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A compaixão pelos infortunados: uma filosofia weiliana sobre a misericórdia como elemento ético e místico

Compassion for the Unfortunate: a Weil’s Philosophy on Mercy as an Ethical and Mystical Element

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Resumo: O presente artigo procura refletir sobre o conceito de compaixão sobrenatural na filosofia da pensadora francesa Simone Weil, apresentando-o como práxis de um indivíduo descriado, que consegue através da graça divina sair de si mesmo e ir ao encontro do malheurex. Para se chegar a esta conclu-são, o presente texto inicia-se tratando da filosofia weiliana como um modo de viver, e da maneira como esta noção metafilosófica se encaixa na vida de Weil.

Assim, pode-se compreender que o sofrimento humano é sobretudo o propul-sor de sua filosofia, e este mesmo sofrimento a impulsiona para uma mística fi-losófica. É através do infortúnio, ou seja, do malheur que a pensadora francesa experimenta a extrema angústia não como aniquilação, mas como presença de Deus. A filosofia weiliana vê aí a possibilidade de uma união a Cristo crucifica-do, e a partir deste êxtase sofredor e contínuo, um meio de compromisso ético com aqueles que passam pela infelicidade extrema.

Palavras-chave: Simone Weil. Sofrimento. Ética. Malheur. Mística filosófica.

Abstract: This article seeks to reflect on the concept of supernatural compas-sion in the philosophy of the French thinker Simone Weil, presenting it as the

* Robson de Oliveira Silva é Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-doutorado em Filosofia da Ciência pela Escola de Enfermagem Anna Nery (UFRJ) e professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio).

Contato: robson.oliveira@ctsmart.org

** Thobias Costa Lopes é graduado em Filosofia pelo CES/JF e graduando em Teologia pelo UniAcademia. Contato: tobicosta@gmail.com

AcompAixãopelosinfortunAdos: umAfilosofiAweiliAnAsobreAmisericórdiAcomoelementoéticoemístico praxis of a decreated individual, who manages, through divine grace, to leave himself and go meet the malheurex. To reach this conclusion, this text begins with Weil’s philosophy as a way of living, and the way this metaphilosophical notion fits into Weil’s life. Thus, it can be understood that human suffering is above all driving force behind his philosophy, and this same suffering propels it to a philosophical mystique. It is through misfortune, that is, the malheur, that the French thinker experiences extreme anguish not as annihilation, but as the presence of God. Weil’s philosophy sees there the possibility of a union with Christ crucified, and from this suffering and continuous ecstasy, a means of ethical commitment to those who go through extreme unhappiness.

Keywords: Simone Weil. Suffering. Ethics. Malheur. Philosophical mystique.

Introdução

Este artigo pretende refletir sobre a importância do conceito de compaixão sobrenatural, na filosofia de Simone Weil (1909-1943), pensadora francesa de berço judaico, nascida em Paris, no século XX. A filósofa se debruçou sobre temas de cunho sociopolítico de grande importância e, além disso, ofereceu original contribuição à mística, teologia e sociologia (BUENO; VALLE, 2019).

Figura muitas vezes considerada complexa, desde sua juventude foi dedica-da aos estudos filosóficos, principalmente ao platonismo e à metafísica grega, bem como se interessava pelas angústias da humanidade. Isto se comprova por sua participação ativa na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), na Resistência Francesa, durante a Segunda Guerra Mundial (1940-1944), e por sua expe-riência fabril, da qual lhe sobrevieram enfermidades.

Para ilustrar o quão intenso era o seu engajamento social e sua preocupa-ção pelas desigualdades, faz-se importante apresentar um relato de Simone de Beauvoir1 (1908-1986), a seu respeito:

Um dia, consegui aproximar-me dela. Não sei como a conversa se deu, ela disse num tom cortante que uma coisa contava hoje sobre a Terra: a Revolução que daria de comer a todos no mundo. Eu retruquei, de maneira não menos cate-górica, que o problema não era fazer a felicidade dos homens, mas encontrar um sentido para a sua existência. Ela me cortou: “Bem se vê que você jamais

1. Filósofa existencialista e referencial do feminismo.

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sentiu fome”, disse. Nossas relações pararam por aí. Compreendi que ela havia me considerado como “uma pequena burguesa espiritualista”, e isso me irritou (BEAUVOIR apud MARTINS, 2013, p. 45).

