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Como são as produções de morte subjacentes ao levantamento de cruzes em

Capítulo 3 Quando as cruzes das estradas fazem ver, lembrar e resistir

3.2 Como são as produções de morte subjacentes ao levantamento de cruzes em

De acordo com José Carlos Brandão (1986), a ética camponesa conforma um modo de compreender a morte que pressupõe a existência de um mundo sobrenatural anterior ao mundo na Terra. Ainda segundo José Reis (1991), os dois mundos são entendidos como antitéticos, o que na minha compreensão, faz com que ratifique a produção de morte e de vida como mistério e como passagem de um mundo a outro. A produção de morte implica modos de produção de vida, assim como, a produção de vida implica modos de produção de morte.

Nesse sentido, morte e vida ocorrem segundo o tempo de Deus e as cruzes das estradas denunciam mortes que ocorreram ‘fora do tempo’ (MARTINS, 1983), seja por acidentes de trânsito, homicídios ou doenças fulminantes.

Assim, pelas falas das pessoas entrevistadas, identifiquei dois temas. Chamei o primeiro tema como: Produções de morte e de vida como mistério e passagem; e o segundo como: Morte e vida com tempos certos para acontecer.

Produções de morte e de vida como mistério e passagem

De acordo com José Carlos Brandão (1986), a ética católica camponesa implica modos de viver e de morrer em comunidades rurais. Também em Santa Cruz da Baixa Verde é possível perceber que o levantamento das cruzes das estradas envolvem certos modos produção de morte e de vida, seguindo uma ética religiosa, conforme o trecho de entrevista com Lívia.

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P: A senhora já foi em muitos velórios dos sítios ou em cruzes das

estradas?

Lívia: Todos, quase todos, eu vou, mulher, porque eu sou conhecida,

conheço todo mundo, gosto de todo mundo, e vou. Sou uma pessoa religiosa, na minha religião pede um... É... Existe o sacramento e outra coisa, uma delas é enterrar os seus mortos, visitar os mortos, entende? Eu vou, vou tudinho. Eu acho que é um ato de caridade, uma coisa boa.

A produção de morte em comunidades rurais, quando em uma dimensão do catolicismo popular, implica uma produção de vida voltada para a reverência dos mortos. Um modo de vida cujas pessoas mantêm uma relação face a face seja quando vivos, seja quando mortos. De modo que a morte não rompe a vida e lembrança social dos mortos nas comunidades rurais do município.

De acordo com Brandão (1986), a dimensão simbólica do catolicismo popular, em comunidades rurais, envolve uma produção de vida e de morte como uma passagem obrigatória, uma luta, a todos os seres humanos. Uma passagem que vai deste mundo para outro, num processo de mistério divino. A noção da morte como mistério e como passagem encontrada na entrevista com Dona Telminha, considerada como uma grande conhecedora do catolicismo na região, parece seguir o mesmo argumento de Brandão (1986):

Telminha: A vida é um mistério... A morte é um mistério... É um

mistério tão grande que ninguém sabe, só Deus. É como essa história do fim do mundo. Quando chegar a vinda de Cristo ao mundo, nem os santos dos Céus, nem o filho saberá, só o Pai. Só Pai. Ninguém saberá. Eu não acredito que ninguém diga: “Óia, o fim do mundo é neste ano”. Não acredito. Deus não vai dar. É um mistério. A vida, a outra vida, é um mistério. [...] Eu só quero te dizer que a vida é um muito diferente. Só Deus é quem sabe. Se nós temos fé em Deus, que a vida nossa é eterna, nós estamos aqui numa passagem... Nós todos somos uma passagem e pudemos... É como a bíblia diz: ‘Preparai-mos porque o dia de amanhã é incerto, não sabemos qual dia em que Deus vai nos chamar’.

No final da entrevista, Dona Telminha continua sua fala sobre a importância de cuidar dos mortos sob o signo da caridade cristã e acrescenta:

P: Tem alguma coisa que a senhora ache interessante que acabei

não perguntando sobre as cruzes ou sobre os velórios?

Telminha: Alguma coisa, como assim?

P: O que a senhora achar de interessante, que eu posso ter passado

durante a entrevista, sem lhe perguntar, mas que a senhora ache importante.

Telminha: Olhe, o velório, as cruzes, é um ato de amor que nos

devemos com os mortos. Então, nós sabe que um vizinho, uma pessoa conhecida morreu, nós temos que está com ele até a hora de

86 sepultamento porque ali é um ato de fé, uma ato de caridade, um ato de amor que nós temos que com os mortos. Porque se não fosse assim, morreu, acabou-se. Não morreu. Não morreu, Se mudou pra outra vida, mas nós como amigo, como pessoa, como pessoa que tem fé, que tem amor, nós diremos pra ele até a derradeira hora. É o que eu penso.

Compreender a morte e a vida como passagem e como mistério quer dizer, em Santa Cruz da Baixa Verde, um modo de reverência aos mortos e solidariedade com a família enlutada. Uma intercessão para os mortos e um acolhimento para as famílias, segundo o catolicismo popular. Ainda em uma conversa com Cláudia, liderança do STR, é apresentada a dimensão de mistério e de não questionamento da vontade de Deus sobre a vida e a morte:

Cláudia: A morte a gente até tenta entender, mas não tem explicação

não. É coisa de Deus mesmo.

