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4.2 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

4.2.1 Concepções e expectativas dos profissionais sobre família

4.2.1.2 Como os profissionais concebem as famílias

Sob qual ótica os profissionais compreendem as famílias atendidas no serviço hospitalar? É a partir da sua concepção sobre família? Ou é a partir da concepção de família debatida pela literatura? Ou ainda a partir das necessidades do serviço de saúde em que trabalham? Esses foram alguns dos questionamentos iniciais desta pesquisa. As respostas dos profissionais permitiram identificar que a

compreensão se realiza através de um processo dinâmico de aproximações baseado, primeiro, na sua experiência pessoal, e posteriormente, emoutras possibilidades de compreensão.

Os depoimentos a seguir indicam que a experiência pessoal é utilizada como referência também para o desenvolvimento de ações em saúde:

[...] mas não tem como tu não carregar a tua concepção na hora que tu vai dar uma orientação, na hora que tu vai fazer um cuidado. Tanto é que assim, tudo aqui pra gente gira em torno, tá, se o marido não está presente, a primeira pessoa que a gente vai buscar como apoio não é a vizinha, não é a amiga da escola, é o teu pai e a tua mãe e a avó. [...] Então, eu, pelo menos eu, como pra mim a família nuclear é que me dá o apoio, eu penso que acaba sendo muito parecido nas outras realidades familiares. Então, apesar de procurar não misturar pessoal com profissional, eu acabo trazendo um pouco do que eu acredito, um pouco da minha vivência fora daqui para minha realidade de trabalho. [...] Acho ainda que precisa de um trabalho com a equipe, que eu acho que ainda não é redondo, isso. Talvez pela própria concepção de família que cada um carrega, vamos ter diversas ações diferentes no acolhimento, no recebimento dessa família que está chegando[...]. (SUJEITO 1).

É, então, é a partir dessa família minha e da minha experiência que eu já tive. Aí eu consigo entrar dentro das mães, no nosso caso, aqui, e entender as dificuldades que elas têm, de estar com um filho prematuro, que é o nosso trabalho[...]. (SUJEITO 2).

Nessas afirmações fica explícito que a experiência pessoal é utilizada para algumas ações cotidianas que integram a assistência prestada ao usuário como, por exemplo, o acolhimento, tão debatido entre as equipes de saúde que desenvolvem essa ação em sua prática diária, em especial, após a publicação da PNH.

Em outro conjunto de depoimentos, pode-se observar claramente que, quando não existe coincidência entre a sua concepção e a

experiência pessoal de família e a realidade das famílias atendidas, o profissional vai buscar outras formas de compreensão para obter a resposta do que se espera da família usuária. Isso pode ser observado nas seguintes declarações:

Eu tenho algumas dificuldades de, justamente, até, às vezes, a gente conversa... que como a vivência da gente, a experiência da gente é diferente, às vezes, muito diferente do que a gente vê aqui, eu, às vezes, não entendia alguns relacionamentos que a gente via e inclusive por ajuda de profissionais das áreas de psicologia, do próprio Serviço Social, nos mostravam que dentro daquele problema, daquela sistemática, daquela situação é o que acontecia e às vezes eu tinha dificuldade pra entender. Porque são, assim, situações muito diferentes do que a gente tava habituada. Agora, quinze anos, tudo isso, eu já mudei até um pouco a minha maneira de pensar. (SUJEITO 6). A gente sabe que as famílias têm que ter essa rede de apoio mínima pra poder continuar enfrentando a situação que tá vivendo aqui, né. E aí, às vezes, eles não têm a família de laços consanguíneos. Então, acaba sendo família, nessa concepção de que pode ajudar, de que pode contar, aquelas que se aproximam, aquelas que a pessoa, que a pessoa que tá, o paciente, o usuário, né, como vocês falam, né, tá precisando, a gente levanta com ele com quem ele pode contar e passa a ser as pessoas que ele indica pra gente que podem fazer isso. (SUJEITO 16).

Sim, eu busco compreender. Sim, se bem que aqui a gente tem as rotinas pensadas em receber as famílias, principalmente pai e mãe; se for menor, daí fica a mãe (avó materna); entrar as outras pessoas que eles consideram importantes, assim, né. (SUJEITO 13).

Dessas falas, apreende-se também que a ampliação do entendimento de família é possibilitada pelo tempo de inserção no serviço e pelas relações interdisciplinares. Nesse contexto, os

profissionais vão reconhecendo novas dinâmicas e estruturas familiares, diferentemente da sua família de origem. Porém, eles não deixam de apontar as dificuldades que têm para romper a barreira do modelo idealizado e reconhecer as diversidades, os arranjos e as dinâmicas familiares na contemporaneidade.