Assim, é importante ressaltar que nesta pensadora francesa a filosofia não subsiste sem uma aplicação ética: filosofia e vida andam juntas. Para Weil, a justificação do pensamento passa, necessariamente, pela práxis, o que é ca-racterístico do modo de pensar contemporâneo2. Este aspecto será melhor explorado no próximo item deste artigo.

Simone Weil não tinha o intuito de deixar um legado bibliográfico, de tal modo que seus escritos têm sempre um caráter pessoal. Um fator de suma importância para se compreender a obra weiliana é que, de certo modo, per-manece inacabada, devido ao caráter assistemático e privado. Além disso, seus escritos são classificados em fases que vão desde a juventude à sua maturidade.

Neste sentido, a obra de Bueno e Valle (2019) a estrutura em três etapas, apre-sentadas a seguir.

O primeiro período do pensamento weiliano está marcado por sua pre-paração na École Normale Supérieure, entre 1925 e 1931 e destaca-se Alain,3 como seu principal mestre filosófico. O segundo período, de 1931 a 1939, marcado por sua participação nas fábricas da Renault, Alsthom e Carnud, bem como na Guerra Civil Espanhola e suas experiências religiosas.

Nesta fase segunda, percebe-se um interesse pelo marxismo, mas mantendo uma visão humanista, na qual o trabalho deve estar ligado diretamente ao intelecto. Contudo, posteriormente, a filósofa se afasta da ideia de Marx, rejeitando veementemente, o conceito de revolução. Para ela, este conceito é um fator de engano no marxismo, pois a revolução não conseguirá vencer e sanar os problemas sociais, segundo sua perspectiva (NICOLA; BINGERMAN, 2005, p. 24).

Já o terceiro estágio, sobre o qual debruçar-se-á com mais afinco este artigo, está entre 1939 e 1943, e é marcado por sua ligação com a Segunda Guerra Mundial e pela escrita dos primeiros textos místicos, destaque neste artigo:

2. Uma característica fundamental da filosofia contemporânea é o giro prático. A práxis, em contraposição a Theoria, tornou-se a chave de leitura universal para todas as disciplinas, tor-nou-se a chave hermenêutica que abre todos os conteúdos epistêmicos. E Weil não é exceção à regra.

3. Pseudônimo literário de Émile-Auguste Chartier (1868-1951), jornalista, ensaísta e filósofo francês.

AcompAixãopelosinfortunAdos: umAfilosofiAweiliAnAsobreAmisericórdiAcomoelementoéticoemístico Carta a um religioso (2016) e Espera de Deus (2019) são, na maior parte de sua composição, cartas trocadas com um sacerdote amigo, chamado Pe.

Perrin4, acerca de sua experiência com Cristo e com a Igreja.

A filósofa, durante um bom tempo de sua vida foi agnóstica (WEIL, 2019, p. 30), ou seja, concordava que todo juízo acerca de Deus era duvidoso e que deveria ser suspenso. Nesta fase, considerava que a questão sobre a divindade não era a mais importante e que não fazia diferença para as questões humanas.

Contudo, no ano de 1935, teve uma experiência religiosa com o cristianis-mo, que a fez perceber ser esta a religião dos sofredores escravizados, e que a Verdade, para a qual todas as coisas convergiam, estava nele. Como consta em sua obra:

Era à beira-mar. Às mulheres dos pescadores andavam em volta dos barcos, em procissão, carregando círios e cantando cânticos certamente muito antigos, de uma tristeza de cortar o coração. Nada pode passar a ideia do que foi aquilo.

Jamais ouvi nada tão pungente, com exceção dos cantos dos rebocadores do Volga. Lá eu tive de repente a certeza de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos, que os escravos não podem deixar de aderir ao cristianis-mo, e eu entre os outros (WEIL, 2019, p. 35).

