agiram de boa-fé, na suposição de que

a regra seria continuada. Se o fizeram, a mudança retroativa pode ser proibida pela mesma consciência social a que se apela para a sua permissão. Tais casos de confiança legítima em erros estabelecidos – sendo suas raízes tão espalhadas e profundas que tenham de ser toleradas, se não

3.3.5 A re(classificação) dos fatos e os limites de atuação dos tribunais