Assim, o primeiro movimento a ser executado para a apreensão das situações atendidas é remeter à sua vivência, buscando identificar alternativas a partir de sua compreensão sobre o desejável e o indesejável, sobre o certo e o errado. Quando a realidade identificada não traz alternativa dentro do “esperado”, faz-se um segundo movimento, que consiste na ampliação dessa compreensão. Inicialmente, há uma tendência em ampliar para o contexto da família estendida15, e só posteriormente partir para a inclusão de outras pessoas, adotando-se a idéia de que “família é aquele com quem se pode contar”. Esses movimentos permitem levantar a hipótese de que a mudança de concepções está voltada essencialmente para a necessidade de realização do cuidado/trabalho. Assim, em outras palavras, mais do que uma mudança real em torno da concepção de família, ocorre uma mudança de caráter instrumental.

Além disso, não pode passar despercebido também que, embora os profissionais tendam a ampliar a sua concepção sobre família, isso não acontece com a mesma intensidade quando se faz referência a determinados papéis familiares, em especial, à figura materna. Identificou-se, dentre os depoimentos, que na internação de recém- nascidos e crianças, a figura da mãe é concebida como essencial, como ilustra o seguinte fragmento de entrevista:

Uhum....[...] eu penso mais no profissional, no paciente, no conforto do paciente e tal, a família, se ajudar, tá ótimo, se não, é indiferente. [...] Mas já no Hospital Infantil a família é fundamental, né, porque a mãe, a mãe é tudo pra uma criança. (SUJEITO 15).

Então, pra ti, tem diferença da importância do acompanhamento da família, dependendo do paciente, se é criança ou adulto e idoso? (PESQUISADORA)

15 “Arranjos familiares estendidos são caracterizados pela presença de uma pessoa cuja relação de parentesco com o chefe do arranjo domiciliar é de ‘outro parente’. Como se trata de uma extensão do tipo nuclear, engloba todas as combinações de arranjo nuclear com a inclusão de uma ou mais pessoas como ‘outro parente’”. (MEDEIROS; OSÓRIO, 2001, p. 27).

Com certeza, pro adulto já não é tão fundamental como pra criança, pelo menos, eu acho. (SUJEITO 15).

A centralidade da figura materna no acompanhamento e na permanência durante o período de internação de crianças é considerada algo extremamente fundamental para o desenvolvimento e o bem-estar dos pequenos. A experiência profissional como assistente social de uma Unidade Neonatal confirma esta observação. Há uma tendência das equipes em exigir a permanência integral da mãe durante todo o período de internação, sem, no entanto, considerar as possibilidades daquela mãe e de sua família, pois há situações em que a mãe possui outros filhos menores e necessita de suporte para a realização desse acompanhamento. Normalmente, as idas e vindas do acompanhante precisam ser negociadas e esclarecidas com a equipe. Não se colocam em questão, aqui, os benefícios que o acompanhamento da família traz ao usuário que está internado, benefícios esses tão debatidos na literatura nacional e internacional. O se quer problematizar é a forma como essa família/acompanhante é inserida pelos serviços, sendo muitas vezes exigida a sua presença sem levar em conta suas reais possibilidades para executar tal tarefa.

Manifestando-se sobre o assunto, Sarti (2010) afirma que, por não ser problematizada a noção de família com que operam os profissionais, esta aparece relacionada àquela que caracteriza seu mundo cultural. A autora indica ainda que, normalmente, trata-se de “uma concepção moral de família, identificada com a noção do bem e a consequente dificuldade de se pensar o conflito como inerente às relações familiares.” (SARTI, 2010, p. 96). Ela também relaciona a família a noções de solidariedade e complementaridade idealizadas, o que torna difícil a problematização da questão de gênero. Dessa forma, “as relações familiares entre os sexos e as gerações são naturalizadas a partir de categorizações prévias do que se define como homens, mulheres, velhos, adolescente e crianças.”(SARTI, 2010, p. 96).

A maioria dos relatos evidenciou que é a partir da concepção de cada profissional que são compreendidas as famílias atendidas no serviço de saúde. Essa constatação mostra o risco de se adotar interpretações pessoais para identificar as situações atendidas, seja no âmbito hospitalar seja em qualquer serviço de saúde. Uma grande parcela desses atendimentos é caracterizada por situações complexas, permeadas por questões que requerem do profissional um olhar que ultrapasse o seu próprio mundo e busque, na perspectiva da

integralidade, a compreensão da família e de suas situações contextualizada no conjunto das relações sociais. Enfim, pode-se dizer que a prevalência de concepções estereotipadas de família e de papéis familiares associadas aos procedimentos adotados nos serviços tende a reforçar, de acordo com Mioto (2010b), os processos de responsabilização familiar e também o viés “familista” da política social brasileira.