É a partir deste contato místico, que se encontra o aparato necessário para a francesa tratar da compaixão sobrenatural. Contudo, este artigo não preten-de preten-delimitar-se a uma reflexão teológica e mística, mas sobretudo, apresentar uma visão filosófica do conceito que desemboca nestes ramos. Assim, a obra Simone Weil: ser e sofrimento (2019) tem contribuição pertinente para o presente texto, recorrendo a outros autores como Abbagnano (2007), Nicola;

Bingerman (2005), Martins (2013), Cantalamessa (2003) e Reale (1999), para elucidar as ideias weilianas.

Como afirma Raniero Cantalamessa (2003, p. 20), alguns pensadores mís-ticos são impulsionados a um compromisso para com os pobres, devido às suas experiências com Deus; já outros, como Simone Weil, conseguem expe-rimentar Deus somente a partir do contato primeiro com os marginalizados e sofredores. E aqui, novamente, se constata a preponderância da prática sobre a teoria, no pensamento da autora, bem afeita ao leitmotiv contemporâneo.

4. Pe. Joseph-Marie Perrin, sacerdote católico, que Simone Weil conheceu em Marselha.

Durante seu contato com ela tentou convencê-la a aceitar o batismo.

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1 A filosofia como modo de viver

Para se chegar à questão do sofrimento e, consequentemente, ao conceito de compaixão, torna-se oportuno elucidar o que Weil entende por filosofia. A autora procura, antes de tudo, questionar-se sobre a real natureza da filoso-fia: seu objetivo e limite, fazendo assim uma espécie de metafilosofia5. Deste modo, deve-se buscar uma compreensão integral do contexto filosófico wei-liano, pois esta visão metafilosófica só se torna clara quando são consideradas todas as fases do pensamento da filósofa (BUENO; VALLE, 2019).

Segundo a francesa, para se estabelecer o real papel da filosofia, deve-se rejeitar toda tentativa imperiosa de construir um sistema, pois estes sistemas de pensamento, como o de Aristóteles (384-322 a.C.) e Hegel (1770-1831), omitem lacunas e dilemas, não realizando de forma eficaz o objetivo ao qual se propõem (MARTINS, 2013).

Assim, a visão de filosofia da pensadora resgata seus fundamentos na Antiguidade grega, sobretudo platônica, pois segundo ela, Platão (428-348 a.C.) conseguiu articular uma relação fundamental entre o filosofar e a prática ética na pólis (BUENO; VALLE, 2019). É nesta esteira que Weil considera o saber filosófico como um modo de vida, visto que o objetivo primeiro da voca-ção filosófica não é um acúmulo de saber intelectual, mas sim, ser uma via de transformar a própria alma pelo conhecimento, e a partir desta transformação, agir na realidade ao redor. Como consta na obra de Martins:

A filosofia, para Simone Weil, é uma virtude voltada para a busca honesta e in-cessante pela verdade. Uma virtude transcendental, pois o verdadeiro filósofo é aquele que trabalha no exercício do espírito, na especulação dos valores trans-cendentais. A filosofia não se resume à especulação. A reflexão, apenas nesse âmbito, não é uma filosofia, mas uma boa interpretação da realidade. Filosofia é uma maneira de agir e viver, por isso uma virtude (MARTINS, 2013, p. 74-75).

Portanto, pode-se dizer que a filosofia weiliana consiste numa espécie de aplicação prática das ideias, entendida aqui como uma perspectiva da en-carnação das ideias, ou seja, da verdade no mundo concreto. Simone Weil se

5. Segundo o Dicionário de Filosofia (2007, p. 766) metafilosofia é “a reflexão sobre o conceito de filosofia, ou seja, a filosofia da filosofia ou metateoria da filosofia [...]”. Este conceito é bas-tante discutido em relação a sua validade, por exemplo, se toda metafilosofia é, na verdade, uma filosofia.

AcompAixãopelosinfortunAdos: umAfilosofiAweiliAnAsobreAmisericórdiAcomoelementoéticoemístico distancia de uma compreensão meramente abstrata e longínqua de filosofia, ela recorre à sabedoria antiga como arte de viver, ou seja, o verdadeiro filósofo é “[...] aquele que sabe viver e morrer de acordo com o próprio pensamento”

(REALE, 1999, p. 71).

