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1. Borges e o padrão do gosto

2.4. Como se livrar de um objeto caótico

Se os livros, como vimos acima, podem apresentar características de um oximoro, e se o livro de areia surge da utilização de um paradoxo lógico para hiperbolizar este oximoro – já que paradoxo e oximoro são igualmente centrados na contradição –, então podemos descrever a solução encontrada pelo narrador-protagonista de “El libro de arena” como uma hipérbole de hipérboles: assim como certa pecadora bíblica deu solução excessiva à sua vida de excessos ao lavar os pés do Cristo com lágrimas e secá-los com os cabelos (Lucas 07, 36-50), o narrador-protagonista de “El libro de arena” encontra para o exagero uma solução exagerada: o livro é abandonado na Biblioteca da rua México.

Não é descabido descrever o livro de areia ou a atitude de seu proprietário como exageros. A introdução do conto – que o narrador-protagonista diz considerar inadequada, mas à qual não suprime – busca em certos axiomas exagerados justificativa para a natureza do livro: “La línea consta de un número infinito de puntos; el plano, de un número infinito de líneas; el volumen, de un número infinito de planos; el hipervolúmen, de un número infinito de volúmenes...” (OC3 p. 68) Este excesso de lógica, onde infinito compõe infinito, parece sugerir que pensemos em cada página do livro de areia como um plano, e no livro como um volume que é, também, um hipervolume.

O fascínio de Borges por labirintos, juntamente à sua descrença em toda e qualquer definição do universo ou método de classificação de suas partes, renderam-lhe contos como “La biblioteca de Babel”, “La lotería de Babilonia” e “Abenajacán el Bojarí, muerto en su laberinto” e ensaios como “El idioma analítico de John Wilkins”, os quais podem nos levar à conclusão de que organizar é, também, desorganizar. Estas considerações talvez nos permitam apreciar melhor os excessos que secretamente compõem “El libro de arena”. Um livro caótico – que poderia

66 Apesar de seu ceticismo em relação à indução e dos problemas, ainda sem resposta, que apresenta. Ver a respeito

conter, em suas infinitas páginas, todos os demais livros e a si mesmo – é abandonado ao acaso num depósito de livros organizado quase ao ponto do caos. Achar um livro numa biblioteca nem sempre é tarefa fácil, mesmo porque seus próprios funcionários nem sempre têm completo controle sobre cada volume de seu acervo. Assim sendo, achar um livro não catalogado na mesma biblioteca – não era desejo do narrador doar o livro, mas perdê-lo – é tarefa virtualmente impossível67.

O livro de areia não pertence à ordem do mundo empírico: desconhece tanto o empirismo de Hume, a que talvez ame seu comprador, quanto a tabela de Cutter, escapando, portanto, à tarefa de se encontrar livros em estantes de biblioteca. Mesmo assim, como objeto caótico, corre o risco de ser restituído ao mundo pelo caos – aqui, representado por sua versão quotidiana, o acaso –, quando algum curioso se depare com ele sem o estar procurando ou, talvez, a qualquer outro livro. O proprietário do livro de areia aposta na ordem para se livrar do livro: sua solução, embora não o diga diretamente, foi inspirada num conto de Chesterton, no qual Padre Brown, para desvendar um mistério, pergunta a Flambeau onde um filósofo esconderia um grão de areia ou uma folha68. Mas o caos, para o qual pende toda forma excessiva de ordem, poderá trazê-lo de volta pelas mãos de algum desocupado.

O fracasso da solução encontrada em “Tigres azules” talvez pareça mais ameno, mas é tão definitivo quanto o anterior. Craigie entra numa mesquita e pede a Deus que lhe livre dos discos; em seguida, um mendigo cego entra no edifício e lhe pede esmola. Parece estar ciente de que receberá algo horrível; parece mesmo exigi-lo. Após receber todos os tigres azuis que Craigie possuía, diz-lhe: “No sé cuál es tu limosna, pero la mía es espantosa. Te quedas con los días y las noches, con la cordura, con los hábitos, con el mundo” (OC3 p. 386, grifo meu). Ao final, Borges oferece a Craigie um milagre: o improvável em troca do impossível.

67 Tarefa porque achar um livro numa biblioteca, mesmo quando para o próprio entretenimento, tem ares de tarefa: é

necessário consultar fichários, anotar códigos, vasculhar prateleiras etc.

