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CAPÍTULO 5: AGRICULTURA PANKARARÉ

5.1 As roças

5.1.3 Como e quando se adquire uma roça: regras gerais de propriedade

As pessoas podem adquirir uma roça de variadas maneiras: herança, compra, troca, doação ou cercamento de terras livres. E mais recentemente, por ocupação das roças de posseiros indenizados que deixaram a área. A legislação sobre terras indígenas se sobrepõe às leis consuetudinárias. Na “reserva” (Terra Indígena Pankararé), embora haja regras de uso dos recursos, a propriedade não é individualizada ao contrário da “área mista” (T.I. Brejo do Burgo). Na primeira, o direito à utilização das terras “é assegurado mediante a pertinência ao grupo étnico” (Maia, 1994, p. 11) tratando-se, então, de um regime de “posse em comum”. Os recursos de uso comum da reserva são aqueles oriundos de práticas extrativistas ou de caça. Mas uma pessoa também pode cercar uma área na reserva para fazer uma roça, individualizando esta propriedade que passa a ser de seu uso exclusivo e de seus familiares. No Brejo (Poço), Ponta d’Água e Serrota as propriedades são individualizadas e cercadas. A

116 área da Terra Indígena Brejo do Burgo, onde ficam as aldeias Poço e Ponta d’Água já era ocupada desta maneira antes da demarcação. Os mais velhos, segundo Maia (1992), relembram da chegada do “documento” de posse da terra e do “cercamento” das terras como novidades trazidas pelos de fora.

As novas roças feitas através de “puxadas” – cercamento de terras livres – ficam nas proximidades das roças dos grupos domésticos de origem (idem). Isto é comum na Serrota, por exemplo, onde ainda há espaço para isso. No Poço e na Ponta d’Água já não há muitas áreas próximas para se fazer novas roças. Acontece sim que a maioria dos posseiros, que vem sendo indenizados, vivia no Brejo do Burgo e ocupavam as terras ao longo da Baixa do Tonã principalmente, e com a saída deles estas áreas estão sendo ocupadas pelos índios. Enquanto algumas lideranças reclamam que este processo de ocupação deveria ser feito de maneira organizada de modo a priorizar aqueles que não possuem terra, outros não interferem nas ocupações, as quais vão sendo feitas “espontaneamente”. Desta maneira uns ficam com muito e outros ficam com pouco.

Um casamento ou o nascimento de uma criança são motivos para se “brocar” uma nova roça, ou uma “puxada”. No caso de casamento e nascimento, Afonso diz:

A gente já nasceu brocano roça. Já nasceu trabaiano na roça dos pai. [...] Quando depois que você passava a ser de maior de idade, tava com vontade de arrumar uma namoradinha, casá, aí tinha que cercá uma roça pra ele porque... eu mermo foi assim, né? Eu comecei a trabaiá na roça de meu pai desna que saiu os dente. Cercá, brocá junto com ele, carregá madeira pa cercá sem ter nada pa comê e adepois de cercada ele abandoná a roça e eu me casei e chegá a trabaiá e ele dizê que eu só tinha ligume pruquê trabaiava na roça dele . Aí foi obrigá eu trabaiá forçado pa mostrá pa ele que eu tinha coragem de trabaiá. Então, as coisa hoje tem pro cara que tem vergonha na cara de levá repelão do próprio pai que nem eu levei. Então, hoje, hoje eu tenho uma propriedade na Serra do Cágado, uma propriedade no Amaro, tenho uma propriedade na lagoinha, tenho uma propriedade na Serrota, tenho uma propriedade no Jequiá e tenho propriedade aqui. Por esse capricho. [...] Cada ano que nascia um fio eu brocava uma tarefa de terra.

Judival fala qual foi a primeira vez que brocou uma roça e acrescenta uma explicação sobre os direitos de propriedade:

Judival: A premera roça só cerquei, broquei e entreguei pra minha mãe ficar trabaiando dento da roça.

117 Judival: Tem que ter os dereito. Todas as nossas área, todas as nossa localidade tem nossos dereito. Aqui, daqui pra cá é o dereito de fulano, daqui pra acolá é o dereito de fulano, daqui já vem de tataravô passando pa avô, passando pa neto, de neto pa bisneto e de famia pa famia, ficando naquela natureza. Nem vende, nem dá e nem empresta e fica assim só passando de um pa outro. Então, tem uma rocinha aqui, tem aquela à frente com tantas tarefa, com tantos metro, né? Que hoje fala mais por metro, mas pa gente é tarefa. Daqui do canto de minha cerca inté dez tarefa pertence a um e pra cá, de quem é? É do ôto lá, mais na frente, lá pra lá e do ôto e é assim.

Então, para demarcar uma propriedade e tornar-se dona dela, a pessoa deve cercar ou fazer um “aceiro” (desmatamento de uma faixa de 1 m de largura por onde passará a cerca), ou “brocar”, ou fazer um rancho... algo que demonstre aos outros que alguém está zelando daquele terreno. Respeitando, é claro, as regras de propriedade. As roças podem estar agrupadas por relações de parentesco, afinidade ou simplesmente amizade. Na Serra do Cágado, por exemplo, uma grande extensão pertencia a Enéas (pai do cacique Afonso) que dividiu a área entre os filhos, que por sua vez, já estão dividindo entre seus filhos (3ª geração) (veja figura na próxima página).

Seja parente ou não, as relações de vizinhança, podem ser amistosas ou de conflito. Enquanto uns consideram seus vizinhos de roça como amigos e cooperam uns com os outros, há casos em que um decide vender, trocar ou abandonar a roça devido à desentendimentos com os donos das roças próximas. Judival conta da sua primeira roça na Serrota e como adquiriu a roça das Queimadas.

Judival: Era aqui na Serrota [a roça]. Ali perto dos Aprígio. Aí tinha aquele Manoel que era danado, eu prantava lá uma parma, um capim, u’a coisa, ele jogava os bicho dento. Aí eu pá evitá... nós não terminá brigano, eu peguei e vendi ali pa meu compadi, e fui fazê a ôta lá nas Queimada. Que é sozinha, que eu não gosto muito de tufo, não.

Isabel: A área nas Queimada era de quem? Cê pegou uma área que não era de ninguém...

Judival: De ninguém. De ninguém. E cerquei. De ninguém porque ela já fica pegando na ponta da iárea, lá pa riba, então lá não pertence a herdeiro, não tinha roça, não tinha casa, não tinha... Aí se chama uma “mata bruta”. Foi do mermo jeito que nem o caba cando veio de orocópe [helicóptero] por lá por riba, pegou o Raso da Catarina dizeno que não tinha dono. Caboco mintiroso!

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Figura 25 Roça do velho Enéas na Serra do Cágado. (Em destaque: árvore que recebe o nome de Rancho de

Enéas).

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