Neste sentido, antes da práxis, as ideias já estão acessíveis ao homem. É contemplando as ideias que o vínculo interior e ético é gerado e, sendo assim, as ideias são forças que impulsionam o indivíduo para uma intervenção na vida material e política (NICOLA; BINGERMAN, 2005).

Compreendendo o trabalho weiliano como modus vivendi, ou seja, ma-neira de viver, pode-se salientar alguns conceitos essenciais, elaborados pela filósofa, que contribuem nesta relação entre filosofia e vida.

A primeira conceituação fundamental para o viver filosófico é o desape-go. Em suas obras, ela afirma que o homem tem uma aspiração pelo Sumo Bem. Contudo, muitas vezes, por conta do pecado original (reflexão da ma-turidade), ele faz a opção de trocar este Bem Absoluto por bens particulares e transitórios. Assim, o desejo pelo bem torna-se egoísta e fundamentado sobre o eu. Aqui surge o desapego, como processo pelo qual o homem se distancia dos apegos particulares e das coisas ilusórias, voltando o seu olhar para o Bem Supremo (MARTINS, 2013, p, 98)6.

Buscando desapegar-se das coisas ilusórias, o indivíduo acaba por exercer a faculdade da atenção – outro conceito original e notório de Simone Weil – sendo esta a disposição de abrir-se ao mundo, objetivamente, desviando-se dos apegos transitórios. Sobre isto, Weil afirma:

A atenção consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, va-zio e penetrável ao objeto, em manter em si mesmo, próximo ao pensamento, mas em um nível inferior e sem contato com ele, os diversos conhecimentos adquiridos que somos forçados a utilizar. Para todas as ideias particulares e já formadas, o pensamento deve ser como um homem sobre uma montanha que, olhando para frente, percebe ao mesmo tempo sob ele, mas sem olhar di-retamente, muitas florestas e planícies. E, sobretudo, o pensamento deve estar vazio, na expectativa; ele nada deve buscar, mas deve estar pronto para receber na sua verdade nua o objeto que vai penetrá-lo (WEIL, 2019, p. 77).

6. Weil denomina desapego ao que o pensamento clássico nomeava ascese. O esforço por ser coerente e não submeter bens superiores a bens inferiores é, justamente, o que se chama via de purificação, ascese da vontade.

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A atenção, portanto, é uma categoria em constante tensão com o eu, pois este quer sempre sobrepor os seus desejos particulares e egoístas, já a atenção se firma no desapego, como meio de conseguir uma real imersão do eu no todo. Portanto, esta faculdade do ser humano é uma contribuinte para o es-vaziamento, deixando a mente à espera do que está constantemente por vir.

Seria preciso rastrear a influência evidente de Edmund Husserl (1859-1938), no pensamento da filósofa francesa, pois é impossível não ver aqui as digitais da epoché fenomenológica.

Esta espera não é nada mais do que uma forma de não permitir que o ho-mem se alicerce em si mesmo, e se acomode numa perspectiva ilusória. Por isso, o pensamento deve ter sempre seu fim lançado para frente.

Agindo desta maneira, o indivíduo desapegado conseguirá estabelecer, no mundo, sempre uma hierarquia mais lúcida dos valores e das relações éticas, não se conformando com a condição inerte. Interessante é perceber que estes conceitos se encaixam com propriedade na vida de Simone Weil.

2 O sofrimento como propulsor da filosofia weiliana

Para Simone Weil, a filosofia é uma busca incessante pela verdade, que como visto, se traduz na vivência ética. A busca do conhecimento, ao longo da história da filosofia, recebe diversos fundamentos primordiais; exemplifican-do: o arché7 dos pré-socráticos, o mundo das ideias de Platão, o Uno (Deus) de Plotino (204-270), a vontade em Schopenhauer (1788-1860), entre outros.