68 Na praia e na floresta, respectivamente. Talvez o que Chesterton esteja sugerindo é que o filósofo é um homem

sensível, capaz de conhecer nos mínimos detalhes, de modo a reconhecer sua folha em meio a todas as folhas do mundo. Não obstante, sua descrição corre o risco de retratar o filósofo como um homem preocupado com ninharias: que tipo de homem, afinal, perderia tempo escondendo uma folha? A mesma sutileza e o mesmo ar de trivialidade se encontram no Zadig de Voltaire: Zadig foi capaz de reconhecer a cadela da rainha e ajudar seus soldados a recuperá- la sem nunca a haver visto, o que lhe rendeu um processo e uma vitória de Pirro (Zadig ou la destinée pp. 13-6).

Os hábitos são centrais ao pensamento probabilistico de Hume: seu conceito de causalidade, por exemplo, é baseado no de hábito69. Não são, contudo, lógicos; de certa maneira, o mundo teve fazer exceção de si mesmo, ao romper com as próprias leis – necessárias do ponto de vista de uma explicação lógica do universo, mas contingentes para o pensamento pautado na experiência – e permitir o milagre, para poder se livrar dos objetos que desautorizavam estas mesmas leis. Ao fazê-lo, contudo, coloca-as nas mãos arbitrárias de Deus, que bem poderia haver feito o mundo a partir de leis completamente distintas ou, como supõe Descartes, pode estar nos enganando a todo momento (Meditations: premiere). A necessidade dos princípios lógicos, aos quais Craigie desejava salvaguardar, continua ameaçada. O que recebeu de volta não foi a lógica na qual confiava, mas a conformidade do mundo sensível – recebeu, melhor dizendo, o que é roubado não pelos tigres azuis, mas pelo livro de areia.

O segundo conto de Borges a fazer menção explícita de Hume é “La busca de Averroes” (OC1 pp. 582-8), incluído em El aleph. Em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, apesar de Hume ser apenas tangencialmente mencionado e explicitamente menos importante que Berkeley, tem maior impacto que este no que diz respeito à elaboração conceptual de Tlön, como veremos no capítulo 04 –; em “La busca de Averroes”, Hume também é citado apenas uma vez, e de modo ainda mais tangencial. Mesmo assim, uma análise detida de certos componentes deste conto pode nos auxiliar a melhor compreender que a obliqüidade faz parte de seus jogos com a hierarquia do cânone ocidental.

A presente análise parte de duas sugestões: a primeira é a feita por Borges em “La busca de Averroes”70, onde compara Hume ao faîlasûf cordobês ’Ibn Rushd71: “Entonces Averroes declaró, prefigurando las remotas razones de un todavía problemático Hume” (OC1 p. 584). A segunda é feita por Rengel que, em seu artigo “¿En qué creía Borges?”, compara as personagens do conto de Borges às de Hume em seus Dialogues concerning natural religion – o que, de certo modo, nos levaria a ver o conto de Borges como paródia aos diálogos filosóficos.

70 A julgar pela relação das citações explícitas que Borges faz de Hume, não a repete em outro lugar de sua produção

escrita.

71 No decorrer da exposição, a latinização Averroes (em português Averróis) será utilizada para fazer referência à

personagem do conto de Borges; o faîlasûf será referido pela transliteração ’Ibn Rushd, mais correta e não estranha ao Ocidente. Demais termos árabes receberão igual tratamento.

Não se está, portanto, sugerindo aqui que Borges compare Hume diretamente a ’Ibn Rushd; antes que a comparação se dá através do protagonista do conto, Averroes – que, por sua vez, é oriundo das leituras de Borges, elencandas ao final do conto, e não da leitura direta dos trabalhos do corbodês: em enquete realizada pela revista Latitud, Borges afirma que estava escrevendo um conto chamado “Averroes” a partir de certa passagem que leu em Ernest Renan – provavelmente, a que serve de epígrafe ao conto. Isto já seria suficiente para desconfiarmos que não leu ’Ibn Rushd; outras razões, contudo, para tal suspeita ficarão evidentes mais adiante.

Além disso, o próprio conto convida a uma distinção entre o Averroes de Borges e ’Ibn Rushd. O conto se inicia com uma breve relação das variações do nome do corbodês no Ocidente: “Abulgualid Muhámmad Ibn-Ahmad ibn-Muhámmad ibn-Rushd (un siglo tardaría esse largo nombre en llegar a Averroes, pasando por Ben-raist y por Avenrys, y aun por Filius Rosadis) etc” (OC1 582). (A transliteração, em Borges, pode ser considerada uma parte de seu amor pela etimologia; interessados podem consultar “Algunos motivos árabes e islámicos en la obra de Borges”, de Pablo Tornielli. O artigo examina as traduções os versículos do Qur’ân utilizados por Borges como epígrafes, e comenta o verso citado por Averroes no conto de Borges a respeito do destino. Curiosamente, nada diz a respeito de Uqbar, mais comumente transliterado por âkbar [superlativo: o maior]).