Por fim, a fala de Cláudia coincide com o argumento de Cascudo (1974/2002; 1983) e de Brandão (1986) sobre a morte e a vida como obras de Deus e que, por isso mesmo são inquestionáveis. Embora a ética camponesa explique diversos acontecimentos, aqueles que remontam a vontade de Deus devem ser aceitos, pois a ordem dos mundos não deve ser transformada.

A morte e a vida com tempos certos para acontecer

De acordo com José de Souza Martins (1983), em comunidades rurais, a morte tem um tempo certo para acontecer. Caso a morte ocorra fora do tempo, como em acidentes, homicídios, infartos, dentre outros, trata-se de uma morte não desejável. A boa morte é, então, aquela em que há tempo para o moribundo despedir-se da família e ter sua alma encomendada aos Céus, através dos ritos de tempo e de espaço, conforme a entrevista com Eliana, uma freira:

Eliana: Aí, precisa assim ter mais consciência da vida ou do valor

que tem a vida. Porque queira quer não a morte interrompe a vida. Não é Deus que quer que a gente morra antes do tempo, é a gente que antecipa. Eu vejo por essa forma.

Desse modo, as cruzes lançam luz sobre alguma morte que aconteceu fora do tempo de Deus, seja por causas externas (acidentes de trânsito,

87 homicídios, afogamentos), seja por causas naturais (infartos, acidentes vasculares cerebrais, dentre outros), exceto o suicídio, conforme a entrevista com Lívia:

P: Eles construíram uma cruz [se referindo a uma família que teve um

ente querido que sofrera um acidente de trânsito e morreu]?

Lívia: Não, porque foi na rua, na cidade. Cruz é só na... Sim... Ou

então, é quando alguém morre também de coração, dessas coisas, também põe cruzes. Geralmente, não colocam cruzes aqui só quando é suicídio. Suicídio eu nunca vi uma, mas o resto tudo colocam. Quando alguém... Óie, pronto! Tem um ali que caiu no riacho, numa enchente e vem embora. Aí, tem uma cruz dele lá.

O obscurecimento das mortes por suicídio parece constituir uma confirmação da concepção católica da vida como passagem ou como viagem obrigatória. Quando alguém provoca sua própria morte produz também um momento que envolve tensão, pois vai na contramão da ordem do mundo e da vontade Deus e, portanto, precisa ser encoberta. O suicídio sugere uma forma de morte que escapa à ética católica popular e que, por isso mesmo, é eclipsada pelos católicos.

Durante as entrevistas, quando a equipe perguntava sobre as cruzes da PE-365, os/as entrevistados/as falavam também sobre a existência de cruzes em estradas de terra que eram caminho entre as comunidades rurais da região. Essas cruzes ganham importância sob o objeto de estudo, pois se referem também às produções de vida fora do tempo.

Em uma entrevista com Iara, agricultora e uma das lideranças do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central de Pernambuco, foi contado que se a vida não vingar na hora certa de Deus, o natimorto ou o ‘anjinho’ pedirá por batismo14. Uma vida que não é fora de um tempo médico, mas fora do tempo de Deus e que, consequentemente, se transforma em morte e pede batismo. De acordo com Iara, também a vida tem um momento certo para acontecer.

P: Iara, você conhece alguém que já colocou uma cruz?

Iara: Conheço! A mãe de Nono, ela teve um menino, deve ter sido

fora do tempo, né, como se diz. Aí, esse menino nasceu aqui mesmo no sítio. Aí, quando nasce no sítio... Não era... Não tinha a exigência

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O ‘anjinho’, lembra Cascudo (1974/2002), pode ser qualquer criança que morra com menos de cinco anos, pois é considerada em sua inocência e pureza de pecados.

88 que da lei que tem agora. Aí, podia enterrar. Aí, enterraram, aí. Aí, ela foi e colocou a cruz, que aí só era uma cruz. Já tem três, né? Já foi dois menininhos que enterraram. Um de Valéria e outro de minha prima. Aí chegavam aqui e pedia à minha mãe se podia. Aí, ela disse que podia. Aí, enterraram ele aí. Aí, até esse menininho de Valéria um dia chorou, né? Que de sete e sete anos disse que chora.

P: Ah, é de sete em sete anos, é?

Iara: É. Chora pedindo o batismo. Aí, Valda, de Chivinha, ela vinha

pra cá, pra ela dormir aqui em casa. Aí, ele chorou, Valda correu, deixou chinela, deixou tudo. É medrosa mesmo, né? Aí, veio simbora. Aí, depois batizaram ele. Aí, eu só soube essa vez que ele chorou. Não sei se ele já chorou outra vez.

P: Aí, batizou lá mesmo, assim depois de morto? Iara: Ela já tava enterrado com muito tempo.

P: Claro. Depois de sete anos, né? Aí, batiza aí mesmo? Iara: É. Ela batizou aí.

Parece que a fala de Iara se aproxima do que Cascudo (1974/2002) descreveu sobre a morte de ‘anjinhos’ que, ao morrerem antes de serem batizados, choram insistentemente para que o sejam. Assim, Iara relata que, no caso dessas crianças, o batismo foi realizado mesmo depois que as crianças morreram. Uma tradição que Cascudo (1974/2002) relaciona à Portugal e que está presente em comunidades rurais do Sertão até hoje como produção de morte e vida em tempos certos.

3.3 Como as cruzes das estradas podem ter alcances políticos em