Todos estes fundamentos primeiros do filosofar constituem um único e mesmo pathos, ou seja, um componente que perpassa a história como pro-pulsor para acesso à verdade. O pathos atravessa a filosofia humana, sendo alterado ao longo do tempo em suas características, mas mantendo a essência de conduzir o pensamento para a verdade (BUENO; VALLE, 2019). A autora também entende que a filosofia grega já tinha germes da Verdade Encarnada, que é o Cristo, assim, o pathos filosófico impulsiona e converge para Jesus:

São João, usando as palavras logos e pneuma, indica a profunda afinidade que liga o estoicismo grego (a ser distinguido daquele de Catão e de Brutus!) ao 7. O Dicionário de Filosofia (2007, p. 88) apresenta arché como princípio formador de toda a realidade.

AcompAixãopelosinfortunAdos: umAfilosofiAweiliAnAsobreAmisericórdiAcomoelementoéticoemístico cristianismo. Platão também conhecia claramente e indicou por alusões em suas obras os dogmas da Trindade, da Mediação, da Encarnação, da Paixão, e as noções da graça e da salvação pelo amor. Ele conheceu a verdade essencial, ou seja, que Deus é o Bem. Ele é a Onipotência apenas por acréscimo (WEIL, 2016, p. 17, grifo do autor)

Dessa forma, tanto Martins (2013) quanto Nicola e Bingerman (2005) apresentam o sofrimento como componente propulsor da filosofia de Weil, visto que – para a pensadora francesa – toda vivência humana tem alguma compreensão filosófica. Suas experiências de sofrimento, nas guerras e nas fábricas, a inclinam para um pathos sofredor, e este sofrimento propulsor wei-liano também encontra o seu ápice na encarnação de Cristo.

O pathos, usualmente, equivale ao que se entende por paixão, ou seja, uma afecção emocional que controla e influencia a direção do pensamento (ABBAGNANO, 2007, p. 861). Contudo, segundo Bueno e Valle (2019), em Simone Weil trata-se de uma disposição aberta, para se chegar à verdade, dis-posição esta que se permite sofrer e mudar.

Deve-se, portanto, adentrar no sofrimento de Weil, a começar pela sua experiência nas fábricas. É neste período, que ela tem a experiência da coi-sificação do trabalhador, ou seja, o operário é reduzido a uma coisa, algo de material e inerte. O verdadeiro trabalho, segundo ela, deveria unir a produção intelectual e manual. Contudo, nestes ambientes fabris, o operário era redu-zido a um objeto, e ela mesma sente os efeitos desta jornada em sua saúde (MARTINS, 2013).

Outro fato importante é o envolvimento na Guerra Civil Espanhola, na qual presenciou momentos de aniquilação da vida humana. Atesta, portanto, que aquilo que move os combatentes, muitas vezes, não é a justiça, mas sim, a crueldade e as atrocidades (NICOLA; BINGERMAN, 2005).

Assim, surge o conceito de força ou violência. Trata-se de uma tendência humana de reduzir alguém ao estado de coisa, através da brutalidade física ou moral, como consta na obra de Nicola e Bingerman:

Em todos os seus escritos, Simone Weil (SW) utiliza indiferentemente os con-ceitos de “força” e “violência”, de tal maneira que podemos afirmar que ela che-ga a identificar um e outro. Às vezes faz afirmações lançando mão de um con-ceito, como quando diz: “A violência esmaga aqueles que ela toca.” Mas dentro do contexto global de reflexão, a palavra “violência” tem o mesmo significado

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que “força”, da qual ela deu antes a definição precisando que “se trata daquilo que faz qualquer um que lhe esteja submetido uma coisa”. A crítica à violência e ao império da força está presente no pensamento de Simone Weil em termos amplos e universais (NICOLA; BINGERMAN, 2005, p. 117).

E esta força ou violência reside sobretudo na vontade humana, devendo ser adestrada, como meio de controlar a característica animal do indivíduo.

Entretanto, a força pode ser utilizada num sentido contrário, ou seja, violen-tando os próprios instintos de destruição (BUENO; VALLE, 2019).

A violência humana pode se esconder em vários tipos de expressões indivi-duais e sociais: regimes totalitários, abusos de poder, seja em nível de institui-ção ou em nível afetivo, através da violência nas guerras, ou contra uma pessoa específica, dentre outros. Assim, a violência acomete todos os seres humanos, de consciência cristã ou não cristã, mentindo, portanto, aqueles que dizem não serem influenciados por ela. Os sábios, entretanto, usam a força em sentido contrário, contra eles mesmos (MARTINS, 2013).

Esclarecidos estes conceitos, chega-se finalmente, a um dos pilares da re-flexão weiliana: o malheur, termo francês, traduzido8 na obra Espera de Deus (2019) como infortúnio. Tal termo quer expressar uma espécie de sofrimento extremo e angustiante, que faz o ser humano se sentir um nada, como diz Weil:

No campo do sofrimento, o infortúnio é uma coisa à parte, específica, irredutível. Ele é algo completamente diferente do que o simples sofrimento. Ele toma conta da alma e a fere, até o seu âmago, com uma marca que só pertence a ele, a marca da escravi-dão. A escravidão tal como foi praticada na Roma antiga é apenas a forma extrema do infortúnio. Os antigos que conheciam bem a questão diziam; “Um homem perde a metade da sua alma no dia em que se torna escravo”. O infortúnio é inseparável do sofrimento físico e, no entanto, completamente distinto. No sofrimento, tudo o que não está ligado à dor física ou algo parecido é artificial e imaginário, e pode ser aniquilado por uma disposição conveniente do pensamento (WEIL, 2019, p. 82).

O malheur é distinto do sofrimento e também da dor física, contudo, anda de mãos dadas com estes dois componentes da vida humana. A dor e o so-frimento, separados um do outro, não bastam para atingir a alma humana, é necessária uma junção desses pontos, para que ocorra o infortúnio.

8. Segundo Martins (2013), por mais que se façam traduções deste termo, estas não têm o mes-mo peso semântico do termes-mo original em francês.

AcompAixãopelosinfortunAdos: umAfilosofiAweiliAnAsobreAmisericórdiAcomoelementoéticoemístico Entretanto, a dor física pode ser considerada um semimalheur, visto que também angustia o homem. Se esta mesma dor física for frequente, pode ser atenuada para a experiência do malheur, pois passa a tocar tanto no corpo quanto no pensamento. Weil dá certa notoriedade à dor física, porque esta não deixa o pensamento fugir prontamente do sofrimento, ao contrário, ela o mantém como seu encarcerado (WEIL, 2019).

É oportuno ressaltar que o limite entre o sofrimento e o profundo infortúnio varia de pessoa para pessoa e cada indivíduo tem o seu limi-te para eslimi-te extremo. Quando alguém atinge eslimi-te grau, pensa que não é coisa alguma, e não tem palavras para expressar o que sente. Assim, estes que sofrem o pesado fardo do infortúnio são considerados malheurex, provas concretas de que o sofrimento extremo existe ao redor do mundo (MARTINS, 2013).

Posto isso, o próximo item tratará da possibilidade de entender o malheur como possibilidade de encontro com o Deus encarnado. Esta análise weiliana foi tão oportuna que contribuiu, também, com áreas como a teologia, a socio-logia e a estaurosocio-logia9.

3 O sofrimento extremo como encontro com Deus

Como afirmado, Simone Weil tem uma experiência mística com o cristia-nismo e reconhece nele a religião dos sofredores, por excelência. O seu agnos-ticismo então cai por terra, passando a perceber que o Cristo crucificado é a imagem da presença divina em meio ao sofrimento.

Assim, o malheur pode ser instrumento de destruição integral do homem ou também, meio de se unir inteiramente a Deus, sendo uma espécie de êxtase doloroso. Para se entender esta possibilidade de um infortúnio místico, deve--se, portanto, recorrer ao que Weil entende por criação e descriação.

O conceito weiliano de criação implica uma kénosis10 por parte de Deus, ou seja, um rebaixamento amoroso do Absoluto. Visto que Deus por si só se basta, a criação torna-se um ato de amor, por parte dele. Assim, Ele cria por amor coisas inferiores a si mesmo (BUENO; VALLE, 2019).

9. Ciência que faz estudos acerca da Cruz.

10. Do verbo grego kenoo, esvazio.